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Full text of "História Geral de Portugal e suas conquistas, Tomo V"

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HISTORIA 
“PORTUGAL, 


TOMO QUINTO. 


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HISTORIA 


GERAL 


PORTUGAL, 


E SUAS CONQUISTAS; 
OFFERECIDA 
Á RAINHA NOSSA SENHORA 


D. MARIA I. 


POR 


DAMIAÖ ANTONIO DE LEMOS 
| FARIA E CASTRO. 


TOMO V. 





LISBOA, 
Na TyroGRAFIA ROLLANDIANA. 
17386. 


Com Licença da Real Meza Cenfória, 


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INDICE 
DOS CAPITULOS. 
LIVRO XVII. 


Car. I. Principio do Reinado de D. 
- Fernando o Gentil, IX. Rei de Por- 


g è o o . 5 
- - II. O Rei D. Fernando fe empe- 
nha em huma guerra funella com o 


fim de conquiftar o Reino de Caflel- 
o "a 


a. o. au . 19 
-- III. Ajula-fe a paz com Caftella , 
e fegundo cafamento para D. Fernan- 
do com a fua Infante D. Leonor « 
defprazer da Leonor de Aragað , e 
fetratad outros acontecimentos. 38 
- - IV. Tratafe da fegunda guerra do 
Rei D. Fernando com D. Henrique 
de Caficlla. . o o so 
-- V. Modos delicados com que fe con- 
duz a Rainha D. Leonor , fucceffos 
do Infante D. Joaô, Scifma do An- 
ti-Papa Pedro de Luna , e nova 
guerra com Caflella, . . E 9 


pos CAPITULOS. 


LIVRO XIX. 


CAP. I. Da guerra do Rei D. Fernan- 
do com D. Foa I. de Caftella , e ou- 
e fuecelios , que della foraô 1 ai 


qo H Va alimento - de Yoa aiai 
Andeiro com a Rainha, e perfegui- 
çaô contra D. Foað, Mefire de p 
que 0 repróva. 

e - II. Carađer do Rei D. Maus 
Juamorte, efepultura.  . 117 


LIVRO XX. 


CAP. 1. gg pesa de Portugal no 
principio do Interregno , que fe feguio 
á morte do Rei D. rd. j per 

=- lI. O Mefre de Aviz , nomeado 
Governador do Alem- Téjo volta do 
caminho , mata ao Conde de Ourem 
Foað Fernandes Andeiro , e be ac- 
clamado Regente do Reino. 147 

-- II O Rei D. Foað I. de Capella 
entra em Portugal ; o que lhe fuc- 

Cê- 


ÍNDICE 


cede nefta invafað , efpecialmente com 

a Rainha, , é hi 168 

- = IV. Intenta a Rainha D. Leonor 
dar morte ao Rei de Caftella. Def- 
cobre-fe a conjuraçad. Succeffos de- 
pois della. . à . č . 182 
-- V. Varios fuccef]os militares depois 
da batalha dos AÁtoleiros , e os mais até 
ao fitio da Corte de Lisboa. 199 

- - VI. Continuaçaô do fitio de Lisboa 
com o mais que aconteceo até os Caf- 
ne o levantarem, o 214 

- - VII. Das expedições que fe feguirad 
depois do jea id do fitio de 
Lisboa, e como foraô convocadas as 
Cortes de Coimbra, ` . 236 
Oraçaó do Doutor Joað das Regras 
recitada na primeira Seflaô das Cor- 
tes de Coimbra. o o 252 

- - VII. Continuaçad das Cortes de 
Coimbra até fer acclamado Rei o 
Principe Regente D. Joaô, 261 


Dos CAPITULOS 


LIVRO XXI 


CAP. I. Acclamaçaõ do Rei D.foaô I. 
chamado de Boa Memoria, X. Rei 
de Portugal. ; á . 274 

-~ - II. Das mais acções, que obrou o 
Rei D. Joaô I. nas Provincias do 
Minho, e Beiras . ., 290 

- - III. Do que fuccedeo depois da en- 
trada do Rei de Caftella em Portu- 
gal. o o o o 307 

- - IV. Efcreve je a famofa Batalha 
de Aljubarrota, que decidio o nego- 
cio da liberdade de Portugal. 328 

-- V. Do mais que fuccedeo no cam- 
po da batalha , e depois della com a 
juizo mais provavel a refpeito da 
Formira de Aljubarrota, ` 346 


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HISTORIA GERAL 
DE 
PORTUGAL. 
LIVRO XVI. 


Da Hliftoria Moderna de Portugal, 


CAPITULO L 


Principio do Reinado de D. Fernando 
o Gentil, IX. Rei de Portugal, 





Na idade de vinte e dous annog Era vulg. 
fuccedeo D. Fernando o Formofo a 1367 
feu Pai D. Pedro , e entrou no domi- 
nio de hum Reino forte, e focegado, 
com vaffallos ricos, e contentes, os 
thefouros Reaes bem providos, e Eni 

Q 


6 Hisroria GERAL. 


Era vulg. do na figura de huma felecidade conf 
tante, Deimentira6 os fucceflos as beni 
fundadas efperanças , porque a paz ef- 
timavel , e as riquezas para aquelle 
feculo portentofis , cahitad nas mãos de 
hum genio, que comíigo meímo difpu- 
tou os exceflos da demafia no aflavel, e 
noprodigo; no refoluto; esrmroníderas 
do, na inconftancia , e na defgraça, 
Foi elle avifado da morte de feu Pai, 
é veio a Eftremoz para acompanhar © 
cadaver a Alcobaça ç aonde fe fez O 
acto da fua inauguração com'as cere- 
mônias coftumadas. O Rei moço , bi- 
zarro na prefença , agil nas acções, 
filho de hum Pai muito amado do Po- 
vo, entrou a receber cultos officiofos 
dos corações , que fe promettiad iù- 
deftectiveis as fortunas em tantas bellas 
qualidades. 

— À economi? domefica lhe levou 

` ` gs primeiras attenções: Criando para 
` feu Mordomo Mór a D. Joaô Affonfo 
de Menezes , Conde de Barcellos : pa- 

sa Monteiro Mór a Gonçalo Annes: 

para Chanceller Mór a D. Nuno Ro- 
drigues de Andrade, Meftre es 

is i e 


DE PorTUGAL, Liv. xvir. 9 


de Chrifto: para Cevadeiro Mór a Era vulg: * 
Gonçalo Efteves : para -Falcoeiro a 
Joa6 Gonçalves: para Guarda Mór a 
Affonfo Ribeiro : para Porteiro da 
Camara a Domingos Efteves : para 
Elcrivad da Puridade a Joa6 Gonçal- 
ves Teixeira: para Veador a Francif- 
co Efteves , e outros Officiaes , que 
até entaô recebiab dos Reis etes em- 
pregos fem a propriedade , que tem 
hoje muitos delles. Depois abrio os 
feus thefouros , e mandou reparar as 
Praças, e Caítellos, fem poupar def- 
pezas , com tal força, actividade , € 
diligencia , como fe tivefle eminente 
a mais vigoro(a guerra ; provendo tos 
dos dos Alcaides, que entendeo capa- 
zes de os (uftentar com honra. 
Creíceo nos Póvos à complacen- 
cia na fem demora , com que mandoa 
vender os votos do filho obediente ao 
Chéfe vifivel da Igreja , e com que 
cumprio exactamente o tetamento de 
feu Pai. Continuando a moltrar a ex- 
tenfaô do feu animo verdadeiramen- 
te Real, naô fo admittio no Reino 
honradamente a- Diogo Lopes Pache- 
ns co, 


8 Hrsrorra GERAL > 


Ersvolg. co, e lhe fez entrega de- tudo , quan- 
to o Rei D., Pedro mandára na ho- 
ra da morte ; mas ordenou , que 
aos herdeiros de Pedro Coelho; € 
de Alvaro Gonçalves Coutinho , tos 
dos matadores de D. Ignez de Caftro, 
fe lhes reftituífle a honra , que antes 
tiveraS as fuas familias , e todos os 
bens, que haviaô fido de feus pais. 

' Dadas efas difpofições , que ne- 
ceflariamente fe faziaó acceitaveis pa- 
ra inclinar os animos ao feu author ; 
D. Fernando feguio o exemplo dos 
feus Maiores na vifta do Reino, que 
entað nað incommodava as Povoações 
pelo trem moderado com que os Reis 
faziaO as fuas jornadas. Por toda a 
parte foi a fua liberalidade difpenden- 
do varios generos de beneficencias , 
que feriað nas idades recommenda- 
veis fe o Rei as talhafle mais pelos 
moldes da prudencia , que pelas me- 
didas dogofto. . 

Efe o tranfportou para pôr ao la- 

do com figura de mulher propria a D. 

Leonor Telles, que o era na realidade 

de Joad Lourenço da Cunha, Rana 
e 


DE PORTUGAL: LIV. XVIII. 9 


de Pombeiro. Aquelle homem, que Em vulg. 
paflou a Caftella , trazia pendente do 
chapeo a deviza da fua affronta em 
duas pontas , que diz Manoel de Fa- 
ria eraô cocar indigno para tremolar 
na alta fantafia de hum Fidalgo Por- 
tuguez. Della teve o Rei D. Fernando 
filhos, que morréraô meninos, a dous 
Infantes fem nome na Hiitoria ; e a 
Infante D. Brites, que nafceo em 
Coimbra no anno de 1372 : foi lua 
herdeira , e cafou a 14 de Maio de. 
1383 com D. Joaô I. Rei de Caftella, 
para trazer a Portugal huma innundai 
çað de embaraços, que corrêrað dilu- 
-vios de fangue , como veremos a feu. 
tempo. 
Sendo folteiro teve D. Fernando. 
` baftarda a D. Ifabel, que naíceo em 
1364, e calou com D. Affonfo Hen- 
riques , Conde de Gijon ; Senhor de 
Noronha, filho baftardo de Henrique 
II. de Caftalla. Efte Rei, que fe eftimu- 
Jou da indiferença com que feu filho 
D. Affonfo tratava a efpofa, que elle 
lhe déra , o defpojou dos (eus Efta- 
dos , e reduzio a tal extremidade , pi 
c 


yo > Historia GERAL | 


Eravulg. fe queixou em Avinhad ao Papa Gre» 


gorio XI. , e em Pariz a Carlos V.: 
Ret de França. Nada aproveitárad ao: 
Principe jnfeliz eftes recurfos ; porque 
Carlos VI. qne os concluio, pronun- 
ciou contra D. Affonfo huma fenten- 
ça tað fevera , que o tratou de re- 
belde ao feu Rei , e o mandou fahir 


de França. Elle fe retirou para a Ro- 


chella , aonde o veio encontrar fua 
mulher , que com elle viveo a ex- 
penfas da generofa Vifcondeça de 
Thouars , que lhes deo a Villa de 
Marans nas terras de Aunis. 

Oito filhos ficára6 defte matri- 
monio de Aflonfo, e Ifabel , que fo- 
rað D. Pedro, D. Joað , D. Fernan» 
do , D. Sancho, D. Henrique, D. Nu- 
no, D. Martinho Henriques , e D. 
Conftança, todos com o appellido de 
Noronha. Alguns deftes filhos do Con- 
de de Gijon vierað a Hefpanha, aonde 
cafou o primogenito D. Pedro , que 
he tronco de cafas grandes, e depois 
de viuvo foi Arcebilfpo de Lisboa. D. 
Joa6 morreo no fitio de Belaguer em 
Catalunha; D. Fernando foi ag 

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pm em A rr mr eme 


/ DE PoarocAL, Liv.xvim. qr 


Villa Real, origem dos Marquezes Era vulg. : 
deke titulo , Duques de Caminha, 
dos Condes de Monfanto, e de Linhã- 
res; D. Sancho foi Conde de Mira; 
D. Henrique calou com huma filha 
de D. Pedro Vaíques de Mello , Con- 
de de Atalaia; D. Nuno foi marido de 
D. Mecia de Ribadaneira , e ambos 
pais de D. Joanna, que cafou com D. 
Jfoaô Mafcarenhas , de quem defcen- 
diaô os Marquezes de MontalvaS; D. 
Martinho Henriques fervio ao Rei de 
França Carlos VII.; D. Conftança foi 
fegunda mulher de D. Affonfo , pri- 
meiro Duque de Bragança , fém fi- 
lhos. 
Foi D. Fernando o ultimo Rei 
varað legitimo do tronco do Conde D, 
Henrique , e tambem o ultimo dos 
hoflos Soberanos , que maíceo em 
Coimbra. As fuas qualidades brilhan- 
tes faô notadas pelas guerras impru. 
dentes , que emprehendeo ;- pelas li. . 
beralidades profufas , que exercitou; 
pela entrega total da vontade ás pel- 
foas , de que goftou ; mas antes da 
Hiftoria fe empregar na narraçaô da 
+ z Te- 


Era vulg. re(ulta deítes defeitos , he neceflário. 
nella melma fazer-fe reflexaõ fobre as 


1368 


12 Hiısrorra GERAL | 


No fim do Reinado precedente 
deixei eu ao Rei D. Pedro o Cruel de 


Caftella em Bayona de Inglaterra, fol- 
licitando do Principe de Galles D. 
Duarte foccorros para o reftabeleci- 
mento no Reino vulurpado por feu ir-: 
mað baftardo D. Henrique , Conde 
de Traftamara. Aquelle Principe bel-. 
licofo , que he hum dos ornatos ma- 


gnificos da Hiftoria do feu tempo, e- 


junto a feu Pai tinha a alta eftimaçao, 
que mereciaôd as fuas virtudes fubli- 
mes : Elle o fez conceber por hum 
dos empenhos mais honrofos a pro- 


tecçao favoravel ao períeguido D. Pe- 


dro , até o fazer remontar o fea Thro- 


no. Com exercito numero(o, a que a 


prefença do Principe, todo efpiritos, 
communicava muitas almas , marchá- 
rað elle , e o Rei pelos terrenos de 
Navarra, e entráraô por Caítella, Os 
fucceflos defta expediçao , como per- 
tencentes à Hiftoria daquella Monar- 


quia , nós lhe nað daremos mais ex-. 


ten- 


DE PORTUGAL, LIV. XVIII. 18 


tenfað , que a neceflária para ós pren- Era vulg.. 
dermos no fio da nofia. | 
Atacárad-fe os dous exercitos nos 
campos de Naxera; mas como o Prin- 
cipe de Galles trazia a fortuna ao feu 
foldo, e com a mefma que o acom- 
panhava em França, veio a Hefpanha : 
-fem embargo do valor deímedido das 
trópas de D. Henrique, e das gentile- 
zas » que obrou pelo feu braço , elle 
foi derrotado, o Marifcal de Guefclin 
prifioneiro, muitos os mórtos, € fe- 
sidos. Succedeo efta batalha a 6 de 
Abril no ânno antecedente de 1367, 
D. Henrique depois de tudo perdido, 
tornou a bufcar o refugio de França 
para dever ao feu Rei fegundo ampa- 
ro contra D. Pedro , que defenfreou 
a crueldade com a viétoria, quando a 
devia fazer hum eftimulo da brandura. 
Os Fidalgos, que lhe cahíraó nas mãos; 
mandou fem piedade degollalos, e 
para executar o mefmo nos prifionei- 
ros dos Inglezes, inftou com o Prin- 
cipe ordenafle, que lhos entregafiem 
por baixo reígate, com o pretexto de 
que em feu poder os tinha: mais fe- 
gu- 


14 HISTORIA GERAL ` 


Era vulg. guros. O Principe generofo, que ens 
tað acabou de lhe conhecer os fundos 
do animo, lhe refpondeo com os mo- 
dos graves » que lhe infpirava a cles 
mencia : Agora que vos vejo vences 
dor , vos contemplo chegado à con- 
juntura de perder o Reino; como naĝ 
attrahis corações, nað podeis fer So- 
berano ; fe zombais da vida dos hos 
mens, nem eu, nem o Rei meu Pai 
poderemos ajudar-vos. de 

De nada aproveitou efta adverten» 
cia pathetica de tal Protector em con- 
juntura tað critica. O Principe , que 
com o Rei elava em Burgos , lhe 
requereo o cumprimento do T'ratada 
na paga dos foldos , na entrega. de 
Bifcaia , e outras terras ; que pro- 
mettera a Inglaterra pelo feu reftabes 
Jecimento. Servindo-fe dete motivo y 
com apparencias , de que para cum- 
prir, tudo lhe era neceflario ir a To- 
Jedo , e Carmona, deixa -ao Principe 
em Burgos para a tudo lhe faltar. As 
terras de Bifcaia mandou ordens aper, 
tadas , para que aos Commiflarios Ine 


glezes nada fe entregafle; e nað pos 
den- 


sye 


i 


DE PORTUGAL, Liv. XVIII. Ig 


gendo conter-fe no exercicio da tyran- Ers vuige 
pia , elle meímo andou huma noite - 
por Carmona com as fuas patrulhas, 
recreando-fe de paflar á efpada todas 
as pefloas , que entendia faccionarias 
de D. Henrique. 
=- | Com o mefino femblante paflou 
a Sevilha , levando na fua vã-guarda 
o terror, que efpantava todas as claf- 
fes de vaffallos. Daqui enviou a Por- 
tugal o feu Chanceller Mór para ra: 
tificar as pazes com o Rei D. Fer- 
nando. O Principe de Galles , efcan- 
dalifado. de hum proceder tað eftranho 
a toda a confideraçaô , nað querendo 
perder em Caftella mais tempo , e. 
gente , que fe lhe diminuia com as 
- moleflias da Eflaçaô, fem vêr, nem 
fe defpedir do infeliz D. Pedro , fe 
fez na volta de Guiena ; levando por, 
fruto da' jornada, o arrependimento; 
D. Henrique , que efperavá em Fran- 
a o mefmo , que vio fucceder , e 
Caftella defafombrada da corage do 
Principe Inglez; em Setembro de 1367 
com o foccorro dos Francezes veio 
dar ás fuas pretenções , e aos feus 
“o E ` ami- 


16 Historia GERAL 


Rea wilg.: amigos huma alma nova. Por varias 
partes de Caíftella andou elle ganhan- 
do terras, e vontades , até fe apre- 
fentar fobre Toledo . que atemorifa- 
da da crueldade de D. Pedro, naô fe 
atreveo a recebello como defejava. 

Soffreo Toledo hum íltio de dez 
mezes com conftancia heroica, e re- 
fiftencia incrivel a huma fome extre- 
ma. Determinou D. Pedro foccorrel- 
la a todo o rifco, e com o feu ex- 
ercito chegou ao Caítello de Montiel; 
D. Henrique quiz fiar a fua fortuna de 
huma forpreza , e antes que feu ir- 
mað o prevenifle, marchou a toda a 
diligencia para o atacar na madruga- 
da. Os primeiros inveítidos, e derro» 
tados foraô os Mouros auxiliares, lo- 
go as trópas do Rei , que temerolo 
de perder a liberdade , ou a vida no 
alcance , fe recolheo no Caítello de 
Montiel. Diz o Padre Fr. Manoel dos 
Santos no VIII. Tomo da Monarquia 
Lufitana com huma politica, que der- 
rota na verdade a alma da Hiftoria , 
que no Caftello de Montiel fora o Rei 
D. Pedro morto por engano, Só a 

c 


a». o 


pe PortudaL, Liv. vir. 2% 


le` penfou efte acao, que foi revel- Eta Ei 
tido de todas as cireunftancias preme- 
ditadas, que eu vou a referir. 
Afflião D. Pedro por fe ver cers- 
cado , fem efperança alguma de foc- 
corro, nem de refugio, negociou com 
o Marifcal de Guefclin a fua liberda- 
de por meio de comfideraveis promef» 
fas. Guefclin fez a D. Henrique fabe- 
dor da negociagað , e fe convencio- 
náraô com o fegredo , que foi fó pa- 
ra elles. O certo le , que D. Pedro 
veio à tenda do Marifcal com a fe- 
gurança de quem fiava a Pefloa da fua 
fé : que eftando nella defarmado , com 
o acafo prevenido chegou D. Henri: 
que , e que travando-fe de razões, 
pafláraõ ás mãos. D. Pedro, que era 
muito forgofo, levou a Henrique de- 
baixo. Dizem os Chroniftas Caftelha- 
nos, que Guefclin nefte paflo , dizens 
do: Nað tiro Rei, nem ponho Rei, 
mas ajudo a meu Senhor : mudou à 
poftura dos combates, e pôz com vans 
tagem a D. Henrique. Outros que- 
rem , que efta manobra foffe feita 
por Fernaô Sanches de Toar. D. Hen-, 
TOM, V. B ri- 


-18 HisrorIA GERAL - 


Em vulg. rique , vendo-fe com fuperiodade, 
1369 por engano, tirou de hum punhal, e 
fem lhe fazer horror o fagrado da Ma- 
geflade abatida , matou a punhalladas. 
o irmaô Rei , de quem naíceo vafl- 

fallo. 

Defta maneira , na idade de 34 
annos , acabou a fua vida o Rei D. 
Pedro ás mãos de hum fratricida: Ca- - 
taftrophe, que encheo de horror aos 
Principes defintereffados da Europa , 
eípecialmente os das Hefpanhas , que 
logo fe alliára6 para vingar o fangue 
Real, nað ficando de fora o Rei Mou- 
ro de Granada , amigo de D. Pedro. 
Que a ambiçaô teve huma grande par- 
te nefte zelo, os effeitos o moltrárad ; 
e o titulo de ufurpador em D. Hen- 
rique era hum pretexto bem efpecio- 
fo para muitas ufurpações. Os Reis 
de Navarra, Aragaôd , e Granada nað 
ia tempo em fe lançar fobre as 

raças, que podiaô fazer mais reípei- 
taveis as fuas fronteiras, e efte era o 
unico direito da conquifta. O Duque 
de Lancaftro, filho de Duarte de In- 
glaterra., que cafou com D. Conftan- 
ça, 


— mem a , 
CN 
ce ml a mm rm 


DE PortTuGAL, Ltv. xviir. 19 


£a , a mais velha dos filhos do Rei Eta volg 
D. Pedro havidos em varias mulhe- 
tes , pelo meímo tom com que exa- 
gerava a dor da morte injuíla de feu 
fogro , perfuadia a infallibilidade do 
feu direito ao Throno vago. Portus 
gal, como mais vilfinho, meditava a 
conjuntura favoravel aos feus intere(s 
fes, e fem medida talhou huma vaf- 
ta extenfaô de idéas , que perdêrað o 
proprio pelo defejo de haver o alheio, 
como eu paflo a moftrar no Capitu- 
“Jo feguinte, 


CAPÍTULO IH. 


O Rei D. Fernandp fe empenha em 
huma md bg com ofim 
de conquiltar o Reino de 
Caftella. 


Cox femelhangas do grande Ale- 

xandre de Macedonia , o- nofio Rei 

D. Fernando principiou a guerra con- 

tra Caítella , dando tudo, e refervan- 

do para fi a efperança, Elle repartia 

tanto por. cada Caftelhano defconten- 
- B ii te 


j 


ao Historia GERAL 


Era vulg. te de D. Henrique , que vinha offes 


recer-fe ao feu ferviço , que fe def- 
tribuifle a ametade por meia duzia de 


Portuguezes , veria feis baluartes de 


firmeza na face do inimigo. Elgueceo- 
fe D. Fernando , de que feu Pai o 
Rei D. Pedro, tio do cruel de Caf- 
tellas, reconhecêra a D. Henrique, e 
com elle celebrára hum Tratado de 
paz, e alliança. Agora D. Fernando 
o injuriava com os epithetos de ufur- 
pador , fratricida , traidor , intruío 5 
e abrio a porta aos defcontentes , que: 
lhe roubárad a cafa propria com a in- 
duftria das efperanças , que lhe fizerað 
conceber do dominio de hum novo 
Reino. Elle deo quinze Villas a D. 
Fernando de Caftro Xerés , cunhado 
do Rei Henrique : nove Villas, o 
Condado de Arraiolos, e o emprego 
de Condeftavel a D. Alvaro Peres, 
irmaô do dito D. Fernando : dezafeis 
Villas a D. Fernando Affonfo de Sa- 
mora: cinco Villas a D. Mendo Ro- 
drigues de Seabra : fete Villas a D. 
Gonçalo Martins de Caceres : duas. 
Villas a D. Affonfo Gonçalves : feis. 
E dd “vil 


+: 


m a ——— + 


trem 


DE PORTUGAL, Liv. XVIII 21 


“villas, que repartira6 entre fi D. Joa6 Eta volg 
“Fernandes de Andeiro , e D. Affonfo 
de Baeza: quatro villas a Vafco Pe- 
-yes de Camões, progenitor do gran- 
de Poeta defe apellido : feis villas pas: 
ra amigavelmente pofluirem D. Pedro 
Affonfo Giron , e D. Affonfo Peres : 
duas Villas a D. Lopo Gomes, e ou- 
tras duas a D. Affonfo Lopes : tres 
villas repartidas por D. Lopo Rodri- 
gues , por Gonçalo de Agujar , por 
D. Affonfo Moxicá , e por D. Paio 
Rodrigues : duas Vilas a D, Rodri- 
go de Villegas : fete Villas a D. Af- 
fonfo de La-Cerda, além de innume- 
raveis gratificações pecuhiarias , com 
que ficou Portugal em poder dos Caf- 
telhanos antes de fazer a guerrá a Caf- 
tella. | E 
Efes grandes homens , que fe 
viraô tað remunerados fem mais me- 
recimento , que a liberalidade natural 
de D. Fernando, nenhuma dúvida ti- 
verað em preferir o ferviço , e refi- 
dencia de Portugal ao amor, e com- 
modidades da propria Patria, que nað 
-era de mãos -taô rotas. Seguiraô o feu 
a CXs 


N 


22 - HisrorIA GERAL E 


Era volg. exemplo muitas Cidades, e Villas de 


Caftella , que reconhecendo no mefe 
mo Rei a legitimidade do fangue do 
feu Santo D. Fernando , lhe efcrevê- 
rað fubmettendo-fe ao feu dominio, 
e pedindo as defendefle como Senhor 
da tyrannia de hum intrufo. Galliza, 
e as terras de Lead forað as mais em- 
penhadas nos rógos, que encontrárad 
a acceitaçaô tað facil , como os feus 
paizanos achavaô a liberalidade fran- 
ca. À eftas offertas do Reino, e das 
pefloas fabia a politica de D. Fernan- 
do occultar as intenções com a indif- 
ferença , dizendo : Que Rei de Caf- 
tella fofle quem Deos quizefle ; que 
elle nað pretendia mais, que fazer os 
ultimos esforços em vingança da mor- 
te de feu primo o Rei D. Pedro. | 
| Refoluto D. Fernando a romper, 

mandou-fe juftificar, e expôr ao Pa- 
pa, e Principes da Europa o direito, 
que tinha á Coroa de Hefpanha ufur- 
pada por hum baftardo. Ajuftou paz 
por cincoenta annos com o Rei de 
Granada, que nað a obfervou, com- 


pondosfe pouco depois com D. Hen- | 


ri- 


— meee es a mi LD o - 


DE PORTUGAL, Lrv. XVIII., 43 


rigue. O Rei de Araga6 mandou Em- Era vulg 
baixadores a Portugal com o meímo 
fim, cajultáraô a divifa de Caftella 
em forma, que ao Rei de Aragad fi- 
earia o Reino de Murcia, o fenhorio 
de Molina , e outras Praças.: a D. 
Fernando o refiante de Caftella , e 
Leaô com titulo de Reino , unido á 
Coroa de Portugal: que efta pagaria 
a Araga6 por tres annos 350v lanças 
para a guerra: que a Infante D. Bri- 
tes, irmã do Rei D. Fernando , cå- 
faria com o Duque de Girona, Prins 
cipe herdeiro de Aragad. Com eftas 
diífpofições fe declarou a guerra, que 
o Rei principiou no mez de Junho 
com o rendimento de Tuy, Compof- 
tella , e Corunha, que nos fez agora 
prefente do feu natural Joaó Fernan- 
des Andeiro , depois Conde de Ou- 
rem, e elle entre nós a grande figu- 
ra , que tem de fazer repre(entações 
varias no noflo theatro até confum- 
mar o ultimo auto da Tragedia. 
A noticia das marchas forçadas 
som que D. Henrique vinha acodir a 

Galiiza , naó deixou mais ago r 

c 


24 . Historia GERAL 


é 14 vulg.” Rei (que paflou áquelle Reino mais- 


em tom de triunfante , que de guere’ 
reiro ) que o neceflario para fe em- 
barcar em huma das fuas Galés , e res. 
colher-fe ao Porto, deixando reforça- 
da a guarniçaô da Corunha. D, Hen- 
rique:, que com as fuas altas quali 
dades adquirio a anthonomafia de Ma-, 
gnifico. , nað lhe fazendo efpecie os. 
outros inimigos , quiz moftrar o feu 
re(entimento a Portugal, atacando as 
Praças , que feguiraôd a fua voz , 6 
efcolheo a de Samora para defcarre- 
gar nella os primeiros golpes. O (eu 
esforço encontrou a refiftencia dura 5 
e ou fofle por nað arrifcar a reputa- 
cad. e as forças, ou por acodir á in- 
vafaô. de Galliza ; elle levantou o fi- 
tio , e refolveo-fe a: decidir comnof- 
co a fua fortuna em huma batalha. 
Como D. Fernando fe havia retirado, 
foi facil a D. Henrique focegar a per- 
turbaçaô de Galliza ; entrar por Por- 
tugal devaftando a Provincia do Mi- 
nho , e fitiar aCidade de Braga, fem 
os. Portuguezes apparecerem na campae 
nha, nem fe opôr aos feus defignios. 
sisi Con- 


N 


DE PORTUGAL , Liv. XVII. 24 


«e Conta o nofo Agiologió, que SAUE 
nefta occafiað as almas de D. Affonfo 
Sanches , e de D. Therefa Martins, 
Fundadores do Convento de Santa Cla= 
ya de Villa de Conde , fallárað dos le~ 
pulchros dos feùs córpos á Prelada 5 
advertindo-a fe retirafle com as fuas 
Freiras para o Porto ; porque tia ma- 
nhã feguinte os Caftelhanos faqueariaó 
a Villa, nað fuccedefle profanar-lhes 
o facrario da pureza, Rendeo-fe Braga 
por falta de foccorro:;. e D. Fernan- 
do, com a meíma facilidadé com que 
rompeo a guerra , offereceo agorà a 
paz ao Marifcal de Guefclin por meio 
de hum Mercador eftrangeiro, que O 
conhecia. Foi elle bem: recebido da 
Rei , que o mandou com.o mefino 
Marifcal tratar os ajuftes, que fe naĝ 
effeituárað , com o Conde de Barcel- 
los. Quando D. Henrique acabava de 
render Bragança, e outros Lugares na 
Provincia de Tras-os-Móntes , foi 
avifado da perda , e deftruiçao da imr 
portante Praça de Algezirá pelo Rei de 
Granada, que fe fervia da fua aufencia 
para avançar conhderaveis as conqui Fo 


NE 


Era vulg. 
1370 


26. . HISTORIA GERAL 
Efta noticia defconcertou ás mes 


didas de D. Henrique, que Houve de: 
abandonar a empreza de Portugal para. 
refitir á divería6 de Granada. O mo- 


vimento nað efperado deíta retirada 
fez lembrar ao Rei D. Fernando, 
que as armas de Caftella nað. confen- 
tiaô divifaô, e por ifilo devia elle con- 
tinuar a guerra com vigor na fron- 
teira, e fazer declarar a D. Pedro de 


= Aragaô pela fua. Para o primeiro de- 


fignio áugmentou o número dos Offi- 
ciaes, e das trópas ; pedio foccorros 
a Inglaterra , que lhe foraô manda- 
dos com o Conde de Cambrix por 
Commandante , mais a deftruir , que 
a fer proveitofos a Portugal; e apref- 
tou huma grofla armada de 30 nãos; 
e 32 galés para atacar as coltas de 
Andaluzia, 

Para o fegundo projecto mandou 
a Aragaô os. Bifpos D. Martinho de 
Evora, D. Joað de Sylves, Fr. Marti- 
nho, Abbade de Alcobaça, e o Con- 
de de Barcellos D.Joaô Telo de Me- 
nezes com huma efquadra de galés , e 
prefentes, que tudo refpirava grande- 

Zàs 


o A a e regra rem PA — Ra ger mea NE 


DE PORTUGAL, Liv. XVIII. 27 


ga, e magnificencia , para ajuftarem o Era vulg. 
cafamento com a Infante D. Leonor, 
e a conduzirem a.Portugal. Foi efte 
o primeiro malogrado ¢afamento de 
D. Fernando, que jufto , e celebrado 
com todo o prazer do Rei D. Pedros 
Pai da Infante , fuppofta a difpenfa, 
que para elle havia conceder o Papa ; 
fem fe encher efta condiçaS , nad 
conveio o Aragonez na partida de 
fua filha pára Portugal , que anciofae 
mente a defejava. . 
Accendeo-fe a guerra por todas as 
noflas Provincias para defaggravarem 
com muitos golpes a hum tempo + 
os que deixáraó de dar os braços ocio- 
fos na campanha paflada. Pela do Alem- 
Téjo entráraô os Infantes D. Joaô, e 
D. Diniz, que arrazáraô todas as obras 
exteriores de Badajoz. Pela meíma pat- 
te penetrou a terra com goo homens 
o bravo Gil Fernandes, fazendo huma 
preza tað confideravel, que oecupava 
huma legoa de terreno. Para disfarçar 
O feu pouco poder , e falvar a preza 
fem o perigo de o virem reconhecer , 
fingio-fe, ẹ fe fez tratar pelo un 


28 Historia GERAL | 


Eri vulg. D, Joab, efpalhando a voz das grans 


des forças , que o feguiaõ. Eltratage» 
ma: que conteve os Caftelhanos , e 
que lhe fervia para introduzir no Rei- 
no toda a preza fem algum fuf- 
to. Os Senhores da Familia de Caflro 
em Galliza (uftentavaó as nofias Pra- 
ças naquelle Reino, e nað davað def- 
canço às armas dos inimigos. Pela Bei- 
ra comprio os (eus deveres o Frontei- 
“yo Lourenço Gomes do: Avelar com 
as conquiftas de Cerralvo , S. Felices, 
e Inojofa. | é 

No rio de Sevilha entrou a noffa 
armada das galés , aonde efteve muito 
tempo furta fem acçaô. Determinou O 
Rei de Caftella furprendella pela fome, 
que já principiava a fentir ; e man- 
dou ao feu Almirante D. Ambrofio 
Bocca-Negra com huma grafia efquadra 


a impedir-lhe a fahida para render à 


nofla fem peleija. Nós nos viamos em 
eítado «de nað poder combater, nem 
fubliftir , e esforçamos as induítrias 
para nos falvar. Como a efquadra ini- 
miga formava huma linha, que tomas 
va toda a bocca do rio , epen mos 
: U- 


— — -1ml `. a aa 


DE PORTUGAL, Liv. XVIII. 29 


húma noite efcura: poftâmos as galés Era vulg.. 
em ala com a proa de cada huma fo- 
bre a popa da outra: a chuíma com os 
' remos promptos a efperar o final pas 
ra a voga: accendemos o fogo em 
dous navios carregados de azeite į al- 
catra , e outras materias combufli- 
veis : deitamollos ao tom da corrente 
rápida , que deícia , e foraô as galés 
em voga furda , feguindosos no mo- 
vimento : hiað elles cahindo fobre a 
armada Caftelhana , que temerofa do 
perigo ; abrio pelo centro para dar 
pafilo aos brulotes , que já eraô dous 
incendios. Entaô os noflos , apertan- 
do os punhos , a toda a força da vos 
ga arrancada , em pouco efpaço fahi- 
Tað pela abertura ao mar, e fe poze- 
rað em falvo, | 
Dous fitios defta campanha fo- 
yað as acções mais gloriofas de toda 
ella. Sobre Cidade Rodrigo veio o 
Rei de Caftella em pefloa com exer- 
cito poderofo , publicando que efta: 
empreza era digna do feu caradter. Em. 
dous mezes de ataque vigorofo achou 

fempre. taô prompta a refiftencia, que, 

E por 


30 Historia GERAL 


Era vulg. por nað arrifcar as forças, aonde amols 
gava a opiniaó , teve de levantar o 
útio , fervindo-lhe as incommodida- 
des do Invemo de pretexto para es- 
friar no conceito dos homens oardor 
da nofla corage. Mollrára6 os fuccef- 
fós ,. que nað os acafos , mas o es- 
forço fuftentoe Cidade Rodrigo na 
nofla obediencia até ao Tratado da 
paz, em que por convençaô a cede- 
mos. À retirada do Caftelhano defcon- 
certou as medidas do Rei D. Fernan- 
do , que fe fazia preftes para o invel- 
tir no campo, Por nað kítarem ocio- 
fas as armas , que tinha: juntas, divi- 
dio o exercito em tres corpos para en- 
trar em Caítella por partes difterentes. 
Os eftragos furaô infeparaveis deltas 
invasões; mas dellas nað fe recolhêrad 
outros intereffes , que derramar o ter- 
ror nas terras, que feguiað a voz de 
D. Henrique. | | 

Sua mulher a Rainha D. Joana 
foi a authyra do fegundo fitio; e emu- 
la da gloria do marido , a quiz adqui- 
rir na conquifta de Carmona, que de- 
pois de lhe dar a eftimaçaô de Herois 

l na, 


DE PORTUGAL, LIV. XVII. 31 


na, ella julgava o meio mais efficag Efa wulg. 
para o reftabelecimento dos negocios 
do Reino, Na téfta das fuas trópas, 
a que dobrava os alentos a façanho(fa 
prelença mulberil , mandava ella ob- 
fervar tantas formalidades militares, e 
avançar combates tað vigoro(os , que 
nað fe podiaô conceber o vigor, ea 
dexteridade. Mas era Commandante 
defta Praça por Portugal o bravo D, 
Martim Lopes , Graô-Meftre da Or- 
dem de Calatrava, chamado por ou- 
tros D. Affonfo Lopes de Texeda , 
que na formofura da defenfa obrou gen- 
tilezas tað cheias de heroicidade , que 
a todas as memorias fizerad O feu no- 
me refpeitavel. Na6 entendeo a vaida- 
de da Rainha , que refiftencia feme- 
lhante fe atrevefle á {ua face , fenað 
macillenta pelo medo , já vermelha 
pela colera , que lhe accendia a con- 
fiança. Ella propoem a D. Martinho, 
que fe renda, antes que o furor das 
armas: o obriguem a hum arrependi- 
mento a que ferá inexoravel a clemen- 
cia O Heróe , que fabia dar lugar 
á civilidade na maior fortaleza do ars 
e dor, 


32 Historia GERAL ! 


Era vulg. dor, lhe reípondeo: Que o reípeito; 


nað os luftos , lhe movia os defejos 
de obfervar as fuas ordens; mas que 
hum embaraço taô confideravel , co- 
mo era a honra da fidelidade promet- 
tida ao Rei de Portugal , que elle 
reconhecia legitimo -de Caítella , lhe 
prendia o paflo para o dar em outro 
ferviço, que nað foffe o daquelle Prin- 
cipe: Que lhe concedefle tempo para 
o avilar das fuas pretenções, na cer- 
teza , de que nað faltaria á execuçad 
das determinações, que recebefle. 
Condeífcendeo a Rainha com & 
propoíta de D. Martinho , pedindo. 
dous de feus filhos em refens , que a 
General politico nað duvidou entregar 
á delicadeza da fé de huma Princeza , 
que fe intitulava Rainha. Immediata- 
mente deípachou avifos a D. Fernan- 
do do eftado de Carmona ; da refolu- 
gaô das trópas em a defender até a 
ultima extremidade ; mas que era nes 
cefario Sua Alteza nað lhe demorar. 
os foccorros , que fem elles, a conf- 
tancia da fitiante renderia inuteis os 
esforços dos fitiados. D. Fernando y 
, que 


DE PORTUGAL, Liv. Xv. 33 


xue tinha o exercito prompto , e de- Età vulg; 
via marchar fem demora a huma ace 
çað tað importante , gaítou o tempo 
em confelhos fem deliberaçaô ; con- 
tentando-fe de mandar reforçar a Praça 
com 7o homens. Se elle quiz afim 
perfuadir aos inimigos, que os def- 
prezava, a fua facilidade o enganou, 
e de nada lhe valeo a conftancia pal- 
mofa com que a politica de D, Martt- 
nho prefumio remediar a mal adver- 
tida do Rei D. Fernando. | 
A Rainha, impaciente, por cone 
cluir huma empreza, que olhava co- 
mo obra toda fua, apenas efpirou o: 
prazo concedido a D. Martinho lhe re- 
querco a entrega de Carmona. O bras 
vo Heróe, que media pela fua intre- 
pidez a de toda a guarniçad ; que tinha 
firmado na idéa deixar ao mundo 
hum exemplo immortal de fidelidade, 
reípondeo á Rainha, que elle já mais. 
coneebêra penfamentos de fe render , 
fempre refoluto em fuftentar huma 
defenfa com fuperioridade infinita ao 
valor, com que fofle atacado, A fes 
zeza defa reípoíla foi hum. eftrago da 
TOM. V. G mo- 


34 Historia GERAL 7 


Era vulg. moderaçaS da Rainha, que fem outras 


lembranças , fenaő as dete aggravo, 
o concebeo em tal tom de injuriofo, 
que lhe arraítou o animo inteiro para 
a vingança a qualquer cufto. Ella man- 
da conduzir á vifta de D. Martinho. os 
dous filhos, que élle lhe mandára em 
refens , bem longe de imaginar, que 
huma mulher havia fer authora da 
atrocidade , que vou a referir. Ella o 
faz notificar , que eleja, ou a entre- 
ga de Carmona, ou fer teftemunha da 
morte , que a punhaladas manda dar 
na fua face aos dous pedaços tenros 
da fua natureza, Fludtuad em D, Mar- 
tinho a fidelidade ao Rei, e o amor 
dos filhos ; a reputaçaô, e. o fangue $ 
quanto ha de mais nobre , e mais fen- 
fivel. Com poucos intervallos de ine 
decifaô prevalece o generofo ao deli- 
cado ; e diz D. Martinho lhe degolem 
feus filhos, que elle eftá prompto pa- 
ra ver a execuçad com a indifferença 
de huma montanha. - 


Efta refftencia mais fublime., que 


a de quantas defenfas ha heroicas , fe 


havia aballar o peito de D. Joana pa-. 


». ra 


pe PORTUGAL , Liv. xvit. 35 


ga fe render piedofa ; ella a enfure- Èta wulg. 
ceo para fe conduzir atroz ; ordenan- 
do, que entre a Praça, e o exercito 
os dous innocentes Fidalgos fofem 
defpedaçados, Morte deshumana ;; 
que tifna a gloria de huma Prince- 
za com mancha inapagavel : Morte 
barbara , que eftimula os efpiritos de 
hum pai para vender cada pedra dos 
muros de (Carmona pelo preço de 
muitas vidas. He horror quanto da- 
qui em diante obráraôd a cólera, ca 
defefperaçaô , a corage , e o furor. 
Mas o Heróe, que da fenfbilidade da 
dor nað apartava a obfervancia das 
maximas da prudencia, Vendo Car- 
mona em eftado de naô poder mais 
defender-fe , para poupar vidas im- 
portantes de homens , que nað erað 
feus filhos por natureza , ainda que até . 
entað o foflem da difciplina , elle ca- 
pitula, e fe entrega. 

Já netes tempos parece que ti- 
nha fequito no mundo a maxima per- 
niciofa , e abominavel, que enfina : 
Como os juramentos naô tem nada de 
bom , fenað em quanto-fervem de 

C ii meio 


36 - HISTORIA GERAL 


Era vulg. meio „para enganar os homens. Jurgi 


rað os Reis de Cafítella, e promettê» 
rað a D. Martinho Lopes , que elle, 


e a fua guarniçaô fahidem de Carmo- : 


na para onde quizeflem , falvas as vie 
das, e as fazendas. A execuçaS def- 
mentio a promeíla , e o juramento ; 
menos eftimaveis aos Reis, que a 
perda da liberdade de D. Martinho , 
e que a poffe dos muitos dinheiros , 
que (e guardavad em Carmona , cos 
mo lugar de fegurança. Tudo foi ap- 
prehendido, D. Martinho preío, por- 
que o Rei D. Fernando afim o quiz; 
e como a authoridade , e reputaçaô 
defle grande homem fazias aos Reis 


huma fombra , que lhes nað era to- 


“leravel; D. Henrique, raras vezes exa- 
&o , e fempre político, nað efcrupu- 
lifou com o juramento , e promefla 
para mandar tirar no carcere a vida 
a D. Martinho Lopes. 

Entendeo D. Fernando, que co- 
mo elle nað teve a gloria de dar a D; 
Henrique a batalha para que o defa- 


fiou, quando efteve fobre Cidade Ro- 


drigo, que ficára difpenfado para focs 
| ra * Cor- 


= DE PORTUGAL, Liv. xvin. 47 


correr Carmona, aonde os eccos def- Eta vulg: > 
ta reputaçaô imaginaria baítaria para. 
derrotar as ideas dos inimigos. Ago- 
ra que os fucceflos moftrárað o erro 
dos difcurfos , para faldar a québra 
da inacçaó, mandou ao Almirante Lan- 
carote Peçanha com a elquadra Por- 
tugueza atacar a Caftelhana ; mas co- 
mo efta tinha ordem para fe defviar 
do combate , reduzio-fe a expediça6 
a fazer varios defembarques fem fru- 
&o na cóta de Cadiz, e voltar aar- 
mada para os portos donde fahira, 
- O clamor defta guerra ferio os 
ouvidos do Papa Gregorio XI. que 
temia fe approveitaflem della os Mou. 
ros de África , para , amparados á 
fombra do Rei de Granada, entrarem 
no projeto da reconquiíta de Hefpa- 
nha. Receio tað bem fundado o obri- 
gou a empenhar em offícios promptos, 
e efficazes os principaes Prelados de 
Caftella , e Portugal para difporem 
os animos dos feus Principes a ajuítes 
yazoaveis ą que elle mandaria con- 
eluir pelo Cardeal Agapeto Colona, 
já nomeado para vir aos dous Reinos 
in- 


Era vulg. 


SA 


38 . Hisroria GERAL 


“indicar as fuas boas intenções, de que: 


logo veremos os efteitos. 


CAPITULO IL 
Ajuha-fe a paz com Cafella , e fegun- 


do cafamento para D. Fernando com 
a fua Infante D. Leonor a defpra- 
ser da Leonor de Aragað , efe tra- 
tağ outros acontecimentos. 


A CHEGADA dos Legados Pontifi- 
cios á Hefpanha fez mudar o fem- 
blante á tantos fucceffos trites: Fa- 
ceis em admittirem as propoftas de 
paz , D. Henrique pela necefidade , 
que della tinha para fe fuftentar no 
Throno , e domar a ferocidade de 
vaflallos teimofos ; D. Fernando pela 
volubilidade natural, que lhe fazia dif- 
ficultofa a permanencia, D. Henrique 
nomeou Plenipotenciario a D. Affon- 
fo Peres de Gufmað , Alcaide Mór de 
Sevilha , e D. Fernando ao Conde de 
Barcellos D. Joað Affonfo de Mene- 
zes , que já fe havia recolhido de Ara- 
gað a Portugal fem a Infante D. Leo- 
nOr a 


DE PorTUGAL, Liv. XVIII. 39 


hor, quê fora conduzir. Deftinou-lé. a Eta volg. ` 
Villa de Alcoutim no Algarve, fron-. | 
teira a S. Lucar do Guadiana , para 
lugar das conferencias, que principiás 
rað em Dezembro do anno paflado de 
1370. Reduziraõ-fe eftes ajuítes á mu- 
tua entrega das Praças conquiftadas : 
á liberdade plena dos Caftelhanos, que 
quizeffem ficar em Portugal, e os Por- 
tuguezes em Caftella : á promefla de 
cafamento de D. Femando com a In- 
fante D. Leonor, filha do Rei D. Hen- 
tique com os dotes arbitrados , que 
fe efcula5 nomear como circunftan- 
cias de hum matrimonio , que nað fe 
chegou a concluir, | F 
O Rei de Aragað , que nað foi 
incluido nete Tratado , fe queixou 
altamente de D. Fernando , aílim pe- 
Ja paz com Caftella , como pelo ajuf+ 
te do cafamento com a fua Infante , 
fem attençaô aos efponfaes antes con- 
traidos com fua filha. A dificuldade 
de impedir huma , e outra negocia- 
cad, eflimulou os defejos de algum 
refentimento , que honeftamente fe 
pudefle pretextar. Os primeiros S 
| pul- 


40o - Historia GERAL | 


Ecg vulgo: pullos forab de prender os Embaixas 
dores , que na fua Corte deixára o 
Conde de Barcellos , efperando a dif- 
penfa do Papa; mas como appoderar- 
fe de 2151 marcos de ouro , que O 
Rei de Portugal tinha promptos em 
Barcelona para as deípezas do cafa- 
mento , era lance mais conveniente : 
Publicando os muitos gaftos, que D. 
Fernando o obrigára a fazer, e que 
de alguma forte os havia refarcir, ef- 
ta perfuafað córou o pouco efcrupulo 
de fe utilifar do alheio. | 

Como tanta profufad , mercês , 
e gratificações, que o Rei fez na oc- 
cafiaô defta guerra inconíiderada , di~ 
minufraô huma grande parte das Ren- 
das Reaes; elle fe quiz compenfar au- 
gmentando o valor dos generos: Idéa 
fatal aos- Eftados , que fobre provo- 
car a murmuraçaO , a impaciencia dos 
Póvos; obriga os Eftrangeiros a que 
levem no cambio dos contratos o dis 
nheiro corrente em lugar das efpecies 
do Paiz , que no avance dos preços 
lhes derrota6 o Commercio. Clamou 
o Reino com a câreflia dos viveres į 

com 


DE PORTUGAL, Liv. XVII. 41 


tom o augmento do valor da moeda, Eta vulg. 
e os Ecclefiafticos , que -pelas Leis 
precedentes eftavað impedidos para 
pofluirem bens de raiz, e as contravi- 
nhaó por meio das Doações, que eu 
deixo dito : Agora acompanhiraô o 
Povo no defprazer , quando vírað , 
que o Rei lhes atalhava o pafo com 
a obrigaçaôd impofta aos T'aballiães de 
nað fazerem as Cartas de Doaçaõ ; e 
que para os Ecclefiaíticos , que dalli 
em diante compraflem com licença 
fua , ou dos Reis futuros , houvefle 
hum livro de Chancellaria , em que 
fe refiftaflem as licenças; que á cele- 
braçaô da venda aftiffem o Almoxa- 
rife Real, e o Efcrivaô da terra para 
impedirem , que o valor da compra 
nað excedefle a quantia concedida na 
licença. Efta providencia foi derroga- 
da pelo Rei D. Affonfo V. que con- 
cedeo faculdade aos córpos de Maô 
morta para pofluirem bens de raiz com 
as formalidades, e reftricções, que fe 
contem nas fuas Leis. | 
Já tinhaô efpirado os cinco me- 

zes taixados na paz de Alcoutim para 

l o 


42 Historia GERAL 


Era vulg. o Rei celebrar o feu cafamento conb 
1372 a Infante D. Leonor de Caftella : Al- 


liança , que entranhavelmente defeja- 
vað ambos os Reinos, como meio de 
fazerem firme a concordia. D. Fernan- 
do, porém, com a mefma facilidade 
que teve em lançar dos feus interefles 
a D. Pedro de Aragaô , com a meíma 
muda de fentimentos, e arroja delles 
a D. Henrique de Caftella: Havia na 
fua Corte outra Leonor , nome para 
efte Rei terrivel, por nafcimento fua 
vaflalla; mas com dotes da natureza , 
que lhe “dera a preferencia no cons 
curfo com duas. Infantes , filhas dos 
maiores Soberanos de Hefpanha. Era 
Dama da Infante D. Brites, irmã do 
Rei, D. Maria Telles de Menezes, 


viuva de Alvaro Dias de Soufa, e fi- - 


lha de Martim Affonfo Tello de Me- 
nezes. Ella tinha outra irmã calada na 
“Beira com Joaô Lourenço da Cunha, 
chamada D. Leonor Telles, que veio 
vifitar D. Maria ao Paço, aonde ficou 
hofpeda, e entrou Cometa, que arraf- 
tou, e efcureceo o primeiro Aftro. 
D. Fernando a vio, e perdeo-fe : che- 

gou 





DE PORTUGAL , LIV. XVIII 43 


gou o tempo della voltar para feu ma- Praias 
rido, o amor a prende, o poder lhe 
detem o pafio. 7 nm É 
Declarou-fe o Rei com D. Maria, 
e logo lhe períuadio , que o feu ardor 
nað era lavareda de amante ; mas in- 
tençaô de eípofo : que como tal fazia 
a D. Leonor a fineza de abandonar a 
Infante de Hefpanha para ella fó ter 
lugar no thalamo, e no Throno: que 
o feu matrimonio com Joaô Louren- 
go eftava nullo por ferem parentes nað 
difpenfados : que elle tomava á fua 
conta romper todos os laços , tirar 
todos os tropeços., que a elle lhe po- 
diaô impedir é gofto, a D. Leonor a 
fortuna. Soube D. Maria fingir lances 
de honra, affe&tar difficuldades no ef- 
candalo, propôr receios dos vaffallos ; 
` mas de tudo cedeo facilmente ; que 
promeflas de huma Coroa fað tað atra- 
“éivas, que mal lhe podia refiflir hum 
peito fragil , quando ellas fazem ba- 
quear os mais conftantes. Ver huma 
irmã vaffalla Rainha de golpe era bata- 
ria » que nað havia deixar de abrir 
brecha. D. Leonor fe rendeo ao pri» 
KA i Mel» 


Era vulg. 


44  Hisrorta Gerar 


meiro tiro, e já fem lembrança de: 


Joaó Lourenço da Cunha, entra a ef- 


timar-fe mulher do Rei D. Fernando. 


de Portugal, 


Para fe effeituar o cafamento , 


era neceflario que Roma declarafle a 
nullidade do primeiro, como fez pela 
proximidade do parentefco, que nað 
tinha fido difpenfado. Elta acçaô em 
fi meíma odiofa, caufou no Reino in- 


felicidades, nos Póvos revoluções, efe. 


pecialmente no de Lisboa , que fe 


'fubleyou contra o Rei, e tomou as 


armas. Elle pôz na fua tefta a FernaS 
Vaíques, hum homem da plebe de- 
fembaraçado , e fallador , para repre- 
fentar por todos o efcandalo, que re- 
cebiaô em huma defordem digna de 
fe atalhar a todo o cuíto. Nas adver- 
tencias que elle fez ao Rei, mas com 
as armas na mað , lhe rogou olhafle 
mais pela fua reputaçaô , que pelo 
feu amor; mais pelo interefle dos feus 


vafallos, que pela paixað a huma mu- ` 


lher alheia, que elle naő podia fazer 
propria, nem os feus vaflallos haviad 
confentir. A política do Rei negou 

tos 


me o ea anamaria Te mt 


-DE PORTUGAL, Liv. XVIII. 4$ 


toda a verdade das fuas intenções , e Era vulg, 
para focegar a inquietaçað , ordenou 
ao Povo, que na manhã feguinte fe 
achafle na Igreja de S. Domingos, 
aonde elle fem referva lhe declararia 
tudo em pefloa. Acreditou Fernaõ 
Vaíques a palavra Real, como deve- 
ra , e fez que todos fe recolheflem 
para no outro dia ouvirem no lugar 
deíftinado a refoluçaô do Rei. 

Elle fe aproveitou da noite para 
fe. retirar com D. Leonor, paflarem a 
Santarem „dahi á Provincia do Mi- 
nho, aonde arecebeo por mulher no 
Molteiro de Leça. Daqui emanára6 
pelo Reino ordens bem eftranhas á 
eíperança da credulidade do Povo de 
Lisboa, que vio convertidas em amea- 
ças as primeiras doçuras ; as promef- 
fas benignas em execuções rigorofas. 
Julgou o Rei delinquentes a todos os. 
que fe opunhaó ao feu gofto, ouno- 
tavaô de ligeira a fua refoluçaô. En- 
tað o zelo, o amor, a fidelidade fen- 
tiraS as penas de inconfidentes na con- 
fifcaçaô dos bens , nas mãos , € pés 
cortados , como entaô (e ulaya , < íe. 
| ez 


gó - Historiá GeraL 


Esa vulg. fez o ufo mais vulgar por hum crime 
novo. Eítas execuções rigorofas , que 


tinhaô origem em hum amor tenro , 
aflombráraõ os mais intrépidos , igual» 
mente fenfiveis ao feu terror, e á ma» 
goa de: verem andar o feu Rei pelo 
Reino, de terra em terra, moftrando 
ao lado como Rainha a fenhora, que 
elles fó reconheciaô mulher de Joaő 
Lourenço da Cunha. ? 
| Diogo Lopes Pacheco , o mata- 
dor de D. Inez de Caftro, e parente 
muito chegado daquelle Fidalgo , nað 
teve valor para ver duas acções, que 
julgava indignidades; huma no Rei, 
que a fazia , outra no feu parente, 
que a fopportava; e fem matar a D. 
Leonor , como matou -a D. Inez, 
tornou a fugir para Caítella , naô fuc- 
cedefle pagar na vida de huma a mor- 
te da outra. Elle era muito obrigado 
ao Rei D. Henrique , que o amparou 
em França ; fervioeo nas batalhas de 
Naxera, e Montiel, e neta occafiaó 
bufcou o refugio da fua Corte, don- 
de pouco depois o acompanhou ar- 
mado contra a Patria. Joað Lourens 

` ço 


ma am 


DE PORTUGAL, LIV.XVIIL 47 


ço da Cunha lhe feguio os paflos, e Eta valg. 
"conforme a opiniad de Manoel de Fa- 
tia , fe elle fentio. o calo foi no in- 
terior, que quanto nas demonftrações 
públicas, elle o fez materia de hum 
entremez na Devifa , que pendurou 
no chapeo para fe dar a conhecer pe- 
lo que era. ; | 

A nobreza , que via ao feu Rei 
conduzir a Dama como em triunfo, 
fentia que a paixaô vehemente lhe en- 
cheffe todas as medidas , que fe de- 
viaS occupar da razaô , e da gloria, 
Ella acabou de ficar atonita, quando 
no Lugar do Eixo lhe mandou o Rei 
beijafle a maô a D. Leonor como Rai- 
nha. Entaô lembrou o facrifício, que 
o feu amor para com ella fazia das 
Infantes de Caítella , e Aragad; o 
Sceptro , que lhe offerecia; o coraçaô, 
que lhe cativava; os Eftados confide- 
raveis, que lhe conferia: tudo próvas 
de exceílos, que chamava6 por outros 
muitos. Efte temor fez dobrar o joe- 
lho ao Infante D. Joaó, e a feu ir- 
mað o Meftre de Aviz , que tomá- 
xað a mada D. Leonor , a beijárad 

| co- 


48 HistoRiA GERAL * 


Era vulg. como vaflallos, e ellá os recebeo Rafs 
nha. O Infante D. Diniz nað fe quiz 
moftrar imedrofo , nem politico , e 
refpondeo refoluto: Que elle nað bei- 
java a mað de pefloa , que devia beie 
jar-lhe a fua. Defprezo tuô declarado 
moveo tal defefperaçaôd no Rei , que 
o atraveflára com hum punhal , fe 
Ayres Gomes da Silva naó defviára o 
golpe. O Infante fugio, e paflou pa- 
ra Caítella, aonde veremos os feus 
fucceflos tragicos , e os do Infante D, 
Joaô , que depois bufcou o meímo 
refugio. | 

< Todo o mundo eftranhou eftes 
exceflos , que fe fazem notados na- 
quelles homens , que vem ao mundo 
para fe moftrarem nelle humas Idéas 
puras fem paixões. O Rei de Caftel-. 
la fe forprendeo dos expedientes da 
de Portugal para com elle, muito mais 
a reípeito da Infante fua filha , que 
elle dizia fora defprezada em razaô de: 
huma adultera; por efte crime infame: 
indigna da vida, quanto mais de hum 
throno. Elle quizera, que na vingan- 
ga naô houvefle demora, e que as refx 

pe 


DE PORTUGAL, LIV.XVIIL 49 


pirações do feu furor fofem incen- Ers vulg. 
dios; mas o eftado dos feus negocios 
houve entaô de cobrir as brazas com 
cinza. D. Fernando, que naô ignora- 
va O tomgrofleiro, por que D. Henri- 
que fe explicava, fez-fe defentendido , 
ou nað fabedor; mandando á fua Cor- 
te hum Enviado com defculpas fim- 
plices , que nada fignificavað , e o Rei 
colerico nað quiz attender. Como os 
males (fem remedio nað tem outro além 
do foffrimento , houve Portugal de (e 
acommodar. ao feu deftino, eos Reis 
cuidarem em fe fegurar na boa fé dos 
vafiallos. Elles o confeguiraô; D. Fer- 
nando amoutoando mercês, e benefi- 
cencias depois dos rigores , e cafli- 
gos ; D, Leonor derramando agrados, 
e civilidades para  attrahir venerações, 
e obfeguios. 


TOM.V. `D CA- 


Era vulg. 


1372 


só Historia GERAL ` ° 


© CAPITULO IV. ; 
Trata-fe da fegunda guerra do Rei D. 


Fernando com E Henrique de ` 
afiehas 


p3 
.. 1 
. 


Em feu vigor obfervava.o Rei D. 
Henrique de Caftella religiofimente o 
“Tratado de Alcontim , quando Joað , 
Duque de Lancafro , filho fegundo de 
Duatte IH. Rei de Inglaterra, inten» 
tou difputar-lte o Throno; ique dizia 
fer de fua mulher D. Conftança :, f» 
lha-do Rei D. Pedro o morto em Mons 
tiel. O primeiro paflo do Duque foi 
fazer D. Henrique odiofo aos feus-valo 


faltos com aquelles pretextos, que fe 
fabem expender do: largo , quando fe 


bufcaô occafiðes para romper. -Mas 
como para fe obter hum Ellado, que 
outro poffue , e nað quer largar, nað 
baftaô boas razões , nem o direito 
bem fundado , fe faltaô as forças pa- 
ra o fazer valer: O Duque de Lan- 
caftro (ollicitou para iflo a alliança do 
Rei D. Fernando , que nað recufou a 
Edi Si pro- 





DE PORTUGAL, LIV. XVIII. gr 


propofta fem o embasaçar: a fé do. dito Em valg: - 
Tratado. Ignorava Ð. Henrique efes 
ajuftes , intimamente. defejava a con- 
fervaçaô da paz , e:fem. D, Fernando 
eítar prevenido para: a guerra, foi in- 
formado da yeprefalia', que elle man- 
dára fazer nos navios Caflelhanos por 
todos os feus portos.” -.. | 
Diogo Lopes Pacheco , defejofo 
de. fe vingar do feu Rei, já fabedor 
da alliança feita com o Duque de Lan- 
caftro ,, aconfelha a D. Fentique , que 
fem perda de tempo, e antes que D. 
Fernando fe arme’ , entre a fogo, e 
fangue por Portugal. aonde achará aa 
feu lado todos os Portuguezes , por 
caufa de D. Leonor deígoftafos com 
a feu Rei. O animo pacifico de D.» 
Henrique nað. quiz eftar por efte pa- 
recer fem efgorar todos os meios de 
perfuadir a concordia. Para ifo man- 
dou a Partugal o Bifpo de Siguença 
D. Joaô Garcia Manrique , que naá 
fendo nelle attendido , affegurou ao 
feu Rei lhe era inevitavel a guerra. 
Efte proceder , tað oppofto ás boas 
formalidades. do Rei de Caflella , air- 
E D ii ri- 


sz . Historia GERAL ” 


Era vulg. ritárad tanto, que entrou a fazer vêr 


1373 


nos apreítos , que fe. preparava, nað 
para a rotura; mas para a vingança. | 
Os Fidalgos Portuguezes , que tinha 
no feu Reino , fobre todos o Infante 
D. Diniz, completamente o inftruem 
no eado dos negocios de Portugal, 
que lhe alentað os defignios de mar- 
char fobre Lisboa para defcarregar o 
golpe da indignaçaô na cabeça do Ef- 
tado, i | 
O politico D. Henrique para fie. 
carem defculpados todos os exceflos , 
que meditava , deo alto caradter de 
injuriofa á rotura do cafamento de 
fua filha; á liga, que no meio da paz 
fizera contra elle D. Fernando ; a has 
ver admittido no Reino muitos dos: 
feus vaflallos defcontentes , que nað 
ceflavaô de mover revoltas em Caftel- 
la. Antes que D. Fernando (e preparaí-: 
fe para a execuçaô dos defignios pre- 
meditados, elle entra com hum exer- 
cito formidavel por Portugal , e man- 
da pelo Almirante Boccanegra occu- 
par o Téjo com a fua armada. Com o 
naícimento da Infante D. Brites prin- 
l Ci- 


DE PORTUGAL, LIV. XVIII. 43 


“cipiou a guerra : prefagio infeliz das Era vulg. 
muitas , de que ella havia fer caufa. 
Penetrou D. Henrique a fronteira do 
Eftado defprevenido, que intentava fer 
o aggrefior , e foi levando fobre a 
marcha , entre horror , e eftragos, 
Almeida , Pinhel , Cerolico,. Linha- 
ses, até fe poftar fobre Coimbra. Che- 
gou elle a efta Cidade , quando: D. 
Leonor dava à luz a Infante D. Brites, 
O Rei valerofo fez aqui oftentaçaó da 
fua politica , na6 atacândo a Praça, e 
demorando-fe nella pouco em attençad 
á Infante , e por naô aflultar a Mãi: 
idéa delicada do Rei Magnifico, que 
nað deve fer efquecida. É 
Veio o Infante D. Diniz incorpo- 
rar-fe com o exercito de Caftella ; e 
como o confelho de Diogo Lopes Pa- 
checo o levára a efe Reino, elle fe 
defnaturalizou , e fez vaffallo de D. 
Henrique ; fendo: caufa de perder o 
dominio de Portugal o voto do mef- 
mo homem , que da cabeça dé fua 
Mai arranca a Coroa. O Rei com o 
Infante Conde de Gijon forað talando 
os campos até Torres-Novyas , e a 
o 


s4 . Historia GERAL 


Era mg. do caminho á vita de Santarem q doll 
de cava: D: Fernando , elle naô alte- 
cou a fua indifferença , mal: aconfelha- 
do por Fidalgos , gue promoviað os 
feus intereffes astroco da reputaçað do 
Principe, A Mm »chegáraõ até Lisboa 
donde foi o. Infante Conde D. Affonfo 
inveltir Calcaes , e outros Lugares, 
que achando-os fem refiflencia. a fa- 
queou a todas. Lisboa foi atacada. com 
todô o vigor por. mar, e terra, A fua 
defen(a a arbitrio:.da paizanage , que 
le armou voluntaria, fem ordem ; fem 
regra ; falta de Commandantes ; foi de 
pouca duraçao , € rendeo-fe Lisboa 
com entrega ao inimigo de quanto na 
Lidade:, e-no Reino eitava dè efi- 
march. 4 
-+ Golpes ferielhantes » que. parecia 
trab fenúveis ás pedras, nað. deíper- 
tára a20 Rei do lebargo » em que o 
inha fepultado o frenef amorofo por 
D. Leonor Telles. Elle fe confolava 
em Santarem com: a efperança da ar- 
mada , que havia vir, e nað acabava 
ae. chegar de Inglaterra. Os mares fe 
lhe pozeraô intractaveis para nað vir 

= a 


DE PorTugAL, Liv. xvin. $$ 


2 Lisboa -no:rtempo, em que havia fer- Era vulg, 
vir á maior veceflidade.. Nefta ocça- 
£iaS D. Nuno Alvares Pereira , mandas 
do por feu Pai, que zelava a bonra da 
INacaô , explorar as forças do inimi- 
go ; na idade de trezé annos le pars 
tou de modo nos tyrocinios de folda- 
do ,. que todos entendêrağ nað tardaria 
muito em fe. fazer Heróe, Depois de 
informar a feu Pai do que vira, foi 
dar conta ao Rei a Santarem, e pediq 
fofle: fervido, dar-lhe algumas trópas , 
sue elle queria combater q campo dos 
CaRielhanos, e o faria com vantagem 
pela: fituaçao, em que- os abfervára. 
Efe impeto de generofidade no Mo- 
Go , que acabava de largar o cóllo da 
ama, foi tað geralmente applaudido , 
que o Rei o armou Cavalleiro , e elle 
foube em todas as idades remunerar 3 
mercê com a reputaçaô eftrondofla , 
que deo à Patria. 

. Atonito eftava Portugal contem- 
plando a inacçaô dọ feu Rei na face 
das mais triftes ruinas, de hum peri- 
go eminente » e de todas as Provin- 
«cias fe offereciaô os fidelilimos Por- 

tu- 


56  - Historia Gerar | 


Era a tuguezes para impedirem os progréflos. 
dos Caftelhanos a troco das fuas vidas; 
e do feu fangue. -Entre todos ó: mais 
infoffrido foi Joaõ-Sanches , moço de 
baixa fórte , como filho que. era de 
him lacaio do Rei D. Pedro. Efte mof> 
trando o feu zelo igual á fua firmeza; 
clamavá aos Póvos, que era huma in- 
fania etar vendo eftragar a Patria; 
e nað lhe acodir por nað faltar a hu- 
ma obediencia, que nað tinha mereci- 
mento: que para todos era mais glo» 
riofo ir morrer debaixo das ordens de 
qualquer homem , que os quizefle 
guiar , que na falta das do Rei D. 
Fernando confentir , que os Cafte- 
lhanos fe fizeflem fenhores de Portu- 
gal. Elle concluia, que os Portugue- 
zes tinha6 os mefmos efpiritos' para 
fazerem em pó os feus contrarios; 
que fó lhes faltava quem os condu- 
zifle; e para ifo ou haviaô inar ao 
Rei olhaffe por fi , e por todos , ou 
elles deviaô bufcar pefloa , que con- ` 
tra OS inimigos os governafle. 

Sentio o Rei como era razað, 
que femelhante homem tivefle inten- 
: tos 


DE PoRrUGAL, Lry. XVII. da 


tos de divertir os-váfiallos da fuobe- Er-tulg. - 
diencia., e metter-fe a intérprete-dos 
motivos , que elle tinha para o feu mos 
do de conduzir-fe. Elle o mandou «vir 
á [na prefenga, e depois de lheéfira- 
fhar: o efpirito de revolta, que o tranf- 
portava 4 o caftigou com o defpreza. 
de mal haícido, chamando-lhe Moço 
de mulas. que tinha fido o officio. de 
feu pai. Tudo Juaô Sanches ouvia at- 
tento ; məs como avirtude”, e ova- 
lór- o zelo , e amor da Patria: lra- 
via6: reparado nelle’ os'defeitos do feu 
nafcimento , refpondeo refpeitofo ; .e 
intrepido: -Senhor eu conheço , que 
afim he quanto dizeis ; mas fe vós 
tivefes muitos Moços dé-mulas como 
efte , os Caftelhanos voflos inimigos 
nað fe atreveriad tanto a vós; e að 
voflo Reino. A refpofla nað foi toma- 
da como ofenfiva do refpeito, mas 4 
voz cominua da lifonja a notou de te- 
meraria. Outras acções gloriofas com 
caracter de (fublimidade fem defeito 
nos offerece a Hiftoria nee tempo , 
que nað devem ficar fepultadas no fi- 


lencio. 
Quan- 


sê - Hisroria Gerar < :- 


Era wig.. © - Quando o Rei. D. Henrique mar- 
cháva de Coimbra para o útio . de Lis- 
boa,:chegau. corn. todo o exercito a 
Torres-Novas ; Praça-, que defendia 
Gil Paes como fed Alcaide Mór , que. 
foi. notificado .para a entregar fem fe 
expôr ao perigo. +, que lhe ameaçava 
hum. txercito vigtoriofo , e formida- 
vel.. Refpondeo Gil Paes, que. elle fó 
tinha medo de faltar ás obrigações da 
honra , e que:;para cumprir com. el- 
Jas eftava refolutp a defender a. Praça 
até a ultima ecktromidade contra o poe 
der «do mundo, Os primeiros tepe- 
lões , afim nas fahidas ad campo so cos 
mo no ataque dos muros y, moltrárad 
ao Rei de Caftella, que Gil. Paes fale 
lára devéras: Como elle eftava impar 
ciente por chegar a Lisboa., e obfer- 
vou na defenfa de Torres a perda:do 
tempo ; mandou levar 'á frente dos 
muros a hum filho de Gil Paes, que 
tinha prifioneiro , ordenando-lhe en- 
tregafle a Praça fena6 queria vêr en- 
forcar feu filho, Refpondeo o Alcaide 

Meer: Que feu filho eltava em feu po- 
der, eelle tinha acçað para fazer o 
e 


DE PORTUGAL p LIV: XVII. so 


le o que- guizeffe'; 'mas que ar Praça y, Era wulg. 
ainda que elava nas. foas mãos ;.: era: 
do Rei leu- Senhor, ‘e elle nad :tixiha: 
podér para. à entregar ferm 6Hendera: 
fua- honra, Com barbaridade: indigua» 
foi o filho. enforcado á villa. de few, 
pai , {ó tocado dos ‘feus deveres ; 40" 
fentimento. natural como -immovel y 
mas elle teye a gtoria dever Tevantaé 
o ftio ; é arvorar o feu Caftelto os: 
trofeos » que entad: deixdrad: arraftat 
as Cidúdes mais usa oo 
fobre- todas a fua Corte. e em ds 


entrátad por Entre-Douro e Minho os 
Fronteiros Pedro: Rodrigues Sarmien- 
to, é Joad Rodrigues de Biedma , der 
sareando a confternação pelos feus 
Póvos indefenfos. :Quizeraó oppôr-e 
aos inimigos. alguns Fifalgos das Pros 
vincias. com a gente:; que. podérad 
ajuntar , e com valor: defefperado ata- 
cárað os Caftelhanos ; que levava6 de 
vencida; mas como o partido era mui- 
to deficual, e elles cahfraS em huma 
Cilada, que de repente os enveítio pe- 
las is elpaldas » nað podendo ne 
El- 


Go - Bistoria GERAL ` 


Era mig. "efte ataque dobrado , muitos: .foraS 


mortos, e os mais. (e falvárad ` como 
podéraô, entrè etes D. Henrique Ma- 
noel, e D. Fernando de Caftro. Aco- 
dia a unir-fe com efte deftacamento a 
gente do Porto; que fazia caminho 
pelo Caftello de Faria pouco diflante 
da Villa de Barcellos. O feu Alcaide 
Mór o Grande Nuno Gonçalves, que 
a vio paflar, quiz fer participante do 
feito honrado , que fe efperava ; e 
deixando o Caftello encarregado a feu 
filho , a acompanhou com algumas 
lanças; Quando chegou efta trópa ao 


“lugar , que havia fer do combate, e: 


já era da viétória dos Caftelhanos 5 


ella quiz retirar-fe , e nað o pode fae 


zer fem a perda da liberdade de mui- 
tos cavalleiros , em que entrou q 
grande Nuno Gonçalves. o 
Temeo efte Herve, que chegan- 
do os Caftelhanos triunfantes ao feu 
Caftello, o filho que havia defendel- 
lo, o entregafle, e pedio aos que O 
prendêraS quizeffem conduzillo ao mef- 


mo Caftello para fallar a feu filho, e: 
lhe perfuadir a entrega ; graça , -a 


e O 


DE PORTUGAL, Liv. xvm. GL 


facilmente lhe foi concedida na cer- Besvulp.: 
teza , de que pela liberdade do pai & 
pada o filho fe efcufaria. Mas a lina 
guagem com que lhe fallou efte Ca- 
pitaó bravo , tronco illuftre dos def- 
cendentes do appellido de Faria, mofa 
trou bem quanto as fuas. intenções erað. 
differentes da promefla. Elle lhe diffe 
com a energia, que faz fahir da alma 
os fentimentos heroicos , fe lembrafs 
fe : Que aquelle Caflello lhe fora en- 
tregue pelo Rei D. Fernando para à 
defender com a honra propria do few 
nafcimento : que-fuppofto eftar prefos 
e impofibilitado para o cumprimento 
dos feus deveres, fob pena da fua mal= 
diçaô lhe ordenava., que em quanto 
nað perdefle a vida fuftentafle o Caf- 
tello, ainda que vifle fer elle alli mel. 
mo feito em pedaços ás mãos dos 
Caftelhanos, que o ouviad. Mais qui- 
zera fallar o Heróe, fe as eípadas dos 
inimigos, elcandalizados da zombaria, 
naô lhe cortaflem o tecido da oraçaõ 
com os fios da vida. Paflado de mui- 
tas eftocadas , duas vezes illuítre mor- 
reo no leito da honra q a 
e an- 


6à | Hisroria'GERAL 


En wl.: Gonçalves de. Faria ; mas feu filho , 
em quem à sorte do pai fez menos 
impreflaô aos: olhos, que harmonia as: 
fuas vozes aos. ouvidos y pelas mef- 
mas medidas de intrepidez y que o-pai. 
talhou .o defprezo.da. morte , o filho. 
medio as do valor, com que fe lançou: 
aos. Caftelhanos, lhes arrancou das mãos 
a preza , € Os obrigou a reípeitar as- 
paredes do :feu Caftello. 

Huma acçaô juftamente merece- 
dora da memoria a O Rei D. Fernando 
para a perpetuar., deo por Armas aos: 
defcendentes de Nuno Gonçalves hum: 
Caftello em campo de purpura , que 
fazia allulaô ao fangue do Heróe , der-: 
zamado, com a porta , e janellas de. 
preto; ao pé delle hum homem 
morto , que foi tirado , quando as. 
Leis da Armaria prohibivad figuras hu-- 
manas. nos Efcudos. Nuno Gonçalves 
foi. cafado com D. Therefa de Meira, 
filha de Gonçalo Paes de Meira, fe- 
uhor de Colares, e outras muitas ter-: 
rzs.. Teve della: dous filhos , que fo- 
sað Gonçalo Nunes de Faria, Chéfe 
da. audios e vingador da oo de. 

eu 


DE PoaTuGaL, Liv. XviIr. 63 


feú pai, que depois foi Clerigo, Abe Etarulg. 
bade. de Rio Covo; e Alvaro de. Fa» 

ria, Senhor da cafa:, e armado caval» 

leiro na batalha de Aljubarrota em pres 

mio: das: muitas gentiletas , que nellã 

obrou no ferviço do Rei D. Joab’ i. á 

{éu vilor herdado. 31. 

1o Pog: outra parte as trópas do Rei 
de Caftella » que haviaõ pilhado .Lis« 
boa, depois. que fe-àpoderárao della, 
faria laflimofa a ruina defta Capital, 
e. feus contornos , fenab occorrêra-ao 
mefmo tempo a mediaçao. do Papa 
Gregorio XI. que enviou ao Cardeal 
de Bulonha' com o caracter. de Legas 
do para mediar a paz éntre os dous 
Reis belligerantes. Ambos os animos 
achou elle difpoftos para facilmente fe 
fubmetterem ás determinações pater 
naes do Pontifice; hum porque conhe» 
cia a fem razaô com que rompeo a 
guerra, e lhe fentia os eftragos:;.o 
outro porque fe quiz moftrar obedien- 
te , e ceder dos feas triunfos á inh- 
nuaçaó do Santo Padre; como D. Fer- 
nando eftava defarınado , muitas Pra- 
ças do Reino rendidas , o inimigo en- 

tra- 


64 .: Histokia GERAL : 


Era :volg-- tranhado nelle , com eftas realidades 


de vencido , nað podia eíperar. Trata- 
do. muito vantajoío. Elle foi obrigado 
a abandonar a alliança do Duque de 
Lancaftro ; a.ligar-fe com Caftella, © 
França; a a lançar de Portugal :os Cal- 
telhanos , antes rebeldes a D; Henris 
quo ; mas as ie todas. lhe‘ forað 
reftituidas. > ~ 

O Rei de Caftella 5 “que flasa 
efcarmentađo’. da: pouca duraçað das 
pazes de Alcoutim, quiz fegurar eftas 
com. refens de terras, e peffoas ;COns 
fideraveis., que. realmente fe lhe en- 
tregárad. As Praças foraô Vileo, Mi- 
randa , Pinhel , Almeida, Cerolico s 
Linhares , e fegura. Às peflvas erað 
o Conde D. Joað Affonfo, irmað da 
Rainha D. Leonor; D. Joaô, Conde 
de Viana; D. Rodrigo Alvares Perei- 
ra » filho do Prior do Crato ; o. Al- 
mirante Lançarote Peçanha ; feis fi- 
Jhos de outros tantos Cidadãos nobres 
de Lisboa ; quatro do Porto , e qua- 
tro de Santarem, que haviad eltar em 
Caftella tres annos por Garantes da 
palavra Real do feu Soberano. 2 

ea 


DE PORTUGAL: Liv. xvin. 65 


deal Legado cheio de prazer pelo bom Eta vulg. 
fucceflo , e brevidade da fua nego- 
Ciaçad , para eftreitar mais a uniad 
entre os Reis , depois de fallar a D, 
Henrique em Lisboa , paflou a Santa- 
rem a perfuadir D. Fernando para fe 
aviltarem ambos, e tratarem amigavel- 
mente dos feus interefles. Foi deter- 
minado , que quando D. Henrique fe 
recolhefle para Caftella , o primeiro 
encontro fofle no Tejo, 

Quizerad os Caftelhanos divertil- 
lo com o efcrupulo de qual dos Reis 
havia fallar primeiro ; pertendendo, 
que D. Fernando rompefle o hlencio, 
por fer Rei de Eftado mais pequeno, 
e mais moderno , que o de Caftella. 
D. Henrique atalhou a dúvida, e dif- 
fe , que como elle nada perdia das 
regalias Reaes em fer primeiro, ou ul- . 
timo em fallar , que faudaria a D. Fer- 
nando , antes que elle o fizeffe. Che- 
gou D. Henrique com o feu exercito 
a Vallada , pouco diflante de Santa- 
rem, aonde embarcou em hum efca- 
ler brilhante, o Cardeal Legado em 


outro, e. appareceo D. Fernando em 
TOMT. E hu- ` 


66 HistoriA GERAL 


Eta vulg. huma falia magnifica , mandada por 
hum Cavalleiro de gentil prefença. 
Quando o Rei de Caftella o aviftou;, 
diffe para os leus : Formofo Rei , for- 
mofa barca, formofo Arrais. O modo 
da abordage foi, poftando-fe nos lados 
os elcaleres Reaes , e no centro o 
Cardeal Legado , que nað podia dis- 
fargar a (ua complacencia em otcafiaS 
de tanto gofto , que era obra fua. D. 
Henrique cumprio o que promettêra y 
fallando primeiro , e dizendo a D. 
Fernando : Dios os mantenga , Sekor ; 
mucho eftimo el veros , por fer la cofa, 
ue yo mas defeava. Praticados os actos 
da civilidade mais delicada , os dous 
Soberanos juráraôd a paz , e entre vo- 
zes de alvoroço , defembarcárað em 
Santarem. 

Aconteceo nefte encontro o que 
raras vezes fẹ tem vito no mundo, 
que foi ficarem os dous Reis tað mu- 
tuamente affeiçoados , que o refto das 
fuas vidas fe tratáraS cum amizade re- 
ligiofa, e effeêtiva. Para elles a aper- 
tarem em laços mais eftreitos, ajuftá- 
rað os cafamentos do Infante D. San- 

e . cho, 


DE PORTUGAL, Liv. XVII. 67 


cho , Conde de Albuquerque , e ir- Eravulge 
mað de D. Henrique, com a Infanté 
D. Brites, irmã de D. Fernando; eo 
de D. Affon(o, Conde de Gijon, fi- 
lho do mefmo D. Henrique, com D. 
Ifabel , filha de D. Fernando, ambos 
baftardos: Cafamento tað pouco agra- 
davel ao Conde D. Affonfo, que lhe 
originou os grandes trabalhos já refe- 
ridos. Os prazeres, o goíto, as fef- 
tas, que neíta occafiag fe celebráraõ 
em Santarem, fizeraô efquecer as rui- 
nas da guerra 5 e mifturados Portugue- 
zes com Caítelhanos pareciaô as duas 
Nações emulas hum fó Póvo concor- 
de. É 

Da'paz de D. Fernando com Caf- 
tella , da rotura da liga com ó Dugue | 
de Lancaftro, refultáraô os defejos de 
moftrar ao Rei D. Pedro IV. de Ara- 
gaô o fentimento, que nað podia di- 1374 
gerir na retençaô do dinheiro referva- 
do em Barcelona para o infeliz cafa- 
mento com fua filha. Efta refoluçaõ, 
que nað paflou de idéa , e lhe pare- 
eco motivo baftante para huma rotus 
ra, O obrigou a ajuftar nova alliança 

a E ii con- 


68 Historia GERAL >=" 


Era vulg. contra Aragaô com Luiz, Duque -de’ 


1375 


Anjou , irmað de Carlos V. Rei de 
França. De parte a parte fe mandáraĝ 
Embaixadores os dous Principes con-- 
tratantes , que nada do que ajuftárad: 
emprehendêraô. Em quanto eftas cou- 
fas fe tratavad, D. Fernando nað ef- 
quecia os actos da fua liberalidade ,: 
nem tambem os da fua juítiça. O fa- 
tal Diogo Lopes Pacheco , que em 
virtude da paz, ficára na Corte, ago- 
ya convencido, de que com Joaô Lou- 
renço da Cunha confpirava para ma- 
tar o Rei com veneno , terceira vez 
foi confifcado , e profcripto. 

Outro frudto da paz, proprio da: 
magnanimidade do Rei contra a efpe- 
rança de todos , veio a fer a grande: 
obra dos muros de Lisboa , que lan- 
cando-fe a primeira pedra no ultimo 
de Setembro de 1373 fe vírað con- 
cluidos em Julho de 1375. Depois for- 
tifcou Santarem, Obidos, Ponte de 
Lima , e Viana, Almada , Torres- 
Vedras, e Leiria. Com a mefma pro- 
fufaô fez muitas mercês a varias Igre- 
jas, e Mofteiros, que ainda hoje lhes 

i je con- 


DE PORTUGAL , Liv. xvit. 69 


čoùlervað o explendor. Fez Cortes Era vulg. 
“para promulgar Léis favoraveis ao 
Commercio ,. fempre ambiciofo de 

- fornecer aos feus vaflallos os meios | 
de fer felices. Entað forad vantajofos 1377 
os progreflos; da Religiað de S. Jero- 

nymo neĝe Reino, que fe illuftra com 

o magnifico Motfteiro de Belém, hum 

dos Padrões immortaes da piedade dos 

noflos Soberanos. . o 


CAPITULO V. 
Modos delicados com que fe conduz a 
~ Rainha D. Leonor , fucceljos do Tn- 
` fante D: Joad, Scifma do Anti- Pa- 
a Pedro de Luna , e nova guerra 
com Caftella, | o 


t 
A VARIEDADE do tempo , a ferie 
de tantos negocios naõ alteravað no 
Rei os primeiros vigorofos extremos 
-de amor para com a Rainha: paixad , 
que creícia ao paflo que a reprovaçaõ 
do Povo fe augmentava. Ella de efpi- 
rito penetrante para prevenir os fuc- 
ceflos futuros , vieflem elles da mað 


70 Historia GERAL ~ 


Erä wulg. do Rei, ou do 'defprazer dos vafat- 
los, qualquer delles batante- para- lhe 
deftruir a grandeza. infubá ftente (e hum 
dos dous Íopros. a agitafle; preparou 
o efpirito para a applicaçaõ dos meios, 
que nað fó apartaflem della os mãos 
fuccefTos ; mas até.os fuítos. -Ella ap- 
plica todas as dexteridades ; em quan- 
to no Rei prefiftem os ektremos, pä- 
ya fazer creaturas da fua mað , que 
ainda na falta de D. Fernando lhe fir- 
mem a authoridade. A'muita que el- 

“Ja tinha de prefente ,. no feu efpirito 
lhe dava plena fegurança, hum direi- 
to firme para fazer o que -quizefle, 
fem temer , que nada fe lhe recu- 
fafie.’ | Dn, 

Como a fua politica nað era tað 
groflcira, que deixafle de faber, que 
tbavia pegar na wccdhað pelos cabellos ; 
ella cuidou em:ifazer podero(os.a to- 
dos os feus -, que haviað refpeitalla 
como coufa fua.: Por ifo fez confe- 
yir o governo do Caftello de Lisboa 
a feu tio D. Joad Aflonfo Telles, 
Conde de Barcellos, que já era Mor- 
domo Mór. Seu irmaô D., Joaô Af- 
Rod fon- 


DE PorTUGAL, Liv. xvin. yı 


fonfo Telles já era Almirante ; agora Era vulg. 
fez criar Conde de Neiva a D.Gon- 
galo Telles, outro de (eus irmãos: 
Conde de Cea a feu cunhado D. Hen- 
rique : a D. Lopo Dias de Soufa feu 
fobrinho Graô-Meftre da Ordem de 
Chrifto : ao meímo D. Henrique de 
Albuquerque da Ordem de Sant-lago, 
ea fua irmã natural D. Joanna Tel- 
les , que cafo com Joaôd Affonfo Pi. 
mentel , fe lhe deo o. Senhorio de 
Bragança : a Gonçalo Vaíques de Aze- 
vedo., que determinava- calar com a 
filha de hum dos feus validos. pro- 
curou o Vice-Almirantado ; e defte 
modo os parentes de D: Leonor Tel- 
les ficáraô occupando os primeiros cər- 
gos da Corte , fendo elles qs condu- 
tores das funções mais .confideraveis 
da Monarquia. o RE q 
Ganhar a Nobreza, e attrahir 8 
devoçad do Povo erað outros dous 
pafos , que nað fugiað á perípicacia 
de D. Leonor, nem lhe efcapavað as 
maneiras infinuantes de os conduzir 
com vantagem. De bum, e outro cor- 

po ella fe declarou. protetora para fa- 

| zer 


72 Historia GERAL ` 


Era vulg. zer a ambos officios tað conformes; 
que bem parecefle fe arrogava a natu- 
reza do mais principal: dos feus mem- 
bros. Os Fidalgos para qualquer gra- 
ga, que pertendeffem , nað neceflitá- 
vað mais diligencias, que apreíentare 
lhe hum Memorial. O menos que os 
obrigava era o defpacho , que ainda 
fendo grande, perdia o vulto á vifta 
dos ‘modos benevolos , com que elle 
era conferido, O povo fe follicitava 
immunidades , dons , privilegios , e 
ifenções , encontrava a Rainha na fua 
téftá como canal, que da mað do Rei 
fazia correr tudo com affluencia , mui- 
tas vezes maior , que os defejos. Tu- 
do ifto era neceflario para fatisfazer a 
tantos’ defcontentes - de a verem no 
Throno ; mas tudo era parto de bu- 
ma politica corrupta, que nað podia 
ter por muito tempo cobertos a im- 
piedade , e o odio , que o coraça6 
de D. Leonor reconcentrava a todas 
as pefloas , de que fe podia temer, 
fem excepcað do feu mefmo fangue. 
Huma fé apparente disfarçava a perfi- 
elay que nað tardou em moftrar nos 


el 


DE PORTUGAL, LIV. XVIII 73 


efcandalos, que o Sceptro eftava vio- Era vulg. | 
lento, e a Coroa fora do feu lugar. 
O fucceflo fem exemplar do In- 
fante D. Joaô he próva evidente def- 
tas verdades. Clandeftinamente havia 
o Infante calado com D. Maria Tel 
les, irmã da Rainha, fendo viuva de 
D. Alvaro Dias de Soufa ; que eftas 
fenhoras :na elegancia da fua gentileza 
tiveraô dote fobrado para darem as 
mãos a Principes. O mefmo foi a 
Rainha penetrar o cafamento occulto, 
que dar-lhe faltos o coraçaô para nað 
guardar medida ás induítrias. Ella fe 
deixou . occupar do temor da morte 
previa de D. Fernando, -que pro- 
mettia pouca duraçaô por viver acha- 
cado , e já lhe parecia eflar vendo o 
Infante , e fua irmã aflentados rio 
“Throno na falta de filho varað , que 
nelle lhe fuccedefle.: Sem perda de 
tempo entra a derramar palavras myfl- 
teriofas , que lifongeavad o Infante 
nas efperanças de o calar com fua fi- 
lha a Infante D. Brites : Princeza a 
tantos- promettida . pára fer o raio fa- 
tal, que ateou na Monarquia ni 
ios 


kra vulg, 


74 Hisroria GeraL 


“dios vorazes. Para fazer a D. Joad 
crivel ee projecto, o capacita, qué 
fua irmã D. Maria lhe falta á fé de 
eípofa; he huma adultera , e que el. 
le deve olhar pela fua honra. D. Joaõ 
nað duvida cumprir com ella fe o 
crime for verdadeiro. A Rainha, que 
nað queria deixar a (ua obra imper- 


feita, teceo a mentira com tantos ap- 


paratos de verdade , que o Infante a 
creo, e aflegurou a D. Leonor, que 
elle fem mais exame matava a mu- 
ther. 

Sem dar refpofta ouvio D. Leo- 
nor efta refoluçaő do Infante : Silen- 
cio abominavel, que o confirmou nele 
la , arraftado pela ambiçao de pegar 
mo Sceptro com as mãos pingando fan- 
gue. À morte violenta de D. Maria 
“Telles traçada com femelhantes intri- 
gas , que todas fe imputavaõ ao Infan- 
te., fez-fe enorme ; nað ha bocca , 
que deixe de fallar , todos fe queixa. 
Teme a Rainha, que o Infante. cone 
defle o crime ; e “à declare complice. 
Fiada no fcu poder, intenta confeguir 
do Rei fe ponha filencio- na caufa, 
E pa- 


ue 


DE PORTUGAL , LIV. XVIII. 76 


para o fazer crêr, que as fuas atten- Era vulg. | 


ções pelo Infante faõ nella mais effica-: 
zes , que os impulfos com que o fan-i 
ue: a inífta a promover a vingança. 
eftas mefmas propoítas confeguio a 
arte os intentos do infeliz Infante, que 
por efla morte entendeo abria o ca-. 
minho ao Throno, fugir para Caftel- 
la, defamparar o Reino, deixar nelle 
fepultadas as efperanças da Coroa. 

A Rainha contente por confeguir 
as idéas deteftaveis a expenfas da alma 
propria, e da vida da irmã innocen= 
te, agora lhe chorava a morte, quan= 
do a recreava a ruina do Infante, co- 
mo meio unico da firmeza da fua au- 
thoridade. Porém a Providencia Divi- 
na , que cheia de equidade confunde 
em fi mefmas as idéas injuftas dos ho: 
mens ; nað fó á Rainha, mas aos ou- 
tros Co-Reos do crime deteftavel fez 
no mundo: huns efpeetaculos da exe- 
cuçad da. fua juítiças Na Rainha def- 
carregou o golpe da infamia na mef- 
ma culpa , que ella falíamente impu- 
tára a fua irmã, e aarrojou a Catel- 
la fem dominio ,. aonde foi e po- 

re, 


nó Historia GERAL | 


Era vulg. bre, preza, e acabar aborrecida. O 


1378 


Infante teve igual deino no mefmo 
Reino , e quando (e vio opprimido 
dos ferros , entaô conheceo , que a 
morte da mulher , forjada pela ame 
biçaô de reinar, ella era a unica cau- 
fa de perder a Coroa, que a nature- 
za lhe deftinára, fe a crueldade nað 
a perdêra. O Conde D. Joað Affonfo, 
depois de fupportar os revezes da for- 
tuna , foi morto miferavelmente na 
batalha de Aljubarrota. Em todas as 
idades tem fido politica inalteravel do 
prefcrutador das intenções humanas, 
que os authores das Tragedias , no 
ultimo auto, lavem o theatro com O 
feu fangue. | 

Os peccados de elcandalo , que 
neftes tempos fe amontoavad no mun- 
do, enfurecêrad o Deos das piedades, 
que permitio em caítigo delles na fua 
Igreja huma das roturas mais enormes, 
que ella tinha experimentado em mui- 
tos feculos. Morreo o Papa Gregorio 
XI. : perda para Portugal (enfivel, 
que tantas próvas recebêra da fua af. 
feiçaO paternal. Foi eleito Urbano VI. 


pas 


DE PORTUGAL, LIV. XVII 77 


pára fer teftemunha da tempeftade , Era vulg. 
que combateo a Ndo da Igreja , e 
perturbou o animo dos Vieis com o 
Scifma de tres Papas, fem fer facil 
dillinguir o verdadeiro dos falíos : tu- 
do confusões , que arraftavad os ho- 
- mens mais fabios para dizerem mal 
do bem, e bem do mal, para pôrem 
trévas nas luzes, e luzes nas trévas, | 
para goftarem o doce no amargo , e 
o amargo no doce. Ao Pontifice legi- 
timo Urbano VI. oppozeraõd os Fran- 
cezes o Anti-Papa Clemente VII. que 
com alguns Cardeaes veio para Avi- 
nhaô , primeira origem do fcifma , 
que durou çoannos. Entaó forað con- 
tínuas as defordens nos Ellados vacil-. 
Jantes, e muito maiores as dos dous 
Chéfes legitimo , e intrufo, que en-. 
tráraO a fulminar anathemas frequen-. 
tes de Roma contra Avinhad, de 
Avinhaô contra Roma. l 
Naő mudou Clemente de eftylo ` 
com Bonifacio IX. que fuccedeo a 
Urbano , nem elle de condiçaõ a ref- 
peito de Clemente. Quando fe efpe- 
Java, que com a morte dos dous con- 
ten- 


78 . Historia GERAL. 


Era vulg.. tendores efpirafle o fcifma, e reinaf- 
fe pacifico Innocencio VII. canonica- 
mente eleito, contra elle fe levantou 
Pedro de Luna , que fe quiz chamar 
Bento XIII., e collocado no Solio de 
Avinhaõ, refitio com tenacidade abo-. 
minavel á Cadeira de S. Pedro em Ro- 
ma. Caftella , Aragaô , e Navarra 
fempre feguirad os Anti-Papas. De 
Portugal dizem o mefmo o Arcebifpo 
D. Rodrigo da Cunha, Manoel de Fa- 
ria, e Duarte Nunes , affirmando , 
que o Rei cahira no erro, ainda que 
depois fe retratára , fem elperar as 
decisões do Concilio de Conftança , 
como os tres Soberanos de Hefpanha 
acima ditos. Aquelles Authores tað il- 
luminados fe enganáraô , ou de huns 
a outros fe communicou o engano de 
algum delles em ponto tað eflencial , 
que forneceo fundamentos fólidos pa- 
ra fe fultentar o direito do Meítre de 
Aviz contra o pertendido da Rainha 
D. Brites de Caftella fobre Portugal. 
Mo fuppofto , fem eu me embaraçar 
nos modos por que fe conduzirao na 
occafiaó delte (cifma os Reis du 

a A a 


DE PORTUGAL, LIV. XVIII 79 


"ta Coroa D. Henrique , que viveo Ee vulg. 
ouco depois delle, e D. Joaô I. que 

he fuccedeo , por fer hiftoria alheia, 

eu paflo a referir o que nos perten- 

Cc a l 
Prefumem os tres Authores cita- 
dos, que o Rei D.Fernando feguira 
os Reis de Hefpanha no reconheci- 
mento dos Anti-Papas de Avinhaós, 
e que fe retratára períuadido dos In- 
glezes feus alliados , quando vierað 
ajudallo na guerra , que teve depois 
com D.Joaô J. de Caftella. Efta nota 
geral ao Rei, e Reino nafce de hum 
engano parcial bebido na quéda de 
hum fó Prelado com alguma parte do 
feu Povo , que fem difcernimento ilə 
luminado , marchou rebanho rude 
apôz os veítigios do feu Paftor, Foi ete 
o Bifpo de Silves no Algarve D. Mars 
tinho de Samora , que como era de 
Nagað Caftelhano , nað quiz feparar-fe 
dos fentimentos dos feus Patricios, 
e á fua imitaçaő fe declarou fcifmati= 
co. Todos os Efcritores Ecclefiafticos 
nos daô próvas deftas divisões arbitra- 
“tias dos Bifpos dentro de hum meímo 


80 "Historia GERAL 


Era wig. Efiado Soberano , e naĝ nos deve fas 
zer efpecie efta fingularidade do Bifpo 
de Silves, contraria ao commum fen- 
tir do Reino de Portugal, e de muita 
parte do do Algarve. Deos fabe fe o 
erro de D. Martinho foi a caufa de o 
matarem fem efcrupulo como a hum 
Ícifmatico, quando elle já eftava pro- 
movido a Bifpo de Lisboa na revolta: 
do Meflre de Aviz. | ? 
© O Rei, e Reino de Portugal re- 
conhecéraô logo a Urbano VI. por 
Papa legitimo : Refoluçaô , que com 
huma Carta pompofa pertendéraôd tranf- 
tornar os Cardeaes feus oppoftos. Mas 
chegando ao mefmo tempo de Italia o 
celebre Joaõ das Regras bem inttruido- 

elo feu Meflre Baldo na legitimidade 
de Urbano: elle a perfuadio com tan- 
“ta força de razões, e fenfibilidade de 
evidencias, que a-Carta dos Cardeas 
foi defprezada , e os Portuguezes fe 
fulentáraô firmes na obediencia aos 
verdadeiros Succeflores de S. Pedro, 
fem que depois tiveflem náda que in- 
novar , nem de que fe arrepender á 
vita da decifaô do Concilio Conftan-. 

cien- 


DE PORTUGAL , Liv. XvilL 81 


cienfe. . Pedro de Luna, já Cardeal, Eta valg:. 
veio à Hefpanha vivendo ainda Hen- 1379 
rique Il., enaõ nos confta, que entre 

nós: publicafle a fua miflaô diabolica; 
que: tanto quiz prevalecer “contra a 
Jgreja de Deos. Dois: annos depois 
recebemos a fua vifita em Santarem; 
aonde. o Rei D. Fernando lhe ouvio 
hum eftirado difcurfo , tað cheio de 
pompas., ornatos o€: delicadezas , que 

gra capaz de fe infimuar nos corações 
mais duros. O Rei lhe reípondeo, que 
como o afumpto:-ida fua falla continha 
pontos de-Doutrisa , que: nað erað da 

fua. profifiao fecúlar; que elle owviria 

os Prelados do fey -Reino para fe ree oc. ; 
folver.' SEE EE saa 
© “Nós devemos aiAuthores Efbrans 
geiros , efpecialmente a Rainaldo:'nós 

feus Annags, dar-nos noticia deíta Juns 

ta. de Santarem. 'Elle hos diz : Que os 
Prelados de: Portugal com.argumentos 
fóxidos jarretáraô os fofificos , ein- 
trigantes do Anti-Cardeal! Pedro: de 
Luna.: Depois trata.ao largo os:mefw 

mos argumentos de convicçad no anno: 

de 1381, número 34, € conclue: Que 


TOM. y. F os 


84 ' Hisrokia GERAL” 


Era es os insira dos Prelados confirmãs 


1380 - 


rað aos Portuguezes na.obediencia aos 


“verdadeiros Papas > qué elles cóbrira6 
de affrontas , e defprezos ao Sedugtor , 


que fe retirou envergonhado , e depois: 
fe queixou aos Padres. feus amigos do: 
Concilio de Conftança defla pouca at- 
tençaO dos Portuguezes : que eftes » 
entre os outros Reinos das Hefpanhas,; 
erað os mais dignos de louvor , co- 
mo os mais obfequiolos á Santa Sé, 
defprezadores conftantes dos lifonjeiros, 
e rochedos immoveis , aonde davað , 
e rotrocediaô fem os aballar as -ondas 
furiolas da feducçaô. dos (cifmaticos. 

- Quando: principiava. -efte Ícifma a 
tomar as maiores forças, acabou a vi-: 
da o Magnifico Henrique H. Rei de 
Caftella , e entráraS novas afflicções 
a opprimir 'o efpirito da ambiciofa Rai- 
nha de Portugal -D. Leonor para fe 
fegurar na mudança. dos interefles , que 
nað podia deixar de fobrevir. Com a: 
morte de D., Henrique fe desfez o cafa- 
mento ajuítado entre feu filho o Du- 
que de Benavente-Fredirico, e a nofla 


“Infante D. Brites, que fe eftimava her-. 


» na PA ; dei- 


DE PORTUGAL, Liv. XVIII. 83 


dtira do Reino; e a continuaçað das Era vulg. 
moleítias de feu Pai fazia temer & bre- 
vidade. da fua perda. - Efte futo , e 
agquelle fucceflo obrigárað a Rainha a 
esforçar-fe nas. diligencias de bufcar 
hum protector poderoío , que a titulo 
de marido futuro da Infante fua filha a 
fuftentafle fem mudança na authosidade 
prefente. Nefte anno nafceo o meni- 
- no Henrique, . filho. primogenito do 
novo Rei D. Joaô |. de Caítella., e a 
Rainha o entendeo eípoío proprio, 
pelos muitos: anuos:;:'que podia:.eípé. 
rar, para a Infante, que nað goflaria 
como herdeira: de- ter tanta paciencia, 
Eila o .propôz a D. Fernando, que co» 
mo era gofto da mulher, nað podia 
duvidar ; e mandados Embaixadores 
reciprocos , fe: ajuíftou: com o recem 
nafcido o cafamento , que eltava def- 
tinado para feu Pai. 

O Conde de Ourem, e Gonçalo 
Vaíques de Azevedo foraô os Minif- 
tros mandados a efte ajute , que mof- 
trárað a feu Amo concluido , e nas 
duas Monarquias fe fez público com a 
condiçað plaufivel , de que as Coroas 

E F ii de 


84 Historia GERAL `a 


Era vulg. ' de Portugal, e Caftella fe veria" ramii 


das na frente do primeiro Principe. 
que nafcefle do -inaugurado matrimo 
nio. Intereflante era a Portugal , e 
muito mais 4º Rainhá ,. ir-fe. nutrindo 
efta ídéa pelos meímos vagares , cont 
que o Infante de; Caftella fe. criava. 
mas o Rei D. Fernando , que em tux 
do tinha caracter fingular , do ajute 
fez huma fabula ;: rompeo a alliança 4: 
e para moftrar , que. a amizade conx 
D. Henrique era mais nað poder , de~. 
clarou o odio contra a pefloa do filho 5; 
fem motivo algumtoma a ligarfe 
com o Duque: de Lancaítro fobre as 
pretenções á Coroa de Caftella:, e de~ 
génera o Tratado do cafamento em hu~ 
ma formal declaraçaô de guerra, qué 
trataremos no Livro feguinte, 

o s i q 


i A E 








ont Sanoin 
vo LIVRO XIX 
Da Hiftoria Moderna de Portugal. 
| CAPITULO L 
Da guerra do Rei D: Fernando com D. 
` Foa I. de Caftella , eoutros fuccej= ` 
co Jos, que dellaforaô refulta. 


| a o Rei D. Fernando 
defcubrir ao mundo , que a amizade 
contrahida com D. Henrique nas viftas 
de Santarem erá huma apparencia ex- 
Aerior, ..que occultava no fundo do anie 
mo a dor dos eftragos na guerra paf- 
fada ;. a emulaçaó da fta fortuna para 
elle taô contraria; os defejos da vin- 
gança na primeira conjunêtura favora- 
vel para ella. Tudo elle affim concebe, 
“explica em proprios. termos ao Confe- 
lho de Eftado , que convocou para lhe 
ouvir os votos fobre o modo de fa- 
gera guerra, Todo elle ficou atonito, 
quando ouvio a propoíta do Rei, que 
e > i . AUP- 


Era vulg; 
1380 


86 | Historia GERAL 


Era vulg. fuppunha ligado . com. « os vincolos. à 


mais perduravel paz. Naô houve esfor- 
a a que élk perdaafie; phraT divertir 
ei de femelhantes intentos , que 
dead dó ajufté do cafamento ` des 
Principes das duas Coroas, o mundo 
olharia para as fuas negociações como 
para huma efpecie de illufaô, que zome 
baya das Magelftades. Nada moveo a 
D. Fernando para mudar de dictame ; 
e fervindo-fe de Joaô Fernandes An- 
deio; hum dos Fidalgos Caflelhanos, 
“que em virtude da paz de Santarem 
" fahio de Portugal , € eftava em Lons 
dres ; por feu meio ajuftou a liga com 
Inglaterra + e elle veio occulto a Pars 
tugal dar parte dos Artigos da negos 
ciaçaô. 

Confiftiaô elles , em que Q Dus 
que de Lancaftro mandaria a elle Reis 
no a feu irmaô o Conde Edmundo com 
as maiores forças, que lhe fofle poffi- 
vel para ajudar na guerra ao Rei D., 
Fernando : que o Conde traria comfi- 
go o Principe D. Duarte, filho do Du- 
que, e neto do Rei D. Pedro de Caftel+ 
la p para cafar com à Infante. D.. Bri» 

| tes » 


À of pm e, =D ma Dame ————mm O e ra rei mer ama 


DE PorTUGAL, Liv. xx. 87 


tes ; e ferem ambos herdeiros dos dous Era vulg: - 
Reinos de Caítella, e Portugal, que 
a. cada hum tocavad ; e outras diípo- 
fições a reípeito do pagamento das 
trópas. Naô fe occultou ao Rei de 
Caftella a negociaçao das duas partes 
coutratantes ; e para melhor oblervar 
os movimentos de Portugal , veio para 
Salamanca , aonde principiáraõ a affli- 
gillo idéas triíftes. A noticia da morte 
da Rainha D. Joanna fua Mai foi acom- 
panhada dos avifos de vinte galés, e 
quatro grandes nãos, que fe prepara- 
vað no Téjo ; dos d4 grande armada 
Ingleza , que nelle fe efperava; do 
das muitas trópas, que fe levantavaô, 
€ praças, que fe guarneciad em Por- 
tugal ; de que feu irmaô o Conde de Gi- 
jon follicitava efta guerra , refoluto a 
unir as forças proprias com as de {eu 
fogro o Rei D. Fernando. 
Tantos preparativos confirmárad 
a certeza da guerra ao Rei , que reli- 
giofamente obfervava os Tratados de 
paz , e nað pode deixar de afluftar-fe 
com a vinda dos Inglezes a Hefpanha , 
acompanhados do direito do Principe 


68 “Hisrokias GERAL ~ 


Eravulg. ' D. Duarte á fua-Coróa, e com a pros 
mefla da de Portugal: pela efpofa futu 
ra : interefles .ta6) importantes ., que 
era impoffivel: deixarem: de'obrigar Ins 
glaterra a fazer os ultimos esforços: 
Porém a refulta deftes penfamentos no 
Rei D. Joað foi refolver-fe a defen- 
der animofo a fua Coroa contia todos 
aġuelles , que intentaflem aballala; Co- 
mo dilatou o coraçað elle fe dèo táð 
pouco. a fentir da renovaçaô da liga. 
que a ninguem: pedio foccorro, neim y 
vinhos , nem a amigos. Tudo:fion 
das fuas difpofições ; deo ordens efs 
feđlivas para a armada , e. o exeréito 
eftarem promptos a fahir ao. mar y é 
mover-fe ao primeiro fom de caixa. 
Em quanto nað marchava para. a: frons 
teira , foi fazer huma vifita ads Efta- 
dos de feu irmão o Conde de. Gijon , 
que ainda nað efperava por ella, ete- 
ve de fe refugiar nas montanhas de 
Oviedo. D. Joaô o foi feguindo , e o 
cercou nefta Cidade , que nað. pode 
defender, e rendido com humildade, . 
reconheceo em feu irmaõ a Ífabera- 
nia , de que fe jurou fiel vaffallo. - 

| Com 


DE PORTUGAL , Liv. XIX. 89` 


+ Com a vantagem importante 'def-'Era vulg. . 
te pafo declinou elle a, marcha para: 1381 
© Riba-Coa, e cercou a Praça: de Al-i 
meida y que depois de hum mez de: 
tio , fe rendeo por capitulaçað. ' Os 
Mefres de Alcantara , e Sant-lago' ens 
trárad por Elyas , e faqueáraĝ os cam- 
pos das Villas do Cano , Soufel, è 
Vieiros. Ao-mefmo tempo fahio a atu 
miada .de Sevilha ás ordens do bravo 
D. Fernando Sanches de ‘Toar , que 
fez varias irrupções pela cófta do Al- 
garve. Ainda o Rei fe nað movia, ef- 
perando a chegada dos-Inglezes para 
principiar as operações da: campanha ; 
- mas vendo os inimigos fenhores: das. 
de mar, e terra , acodio primeiro á 
defenfa das Praças , e encarregou El. 
vas a D. Alvaro Pires de Caftro, Con- 
de de: Arrayolos; Olivença ,:Campo- 
Maior , e Arronches ao. Meftre de 
Aviz D. Joa5; Portalegre ao Prior do 
Crato D. Pedro Alvares Pereira; Villa- 
Vigofa ao Conde de Viana; Béja ao 
Mettre -de Sant-Iago ; e as das“ outras 
Provincias aos feus Alcaides Móres. 
“Nomeou para pic cio 
do e É on- 


9o Hisrorta GERAL 


Era vulg. Conde D. Joað Affonfo Tello, irmad 


da Rainha ; primeiro prefagio da (ua: 
infelicidade pela ignorancia do Chéfe 
nas manobras de mar , e guerra , que. 
tudo hia aprender da difciplina de hum 
Cabo Íugeito ás ordens do Conde. 

O de Arrayolos em Elvas quiz 
defpicar a injuria, que nos fizeraô os 
Meftres de Alcantara , e Sant-lago, 
talando a campanha de Badajóz. Elle 
convidou para a empreza ao memora- 
vel Gil Fernandes, que depois da óc- 
cafiaô , em que fe fingio o Infante 
D.Joaô, os Caftelhanos ouviaô o feu 
nome com reípeito. As trópas avança- 
das foraô logo inveítidas pela cavalla- 
ria de Badajóz , que fez parar o Con- 
de para ver como os feus fe retiravaõ. 
Gil Fernandes o inftava para que fe 
' avançafle fobre os inimigos; mas o 
Chéfe bifonho ficou immovel fem fa- 
ber determinar-fe. O bravo Gil, nað 
podendo foffrer a affronta á (ua vifta, 
com vinte de Cavallo fe lançou aos 
inimigos como hum raio, e depois de 
matizar o campo de fangue , os met- 
teo às lançadas pelas portas de Bada- 

o józ » 


BE a 


DE PORTUGAL, LIV. XIX. 9g 


józ, donde fe recolheo com a reputa- Ers vulg: - 
ça6 renovada, cheio de gloria, 

;: Penetrou-fe o Rei D. Fernando da 
frouxidaô do Conde de Arrayolos:, e 
“ordenou a D. Nuno Alvares Pereira, 
que na idade>de 20 annos fe fazia 
récommendavel entre os homens dei- 
xafle à Provincia do Minho , e: fofle 
fervir em Portalegre às ordens de feu 
irmaô o Prior do Crato para fe achar . 
com Gonçalló Vaíques de Azevedo na 
invafað , que o mandava fazer no Paiz 
inimigo, em otdem a reparar a que 
bra do Conde. Já as trópas deftinadas 
para a empreza eftavað. em marcha, 
e houveraô de (ufpendella pela: noti- 
cia, de que o Infante D. Joaô de Por- 
tugal, que fervia em Caftella , che- 
gára com exercito poderofo a Bada« 
józ para fe unir a D. Fernando Ofo- 
res , Meftre de Sant-lago-, e formas 
rem ambos o fitio de Elvas, deftina- 
do para a abertura da campanha.: No 
principio de Julho apparecéraõ. elles á 
vifta da Praça com grande fentimen- 
to do Rei D. Fernando , que tinha de- 
terminado fer o primeiro em: Fa 

jo d- 


92 Historia. GERAL 7 


Erwlg. Badajóz ; mas fe efte pelar o affligia s 
elle neceflitou de todo o esforço do- 
efpirito para ouvir a nova infeliz da 
perda. da fua armada. | 

Embarcáraõ nella fis mil homens. 
de tripulaçaô com muitos Fid:'gos da 
“primeira diftinçaO do Keino , ambi 
ciofos de honra , que foraó perde de 
baixo do commandamento de num ho- 
mem , que fiava os bons fucceflos da 
vaidade de fer irmaô da Rainha D. 
Leonor. Fernaô Lopes lhe córta os 
elogios pelas medidas do merecimento. 
Elle fe nað embaraçou. com a falta de 
déz galés , que deixou divertidas em 
ver pelcar os maritimos do Algarve; e 
dando afim a fuperioridade aos inimi- 
gos, que: o efperavaô furtos; fem or- 
dem, nem fórma de batalha , os in- 
veftio, O deftro D. Fernando Sanches 
de Toar foi fuftentando o impeto dos 
noflos , que foldados , e chéfes de fi 
meímos , moftravad que eraô Portu- 
guezes. Quando obfervou a confufad 
opportuna aos defignios , atacou-nos 
com toda a farga, e fem perda de vi- 
das, mas com muitos feridos, tomou 

E to~ 


‘~ 
DE PORTUGAL, Liv. Xix. p3 


todas as galés com o Conde Almirans Ets válg. - 
te, que conduzio a Sevilha. Gil Lou- 
yenço do Porto, que governava huma 
galé , vendo à defordem com que o 
Conde enveítia , a vantagem dos Caf- 
telhanos , a confufað da batalha», e 
tudo perdido. ; voltou a prôa , e veio 
q Lisboa dar a infauíta noticia para im- 
pedir a fahida das nãos , que fe fazia 
preítes para reforçar a armada. 
-Huma perda tað confideravel en- 
çheo de-furor os Póvos do Reino, que 
clamavaô contra a injuítiça da guer- 
xa; pela laftima dos Lavradores, que 
metteraô forçados na chufma da ar- 
mada ; contra os parentes da Rainha, 
que fem talentos, nem capacidade os 
punhaô nos empregos para perderem 
o Reino; e outras vozes femelhantes, 
que deteftavaô a guerra como. efféito 
da veleidade de hum animo. que :da- 
va precedencias ao feu goto com. def- 
prezo dos interefles da Monarquia. 
O Rei disfarçou, o fentimento na; per- 
da de tantys vafialios, e de defanove 
galés com açhegada de 48 nãos Ingle- 
zas ao porto de Lisboa, em gue viz 
e E nhaô 


~“ 


g4. HISTORIA GERAL | 


Ern wlg nhaó o Conde, e Condeça de Cam: 


brix , e feu fobrinho o Principe D. 
Duarte, de {eis annos de idade ; que 
fe deípofou com a Infante D. Brites, 
que. contava dez; mas como as pala- 
yras era6 de futuro » fobrevierad os 
contingentes , que com facilidade als 
teráraô o contrato, como moftraráô: 
os fucceflos. Com tanta tranquillidas 
de, e magnificencia fe fez efta cerés 
monia , como fe o Reino eftiveffe go- 
zando a aura benigna da'paz: poréir 
os prazeres mudáraô à face com tan- 
ta prefla , quanta foi a fealdade no 
femblante da guerra. i 

O Rei de Caftella , que eftava 
na Beira , tinha tomado Almeida , e 
os feus Generaes fitiavað Elvas , é 
Miranda, que fe rendeo ; com ano- 
ticia da. chegada dos Inglezes manv 
dou levantar o cerco de Elvas, ajuti- 
tar as trópas ą € pôre prompto a 
obfervar os noflos movimentos. Pata 


moftrar aos Inglezes , que nað os tê: 


mia , efcreveo ao Conde de Cambrix 

huma carta de defafio , em que fe 

obrigava a buícallo duas jornadas den- 
ja tro 


mm rea PR q ET 


DE PORTUGAL, Liv. XIX. os 


tro de Portugal para igualarem o tra- Era 


balho das marchas , e acharfe em 

roporçaô conforme para a batalha. 
Nao refpondeo o Conde; mas o Rei 
mais picado , mandou ao Almirante 
Toar ,.que com a armada fahifle de 
Sevilha, e atodo o rtifco entrafle no 
porto de Lisboa , e queimafle , ou 
fizefle prifioneira a Frota Ingleza. 
Hum dos dous deítinos lhe dera Toar 
fe ella nað fe secolhefle no rio de Sa- 
cavem , que. foi defendido por duas 
groflas cadeas na fua bocca , muitas 
vezes enveítidas pelo Almirante Caf- 
telhano:; mas: como nað as pode rome- 
per , elle fe recolheo a Sevilha, e a 
armada : para Inglaterra , deixando en- 


tre nós:, nos Īnglezes , inimigos mui~ 


to mais. crueis, que os Caftelhanos, 
Naô fe cançaô os noflos Chronif- 
tas de encarecer as atrocidades , que 
eítas trópas auxiliares cometteraô em 
todos os terrenos de Portugal , por 
onde ândárad. O Povo affito fe con- 
templava atacado por duas guerras, 
mais intoleravel a dos Inglezes por 
continua , (em gloria , nem refiften- 
Ea cia. 


“mio 


96 . Histokia GERAL © : 


Erag: cia. Preparava-fe a campanha. futura y 


1382 


e. D. Joað, Meftre de Aviz, com os 
Inglezes fez huma entrada por Caftels: 
la com-ruina dos Lugares de Lobon, 
e Cortijo. D. Joað de Caftella penfa= 
va. defcarregar: o golpe com mais for= 
ca, e para elle.lhe deo occafiað aí 
marcha do Rei para a Provincia do; 
Alem-Téjo:, com defconfolaçaô ex- 
trema .dos moradores de Lisboa, que 
olhavaô efta retirada como huma fu= 
gida , que os deixava expoítos a fof=: 
frer os tratamentos mais duros dos: 
Caftelbanos. Virad elles: entrar pela 
barra as duas armadas de Sevilha , ei 


- Bifcaja compoftas de oitenta vafos , que: 


fazia. huma perípectiva apparato(a „: 
e guerreira. Deraô fundo , e fem re~ 
fiftencia do Governador Gonçalo: Men=: 
des de. Vaífconcelos, parentes..e.cria- 
tura da Rainha , delembarcavad ; paf-i 
feavaõ affoutos pelo -campo de Santa 
Clara , e fora pondo fogo.a tudo! 
deíde -os Paços de Xabregas até Vil- 
la-Nova da Rainha, fem quero ecco: 
de tantas ruinas defpertaflem o Gover-. 
nador do feu lethargo.. s 


In- 


4 A r| ss MS DD 


— 


a mam mem 


pe PORTUGAL, Liv. XIX. 99 


: — Informado D. Fernando dos dam» Etá vulg: 


hos , que os inimigos faziaô em Lis- 
boa , mandou depôr do Governo ao 
infeníivel Gonçalo Mendes , e fubf- 
tituillo pelo Prior do Crato, que mar- 
chou de Evota com (eus bravos ir- 
mãos D. Rodrigo, D. Fernando, D. 
Joaô , e D. Nuno Alvares Pereira, 
que entaô moftrou nas gentilezas do 
feu efpirito as muitas, que os Cafte- 
Mhahos podiaô efperar delle em todas 
as occafiões. Já os defembarques nad 
erað tað frequentes , depois que o 
Prior fez em poftas huma partida, 
que fora faquear Sintra. Seu irmaô D. 


-Nuno fez na armada mais vulgar © 
terror, quando no choque de Alcan- 


tarą , com poucos cavaleiros , elle 
cahido com o cavallo em terra , for- 
çou hum corpo de' trópas muitas ve- 
zes dobrado a embarcar-fe fugindo; 
deixando no campo muitos mortos 5 
e prefos : Primeira acçaô façanhofa 
de D. Nuno , que o encheo de repu- 
taçaô , e foi prefagio feliz das mui- 
tas, para que os fados o guardavad , 
e hoje fað hum pregaó illuítre da fa- 


ZOM. V. G ma, 


, 


98 HISTORIA GERAL 


Era wig. ma, que anima o decóro dos Faftos 


de Portugal. 

Quando em Lisboa fuccediað 
eftas coufas , os dous "Reis em pefloa 
eltavad com as fuas forças fobre a 
fronteira de Elvas, e Badajóz ; efpe- 
rando-fe a cada inftante ouvir a noti- 
cia de huma batalha. Face á face fe 
achavaô os dous Rivaes com femblan- 
te de inveltir-fe , quando de repente , 
fem a intervençaoS de Miniftros, fem 
que até hoje fe faiba quem a rogou , 
a paz fe ajufta entre ambos os Reis. 
Os campos , preítes a combater , fi- 
cáraô paímados ; os Inglezes atoni- 
tos; e como elles erað os mais pre- 
judicados nos ajuítes, fe os foflrêraõ 
pacientes com o temor de quem efta- 
va em cafa alheia , nað os podêrað 
levar callados , e hum fuçurro vago 
arguia de leveza a refoluçad , que 
derrotava as promeflas precedentes. Pu- 
blicou-fe a paz , e ouviraô os Ingle- 
zes a primeira condiçaô , que era o 
cafamento da Infante D. Brites, já def- 
pofada com o feu Principe Duarte, 
agora novamente promettida a Hen- 

ri- 


E E 


DE PORTUGAL, Liv. XIX. 99 


ique ; filho do Rei de Caftella. As Eta vulg, 
mais condições foraô a entrega das 
Praças ; a reftituiçaô das galés toma- 
das na batalha, que fica referida ; a 
liberdade dos prifioneiros;, e fornecer 
o Rei de Caftella as nãos neceflariass 
que conduziraô os Inglezes ao feu Rei- 
no com a grande gloria, que tirárad 
defta empreza. | 

Parece ter pouca dúvida , que O 
Rei de Caftella nað perdoou a dili 
gencia para confeguir efta paz, para 
elle mais vantajofa, que muitas victo- 
rias, fe continuafle a guérra, Elle juf- 
tamente devia temer a proclamaçaõ do 
Duque de Lancaftro ao Throno de 
Caftella , que fora feita no meio de 
hum exercito, e a que elle naô podia 
prevêr as confequencias. Os mais Ar- 
tigos , efpecialmente o do calamento 
da Infante herdeira , todos fe faziað 
refpeitofos. Porque afim o conheceo 
o Meftre de Sant-Iago , quando vio 
o Rei duvidofo em affinar o Tratado 
com a claufula da reftituiçao das galés, 
e que os Miniftros Portuguezes o amea- 
gavad com a continuação da guerra 

J ii e 


100 Hisroria GERAL 


Era vulg fe nella naô convinha : O Meftre lhé 


diffe refoluto : Que reparaes , Se- 
nhor, por vinte e duas galés em ef- 
tado de nað fervir , que nada valem, 
e por nað dares cinco nãos de tranf- 
porte aos Inglezes , quereis perder a 
importancia defta paz. Tal nað fareis ; 
que fe ifo he por evitares as deípezas, 
a minha Ordem as pagará. Fallando 
afim , refpeitofo , tomou a mað do 
Rei, como quem o forçava a afinar o 
Tratado , que com effeito aflinou. 


CAPITULO IL 


Valimento de foaô Fernandes Andeiro 
com a Rainha , e perfeguiçaô con- 
«tra D. foaô, Mefire de Aviz, 
que o reprova. 


| Lou anno havia que Joað Fernan- 
des Andeiro eftava occulto em Eftre- 
moz no meímo Palacio , aonde fe 
holfpedavaô os Reis. Aqui erað fre- 
quentes as occafiões para a muita Con- 
verfaçao, que fobre fer caufa do me- 
nos apreço , ordinariamente avanga 


DE PORTUGAL, LIV. XIX. ror 


as facilidades -notaveis , e notadas , Eta vulg: . 
que coftumad ter confequencias fu~ 
neftas. A Rainha D. Leonor conver- 
fou muito com Joaô Fernandes An- 
deiro : Converfações notadas , nota- 
veis, e muitas , origem da facilidade 
com que fe dizia, que a mað de Deos 
defcarregára a pena de Taliaô em D, 
Leonor , permittindo na fua pofloa 
com verdade o crime, que ella fals 
famente imputára a fua irmã a infe- 
liz D. Maria. Como a mina em to- 
mando fogo naô pode deixar de vapo- 
rar incendios ; a Rainha quiz , que 
Joaô Fernandes Andeiro parecefle em 
público , como moço galhardo., e 
gentil-homem., que era. 'Fudo quan- 
to pertendeo confeguio do Rei, que 
já entaô, pelos feus muitos achaques, 
parecia cadaver ; hum homem todo 
da morte. Á liberdade de fer vifio 
ajuntou a Rainha a honra de o fazer 
Conde de Ourem » que eftava vago 
pela morte de feu irmaôd. 

Gonçallo Vafques de Azevedo , 
que por (ua mulher , Camareira da 
dl » foi informado das converfa- 

ções 


I02 Historia GERAL | 


Era vulg. ções da mefma Senhora com Joab. 
Fernandes : Fiado na authoridade de: 
parente , cahio na imprudencia de lhe: 
fazer advertencias por meio de humas 
ironias, que fe no feu juifo erað de- 
licadas , para o gofto da Rainha ti- 
verað muito de grofleiras. Ella lhe 
prometteo logo , que lhe cuftariað 
caro os confelhos , que fe mettia a 
dar de graça ; e porque.temeo, que 
Gonçalo Vaíques defcobrifle o que fa- 
bia ão generofo Meftre de Aviz, qué 
incapaz de foffrer injurias de muito 
menos porte , ou elle as defaffrontas 
ria, ou as participaria ao Rei para as 
vingar: Ella fe determinou a perdel- 
los. Os meios verdadeiros, que para 
efte fim traçou a iniquidade, os feus 
authores o faberiað ; mas a fama pú- 
blica fuftentava, que forað duas Car- 
tas fabricadas pela Rainha , e Andei- 
ro, que provárað na prefença do Rei, 
como o Meftre, e Gonçalo Vaíques 
erað dous traidores , que tratavaõ in- 
trigas em Caítella contra o Rei, e 
o Eftado. 


= | | ie 


DE PORTUGAL, Liv. XIX. 103 


Ella , cheia de complaceúcia , Era vulg, 
perfuade ao incauto Principe a felici- 
dade, e deftreza com que .o feu cuiu 
dado pode haver á maô as ditas Car- 
tas: quanto fe deviad recear os dous 
inconfidentes , que emprendiad idéas 
temerarias fiados nos Infantes D. Joaô, 
e D. Diniz, irmãos do Meftre, reti- 
rados em Caíftella : que devia fegurar 
as pefloas dos traidores para delles fe 
fazer juítiça correfpondente ao mere- 
cimento da caufa. Como ainda durava 
a guerra quando ifto aconteceo , fa- 
cilmente fe capacitou o Rei de quanto 
lhe quiz introduzir a Rainha; e fem 
mais exame, mandou a Gonçalo Vaf- 
ques Coutinho , genro de Gonçalo 
Vaíques de Azevedo , que ao Meftre, 
e a feu fogro os levafle do Paço, 
aonde eftavad , para o Caflello da 
Cidade , que era a de Evora. Vaíco | 
Martins de Mello , Alcaide Mór da 
Cidade , tratou os preíos conforme as 
ordens, que recebêra; mas advertido, 
e prudente , elle foube guardar o De- 
pofito , que a Providencia amparava 
para honra, e liberdade de Portugal, 
i quan- 


104 Historia GERAL 


Erg vulg: quando o defacordo de huma mulher 
furiofa o queria fazer viima da fua 
indecencia. : | 

Na .mefma noite da prifaô foi ao 
Caftello hum criado da Rainha , e 
aprefentou a Vafco Martins hum De- 
creto fallo, em que o Ref mandava, 
que logo, fem demora fe cortafem 
as cabeças aos dous prefos. Vaíco 
Martins, que defconfiou do Decreto, 
e do menfageiro , reífpondeo , que 
executaria as ordens. Pafladas poucas 
horas voltou o mefmo emiflario a fa- 
ber fe as execuções eltavad feitas, e 
informado, que nað ; tirôu por outro 
Decreto mais forte , que apreflada- 
mente as ordenava , e o emiflário com 
vivas perífuasões as requeria. Vaíco 
Martins o defpedio , dizendo : Que 
era meia noite , hora incompetente 
de fazer juftiga: que naquelles Decre- 
tos poderia haver paixað , e queria, 
que o Rei défle lugar á ira: que pela 
manhã o informaria do que paflava , 
e entaô executaria as ordens , quando 
da Pefloa do Rei as recebeffe. Afim 
derrotou a fabio Vafco Martins as 


in- 


DE PORTUGAL, LIV. XIX. iog 


frnitrigas malvadas , que aflombráraó Eta vulg. 
o Rei, quando vio furtadas as fuas 
firmas ; mas com o aflombro fe fatis- 
fez , e foi-fe para o Vimieiro deixando 
os innocentes prefos em Evora. 
A Rainha que ponderava fruftra- 
das as fuas idéas , e temia que os 
prefos brevemente feriaô foltos , quiz 
fazer feu efte negocio para obrigar O 
Meftre; tratou, confeguio a foltura, 
e na aufencia do Rei deo hum dia de 
jantar ao Meftre. Elle fe approveitou 
da conjuntura para lhe perguntar à 
caufa da fua prifaô, que a Rainha nað 
teve dúvida de imputar a Vafco Por- 
calho pelo aleive , que lhe levantára 
na prefença do Rei , aflegurando as 
fuas correfpondencias em Caftella, e 
a guerra que com os Infantes feus ir. 
mãos tratava de fazer a Portugal; mas 
que D. Fernando eftava informado da 
falfidade de Porcalho. Outros prefu- 
mem, que a Rainha em nada contri- 
buira para a liberdade dos prefos, an- 
tes chegára aos pontos da ultima de- 
fefperaçaS , quando os vio foltos ; e 
nað fabendo a que attribuifle efta 
so . TẸ- 


106 Historia GERAL 


Era vulg, refoluçad do Rei 9 ajuntou å violencia 


do feu fegredo a fimulaçaô da fua po- 
litica. 

Nað faltárað ao Meftre criados 
zelofos , e valentes , que quizeffem 
tirar a vida ao Commendador Mór de 
Aviz Vafco Porcalho pelo tetemu- 
nho , que a Rainha aflegurava tinha 
levantado a feu Amo : mas elle, que 
conhecia a duplicidade daquella Se- 
nhora , os deteve, e períuadio guar- 
daflem o feu valor para o empregarem 
em occafiaô mais juta. Com tudo, 
efte efpirito fublime , occupado da 
injuítiça que fe lhe acabava de fazer, 
vivamente fe queixou ao Rei, e em 
público pedio lhe diflefle a caufa da 
fua prifaõ. D. Fernando, que nað ti- 
nha alguma com que a cohoneftar, e 
ainda que já conhecia o caracter da 
Rainha, o amor nað lhe dava lugar a 
arguilla , voltou ao Meftre em tom 
mageftofo : Que elle tivera por con- 
veniente obrar affim com a fua pefloa, 
para que conhecefle o mundo o poder, 
que tinha fobre elle. O Meftre, que 
fentio , mas nað fe perturbou no 

Qla 


DE PORTUGAL, LIV. XIX. 107 


efta incoherencia , refpondeo retirane Era vulg, | 
do-fe : Delde que vos reconheci por 
meu Rei , Eu creio que he afim o 
que me dizeis. o 
Ainda nað fatisfeito o heroico 
Meftre com eftas diligencias , que fi- 
zera para foldar a quebra da fua hon- 
ra offeridida ; pelas elquinas das ruas 
de Lisboa amanhecêrad muitos car- 
teis, em que defafiava a todos aquel- 
les, que fem reípeito á fua alta qua- 
lidade , tiverad o atrevimento de dizer, 
que elle havia faltado aos deveres da 
fua fidelidade , e á veneraçaô que con- 
fagrava ao Rei feu irmaô. Como a- 
grande Dignidade defte Principe pus 
nha a todos os feus inimigos fora da 
clafle de refponderem a eftes carteis 
para medirem as efpadas: Os Officiaes 
da fua cafa fixárad huma Carta geral. 
de defafio , em que fe offereciað a 
bater-fe com quantos oufaflem a ma- 
cular a integridade dos procedimentos 
de feu Amo. Na6 houve pefloa , que 
tirafle a cara a eftes arreitos , tanto 
do Meftre , como dos feus criados; 
porque D. Leonor, fobre fer Rainha, 
no era 


108 Historia GERAL 


Era vulg. era mulher , que nað podia fahir a 


campo , e efte fem combate ficou lia 
vre ao Meĝre para celebrar a victo- 
ria. 

Dous mezes depois dete fuccef- 
fo chegou a Portugal a noticia da 
morte da Rainha D. Leonor de Caftel- 
la, Infante de Aragað, a primeira Se- 
nhora defte nome fatal ajuftada a cafar 
com o Rei D. Fernando : fucceffo, 
que pôz em inquietaçað o efpirito dos 
noflos Soberanos ; o do Rei com hum 
objecto novo para o exercicio da fua 
variedade; o da Rainha penfando no 
Pai genro mais poderofo , que o fi- 


lho para fe fuftentar. na authoridade. 


depois da morte do marido, que para 
ella corria accelerado. O mefmo foi 
conceber-fe a idéa , que refolver-fe os 
Reis à execuçaõ della, lem duvidarem 
na rotura do Tratado freíco, nem em 
offerecer a Infante ao Rei viuvo, que 
podia nað fe lembrar de pedir para efa 
pofa a Princeza , que acabava de ajuf- 
tar para nora, O favorecido Joað Fer- 
nandes Andeiro , Conde de Ourem, 
foi nomeado para Embaixador Extras 
: E Of- 


DE PorTUGAL, Liv. Xix. 109 


ordinario de huma commiffað , que por Efa vulg.- 
lhe fer tað vantajofa aos intentos , a 

havia trabalhar com os maiores esfor- 

cos. 

Sahio efte homem de Portugal 
com metade da Corte lifongeira, for- 
mando-lhe huma equipage tað fober- 
ba, e magnifica , que entaô fe dizia 
em ambos os Reinos a altas vozes: 
Que Andeiro marchava em Rei, e que 
o Rei ficava Andeiro. A defpeza excel- 
fiva , que D. Fernando fez nefta occa- 
fiað para o Miniftro apparecer pompo- 
fo em Caftelia , foi no Reino aflum- 
pto da geral murmuragað , que fe nu- 
tria com a lembrança de outras pro-. 
fusões indifcretas , e rematavad com 
a prefente o vulto de huma prodiga- 
lidade fem medida. No lugar do Pin- 
to junto a Toledo fez Andeiro ao Rei 
D. [oaô as propoítas, de que hia en- 
carregado. Ellas adoçáraô bem prom- 
ptamente a trifteza , que o Rei moltra- 
va ter concebido pela morte da Rai- 
nha fua efpofa. Elle nomeou para (eu 1383 
Embaixador à nofla Corte a D. Joað 
Garcia Manrique, Arcebiípo de seg 

por 


TIÒ Historia GERAL 


Era vulg. poftella, que foi efperado em Almetz 
da , e conduzido a Lisboa pelo feu 


Bifpo D. Martinho ; e como nað fe 
ignorava o negocio a que vinha o Ar- 
cebiípo teve audiencia prompta. 

As condições do novo cafamen- 
to foraô ajuítadas nas primeiras deli- 
berações , porque a vehemencia dos 
defejos mutuos nað davað lugar a de- 
moras longas, Por efte Tratado foi con- 
cluido : Õue fe o Rei D. Fernando 
falleceffe fem filho varað , que a Infan- 
te D. Brites feria Rainha de Portugal : 
Que o filho primogenito , que della 
nafcefle, lhe fuccederia na poffe defte 
Reino : Que fe ella naô tivefle fuc- 
ceffaoô , feu marido herdaria Portugal 
para fi depois da morte de feu fogro 
D. Fernando : Que tambem efte feria 
Rei de Caítella na falta dos filhos, 
que D. Joaô já tinha da primeira mu- 
lher, dos que podia ter da prefente , 
e das outras futuras , (e mais vezes 
cafafle. Em fim, efa infeliz Infante , 
depois de fer promettida a D, Frediri- 
co , irmaô de Henrique de Caftella , a 
D. Henrique , e D. Fernando , e 

o 


` 
i 


DE PORTUGAL, Liv. XIX. sjit 


do Rei actual do mefmo Reino, a D, Era vulg. 
Duarte, filho do Duque de Lancaftro, 

veio a cafar com o viuvo D. Joaô I. 

para carretar a Portugal trabalhos, que 

fe a Providencia quiz fazer gloriofos, 

os meios de lhes colher os frutos fo- 

rað tað aíperos, que fe fariaô intole- 

raveis a outra qualquer Naçaô , que 

nað fofle a Portugueza. 

No dia 30 de Abril fe celebráraõ 
as vodas na Capella Real, e fe deter- 
minou o da partida, a que naô pode 
afitir o Rei, já nefte tempo em efla- 
- do laftimofo, que lhe prognofticava a 
brevidade da morte. A Rainha com to- 
da a Corte marchou para a fronteira 
de Elvas, aonde fe havia fazer a entres 
ga da nova Rainha de Caftella a feu 
marido , que mandou a feu filho o In- 
fante D. Fernando para aquella Praca 
em refens á Rainha de Portugal , em 
quanto nað confummava o matrimo- 
nio. Nos planos entre Badajóz, e El- 
vas fe armáraóô tendas magnificas do 
campanha , aonde haviad aflifir as 
duas Cortes na funçaõ da entrega, 
Nene lugar deo o Rei o juramento 4 

que 


112 HISTORIA, GERAL >` | 


Era vulg. que entaô fe coftumava, fobre humà 
Hoíftia confagrada de guardar todas | 
as condições eftipuladas no Contrato 
matrimonial : ceremonia, que D. Fer- 
nando já tinha cumprido da fua parte. | 
Depois veio o Rei receber as Rainhas ás 
portas de Elvas, por onde ellas fahi- 
raô a cavallo, e acompanhadas de am- 
bas as Cortes , chegárad ao campo, 
aonde jantárað. | 

Aqui fuccedeo hum cafo memo- 
ravel , que qualificou de aufada a co- | 
rage inimitavel de D. Nuno Alvares 
Pereira, Comêraô os Reis com o 
Meitre de Aviz a huma meza. Os Se- 
nhores tinhaõ preparada outra em fren- 
te das dos Principes, que foi occupa- 
da pelos Grandes das duas Cortes, 
fem fe lembrarem de D. Nuno, e de 
feu irma6 , que pafleavad na tenda, 
e ficáraô fem lugar. D. Nuno incapaz 

de tomar eita defatençaô por cafual , 
dife ao Prior feu irmað , que fe re- 
colheflem; mas que antes queria mof- 
trar a Portuguezes, e Caftelhanos, que 
os homens como elle naô fotfriad def- 
cortezias, Diflimulado foi continuanda 


E 





= aa e 


— 


De PorTYGAL , Liv. XIX. tiş 


% paffeio por junto da meza , e quan- Eta volg: 


do efteve em proporçað , de hum en- 
contro deo com ella em terra, Todos. 
os aflitentes fe perturbárað , nenhum 
{e moveo, e D. Nuno fem alterar o 
pafleio , foi fahindo com feu irmaô, O 
Rei, que ao grande eftrondo da qué- 
dá , reparou na meza cahida ; vio O 
focego com que D. Nuno fe retirava; 
cheio de perturbaçaS perguntou, que 
homem era aquelle. Informado de to- 
dos, que era D. Nuno Alvares Perei- 
ra; do motivo, que em acto tað ref- 
peitavel o obrigára a tomar huma fa- 
tisfaçaO tað eltranha, diffe: Elles vað 
muito bem vingados ; e homem que 
ba minha prefença tem oufadia (eme- 
lhante em defaggravo da fua honra, 
he digno de louvór, porque tem co- 
raçad para muito. Os fueceflos pofte- 
siores moftráraôd a efte Principe, que 
elle profetifára fobre a eabega pros 
pria. Naô teve mais confequencia efta 
temeridade de D. Nuno , que algum 


“dia feria lembrada do Rei de Caítella 


com o arrependimento de nað lhe le- 
var neta occafiaó a Ea efpetada 
| VV. na 


114 “Historia GERAL 


Eta vulg. na ponta da lança , para impedir. as 


muitas dos vaflallos. proprios, que el- 
le cortou com a fua efpada.: i 

Os prazeres defta fefta correfpon» 
dêrað á grandeza precedente , que. os 
preparára ;. e acabada a funçao, o Rei 
de Caftella acompanhou a Rainha de 
Portugal até Elvas , donde voltou pa- 
ya conduzir a efpofa a Badajóz. Erað 
foberbos os preparos, que na Cidade 
fe tinhað feito para ete recebimento, 
Nella quiz o Rei , que fofem dadas 
com afliftencia dos Biípos Portugue- 
zes, e Caftelhanos as bençãos nupciaes 
á Rainha. Sahio o Rei do Paço a cavallo, 
e a Rainha em huma haquenea magnifi- 
camente aderaçada , que levavad de re- 
deá ao feu lado efquerdo Leaô V. Rei 
da Armenia, que tinha vindo a Hefpa- 
nha da fua prifaô de Babylonia ; ao 
efquerdo D. Joað Meftre de Aviz, 
feguidos aos mefmos lados do Infante 
de Navarra D. Carlos, e de hum Gran- 
de de Caflella , todos a pé. Feita a 
funçao, o Rei de Caítella diftribuio 
E copiofas pelos Fidalgos 
` Portuguezes, que fentindo ferem che- 


bePorTUGAL, Liv XIX. 116 


“fadas: as vefperas do (en Reino recahir Eta volge 
na:dominaçao: Caftelhana:, já lhe chos 
savaõ as exequias nas liberalidades pros 
fufas mandadas -fazer pelo Rei D. Fera 
Nando.: aos: Caltelhanos., que .deixavad 
efgotadas..os efpiritos do Eltado. As 
Suas: medidas fe podem córtar fó pelas 
que: neka oerafiaõ.sesebeo D. Afon- 
fo: Mdxica , que levou da-nófla para 
a fua cafa zomi] marcos de baixella 
«de prátk + yo marcos de-ouro , 30 
«cavallos ,; e. 30 machos: prectofamente 
ajaezados y: excellentes tapeflarias , ea 
propritdade da Villa de Torres Ve- 
gras, Cs tire a a a 
Ceflárad . as Hberalidades de D. 
Fernando poucos dias antes da fua 
morte : teve fim o trabalhofo nego- 
cio do cafamento de fua filha, e quan- 
do hum fogo lento lhe hia confum- 
mindo a vida , outro mais ardente 
lhe atiçou voraz o do odio contra a 
' defcomedido Joa Fernandes Andei- 
To , objedio do efcandalo geral do Po 
vo. Detérmina o Rei defcartar-fe def- 
te phantaíma eftrangeiro , que fabmet= 
tia ao medo tantos di heroicos; 
o ii € 


116 - Historia GERAL ʻi 


Era vulg. e para a façatiha de lhe dar a: morté; 


fó entende. com defenibaraço. a feu ir- 
mað- o Meftre de Aviż. Elle “lhe ef- 
creve, é dá as razões: ; que o. obri- 
“gaó a pedirlhe, que-'bumhas mãos ta 
' honradas como as fuas- , fejaô-o inf- 
trumento do leu defaggravo j- lavan- 
do-as no fangue- de:Andeiro. O Serre- 
tario comfidente:, : que fez a Carta i, 
antes deva fechar lhe reprefenta : Que 
pondere as qualidades do efpirito (im 
blime do : Meftre , que fe já-era ama- 
do do Povo , por efta occafiað , em 
que elle o mettia , ficaria adorado: 
Que as relultas poderiaô fer funeítas, 
nað havendo no Reino 'Succeflor va- 
tað , e por iflo fe devia6 prevenir as 
contingencias futuras. : Produziraô ef- 
tas lembranças os feuseffeitos ; quei- 
mou-fe a Carta, e tanto na coníide- 
taçaô do Rei, como no juilo do vaf- 
fallo pefou menos a publicidade da af- 
fronta, que dar huma occafiad ao Mef- 


tre de fe fazer efpectavel. Porém a 


vingança a que o Rei o elcufou na vi- 
da , elle faberá tomalla honrado depois 


da fua. morte. 
CA- 


DE PORTUGAL, LIV: XIX. 117- 
-CAPITULO I, 
Caracter do Rel D. Fernando , fua more 


Era vulg. 


o te, e fepultura.' 


B.n ao largo trata8 os #offos Chro- 
niftas os-defeitos humanos, do Rei D. 
Fernando , e todos fazem à fua me. 
moria, a injuítiça de paflar em filencio. 
as fuas, boas qualidades, com efpecia- 
lidade a bella ordem, que elle eftabe- 
leceo no interior do Reino, Digaôd que 
elle foi hum prodigo., incerto nas;re- 
foluções , com. variedade , ẹ ainda 
fraqueza nos modos de fe conduzir 
mas nað fe eíqueça , que elle repris 
mio o luxo, a demafia do trem, que 
já entaG começava a arruinar as cas 
fas, e a Bado, Os jogos, que faô 
outra pefte das Repúblicas ,. elle. os 
abollio por meio de penas feveras, Os 
wagamundos erað o feu. rancor; cafa 
tigava a huns; fazia trabalhar; os ous 
tros, © ọs que erað. verdadeiramente 
invalidos, os fuftentava . de fua. fazen- 
da para naĝ importunarem os Póvos 
a com 


718. Historia GERAL - 


Era vulg. com os clamores da mendicidade. Ze- 


Jofo pela  tonférvaçaó do Eltado , que 
fentia o exceflo das acquifições da 
Órdens Regulares , publicou hum Edi- 
to, que as taixafle , aùtes que a fua 
liberdade em pofluir o defpojafle dos 
miós pata fe confervar.. ` 
Com - a rrefma idéa regulou as 
difpofições teftameritarias , para que 
contribuiáa mais a prevençaô , e ma- 
ximds dos ihitrigantes, que a vontade 
dos nrofibundos ; forçados buns ; ou- 
fro3 -perfuadidos a qué a vida, que fe 
lhes acabava, ellés à eternizaflem na 
tmêémoria das páredes de hum Moftei- 
su ` que lhes ferviria de Padraô im- 
mortál , ainda que ós patentes mais 
chegados ficaflem redúzidos ão eftadó 
trite da pobreza, que rifca na alma 
os caráétetes da honra ; ou fe alguma 
éóula lhes deixavad, em lugar de hu- 
ma Ífueceflaô proveitofa, era6 muitos 
pleitos impertinentes. Afim taixou å 
juftiga limites á cubiça daquelles, que 
devém eftimar a pobreza Evangelica 
pelo feu théfouro ; daquelles a quem 
é defbrezo do mundo coube em par- 
Do atm ti- 





DE PORTUGAL, LIV. XIX. JIIQ 
tilha, € efcalhêrad a nudez por gal- Eta vulg. 
la da (ua virtade. > = . 

-. Porém. o Rei attento a efte ge- 
nero de pobres. , que a vocaçaô , ou 
` a eleiçaô defpojou dos teres , e ha- 
veres do feculo, do amor ás frias vos 
zes meu, ce teu.; como a fua equida- 
ge nátural nos feus juifos parecia dar 
huma nova força à authoridade Real: 
Elle permittio , que os teftadores po- 
deflem di(fpôr de huma tal porçaõ de 
dinheiro a favor das Cafas Regulares, 
por nað fer jito , que ellas fentifêm 
hum prejuifo continuado no efqueci- 
mento perpetãyo , nem os Chriftãos 
folem privados do merecimento de 
deixar os feus legados , que fað buns 
meios approvados por Deos para a ex- 
piaçaô das culpas. A eftas dilpofições 
faudaveis fe feguirad outras refpegtivas 
ao commercio, á Navegaçad, á Agri- 
cultura , que fizeraô o Reino forel- 
cente , e fornecêrað meios ao Rei 
para exercitar as liberalidades monte 
truofas, que virad em todas es otca- 
fiões Portugal , Caftella., e Aragað. 


De- 


Erą vulg. 


120 HisTORIA GERAL 


Depois . de tantas acções brilhane. 
tes nada mais faltava a D. Fernando: 
para completar huma grande obra, 
que reparar as Praças confideraveis da: 
Monarquia. Elle o confeguio venturo- 
famente. com muitas , em que def- 
pendeo thefouros com largueza igual 
ao goífto. Nas muralhas de Lisboa, 
Evora , e Santarem fe confervad as 
memorias do feu nome, e os veftis 
gios magnificos da fua liberalidade. 
Como a fua Capital elle a queria , 
nað fó forte como já fora , mas ref- 
peitavel, e formofa como a fua gran» 
deza pedia , a nada perdoou para O 
confeguir. Em Evora, fe fe lhe nota, 
que arrazou a fortificação dos Roma- 
nos, que defendia a Cidade com o 
reípeito , para levantar a fua : nos ul- 
timos tempos , de nada ferviria o ref- 
peito da dos Romanos, fe a fortale- 
za da (ua nað fizefle Evora tantas ve- 
zes re(peitavel aos noflos inimigos. Os 
trabalhos de Santarem , e de Coimbra 
naô merecérab menos de exadtidad , 
e de cuidado. Mas o que fobre tudo 
affombra he, que obras tað grandes, 
> tað 


DE PORTUGAL, LIV. XIX. 21 


tað uteis aos Póvos , tað gloriofas pa- Era vulg. - 
ra o Reino, que pediaô efpaços tað 
longos, como :eraô immenfas as def- 
pezas, ellas foraô acabadas no termo 
breve de dous .annos. E: | 
~ -— Huma ordem tað bella, que D. 
Fernando eftabelecia no feu Reino, 
nað fó lhe adquirio a felicidade de fer 
geralmente amado; mas nós a deve- 
mos entender pela próva mais decifiva 
do defejo, que. elle moftrou de repa- 
yar no fim da vida os defeitos , que 
nað ignorava lhe erað notados deíde 
os principios do feu Governo. De- 
monftraçaô alguma de fenfibilidade fo- 
bre elles occultou efte Principe à via 
dos feus vaflallos. A mais indifferente 
das fuas acções a propunha á idéa tað 
cheia de enormidade , que gradualmen- 
te lhe foffe elevando o pefar a refpei- 
to das outras , que neceflitavad na 
realidade de compunçaS mais viva pa~ 
ra fazer eficaz o arrependimento. No 
burel do habito de S. Francifco , que 
nað deípio em todo o refto dos feus 
dias, e decurfo da doença , tinha hu- 
ma fé taô forte, e huma devoçaô tað | 
ar- 


122 HISTORIA GERAL | 


Era vulg. ardente , que o regava com lágrimas 


de ternura, que fazem frutos dignos 


«de penitencia. Nada havia em que nað: 
encontrafle delicaderas de violencia 


hum Rei, que com a fua bondade 
igualava a Religaô com as boas in- 
tenções. E : 

' Sobre muitas virtudes fublimes 
remontou D. Fernando a da conftan- 
cia heróica com que [upportou os ata- 
ques da fua longa moleflia, a acerbi- 
dade das dores , as viinhanças da 
morte. Algum dia baftava vêr D. Fer- 
nando entre os homens para fe conhe- 
cer , que era Rei. Ágora as queixas 
o reduzirad a eftado , que atéa figura 
de homem deRruirad ; mudada a ef- 
peciofidade em laftima ; imagem hu- 
mana", que paflou com a figura do 
mendo, que voa. Nefa fituaçad tril- 


te o Rei D. Fernando nað fe eíqueceo. 


de difpôr a benefício dos Officiaes da 
fua Cafa , como bom Pai de Fami- 
lias , que nas recompenfas dá outros 
tantos teftemunhos de generofidade a 
refpeito daquelles , que bem o fervi- 
zaô. Elle arbitrou a cada hum fundos 
pros 


DE PORTUGAL; Dtv. XIX. 123: 


proporcionados , que para: o refto”: da Era Wg. : 
vida lhes produzifle o neceflário para 
os. Commodos da: paffagem ,. fem O 
efperarem nå demòra das- merçês fu- 
toras:, que pela mað do: novo Am 
poderia nað fer promptás. ` -= 7; ~ 
-o Engraveceo. o mal etando o Rei, 
eim Lisboa. Elle cuidou em.fe:prepa- 
rar para a morte , e em ordénar na. 
vida as fuas exequias. Em quanto a 
éftas , comb D.. Fernando fé mettia: 
na ordem dos Reis, que no principio. 
dos Goverhos o:feu Povo, .o feu Ef- 
tado he o feu gofto, elle recufou to+. 
das as honras , que previo fe pode- 
riað fazer depois da mórte a huma 
pefloa : do feu carater.. Antes. de fe 
apartar aalma, D. Fernando fe partio 
do mundo, amortalhando-fe em: vida 
no habito do Serafico Patriarca, com 
o qual efperou a mórte animofo. Hu- 
milde até ao profundo. do abatimento, 
rogou aos feus vaflallos o encomnien- 
daflem a Deos mettido no número dos 
{eùs inimigos ; porque nað lhes mere» 
cia outro lugar hum Rei difbpador do 
feu Eltado , fempre entregue ás vi 
a 


124 HISTORIA GERAL | 


Era vulg. da complacencia propria ; mas qué 
nito feria: mais heróico o feu. meres 
cimento , fazendo : rogativas.:ao -Cea 
pelo feu mefmo adverfario, : -> > 

Defa natureza forað os. ultimos, 
e felices fentimentos. de D. Fernando, 
que os acompanhou. de huma innun- 
daçaõ de lagrimas devotás , de actós de 
Fé Íublimes, de refignaçaô catholica 
no adto de receber ọs Sacramentos da 
Igreja. Afim morreo .o Magnifico Rei 
D. Fernando em. Lisboa aos 21 de 
Outubro, com 38 annos de idade ; 6 
nove dias, e de Reinado 16 , nove 
mezes , etres dias. Seu. corpo foi de. 
pofitado no Convento: de S. Francif- 
co de Lisboa ,. donde o leváraS Á fe- 
pultura , que elle mandou fazer em 
vida no. Convento: do meímo Santo na 
Villa de Santarem. com o Epitafio fim- 
ples : Aqui jaz;o mui nobre. Rei D. 
Fernando, filho do mui nobre Rei D. 
Pedro , e da Infante D. Conftança. A 
difpofiçaô natural. fe excedeo'nelle com 
elegancia formofa em aípeio de Prin- 
cipe, em mageftade evidente , em gras 


DE PORTUGAL, Liv. XIX. 128 


ca rege a que: o:diftinguiãd! entre Era vulg. 
os. | 


utros ihomens, 2.0 o sito 

- © Cum a morteide D. Fetnando ef- 
quecêrab:.em.. Postugal.: o5: (eus: def- 
concertos: de homen, que antes fe'lhe 
arġbiað.; as furs: prodigalidades: indif- 
cretas.; queé-deixgvad os .thafourus . ef- 
gotados 3. as’ fuas guerras (em conf- 
deéraça6: , que- tantos damnos caufárað 
aos Póvos 3 os Jeus: amores 'ipquietas 
com D. Leonor; que pózeraú:no Thro- 
nó a huma vafihila: defatendidas. muitas 
Princezas : -e (óleimbravaó as. fuas vir- 
tudes catholicas ;"a:Íãa piedade -para 
com Deos:; o feu-reípeito à Igreja Sano 
ta; a fua;indole: benigna 5.0 few ani- 
mo affavel, e brando ,; que ainda: aos 
mais humildes agafalhava ;: que -aos 
defvalidos foccorriá.; que o facilitava 
ao trato; que o inglinava. a moftrar- 
fe ao Povo; que lhe defterrava as idéas 
da vingança ; que nað lhe confentia 
fer avarento; que o forçava a paflar de 
liberal a prodigo; e que éra a origem 
do amor univerfal , mais neceflario 
aos Principes, que as 'maximas de fa~ 
zer-íe temer, | 

Eí- 


126  . Hisrôria: GEKAB `~ 


Bra vulg. -Efe Rei criou-de novo. os. dãas 


randes empregos de Condeftavel „e 
MMarichak-na vCoáfias s em que refor- 
-mou:a Milicia, queainda e-conduzia 
“pala  fórma da. antiga. Eufitania: O fe- 
gundo Condeftaveh foi- D. Nuno Alva- 
-ses-Pereira 1,:- e “o: primeiro» Marichal 
“Gonçallo: Vafques -dei Azevedo.: Para 
nós darmos noticia: do exercicio deftes 
icárgos ;'he: neceffario fabermos O mor 
do. do antigo. Regulamento .,' que. por 
“elles: foi reformado: 'Porvfucceflad dos 
noflos Lulitanos primitivos chegou até 
ao tempo do Rei:D; Fornando o ufo 
de “chamarmos ao exercito Hofte ;. á 
fua vã-guarda Dianteirá ; á fua. reta» 
guarda Gaga ; aos dous lados Cofta» 
neiras, Quando o Rei nað .eftava pre: 
fente, o Alferes Mór commandava to» 
da a Hofte ; mas quando afiftia o Rei, 
o Alferes cobria, e governava fó a 
Dianteira. A Hofte fe compunha da 
gente de pé, e cavallo, que comba- 
tia com differentes generos de armas 
de ferro, pão, fundas, béítas , viro- 
tões , e outras de arremeço, que en- 
tað chamavaôd armatoíte. Os movi- 

na men- 


DE PORTUGAL „Liv. XIX. 127 


thentos erað á proporçaô do modo dos Era vulg, 
combatentes , e as divisões.dos. cop- | 
pos fe chamavaõ mangas ,. que fe avari- 

Gavað. conforme a neceflidade «a pe- 

Mid e. y aonr a aae 4 
- D.Fernando hidou os nomes, e 
fórma militar com pouca differença do 
que hoje fe pratica.. Fez da juriífdiçaõ 
do Alferes Mór. tres empregos diftin- 
tos , todos de grande. authoridade. A 
elle fómente o encarregou'de levar, € 
defender a Bandeira-Real; e parao go- 
verno do corpo dó exercito criou. os 
cargos de Condeftavel, e Marichal 
com muitos fubalternos, que erað ou» 
tros tantos Auditores , e -Ajudantes', 
eftes que fervia6 de receber as or- 
dens , os outros de fazer juítica; A 
Dignidade de Condeftavel principiou 
entre os antigos Romanos ,. donde paf- 
fou o ufo ás outras Nações, e ultima- 
mente a Portugal no anno paflado de 
1382 , em que o Rei D. Fernando 
criou o primeiro, que foi D. Alvaro 
Pires de Caftro , Conde de Arrayolos, 
irmaô da Rainha D. Ignez de Caftro. 
A efte fe feguio q grande D, ET 


s 
to’ 


158 Hisrotia GERAL | 


Era wulg: Alvares Pereira, e. dahi em diante fe 
confervou (empre o emprego nos feus 
Defcendentes até a Acclamaçaõ do Rei 
-D. joa IV., a cuja corvaçaô aíhítio 
com o eoque o Marquez de Ferreira 
D. Francifco dé Mello. Depois ‘no ju- 
ramento de feu filho o Infante D; Pe- 
adro para Regente , levou a mefma ine 
fignia o- Duque de Cadaval D. Nuno 
Alvares Pereira, | 

- Efta palavra , que: val tanto co- 
mo dizer Conde-Eftavel , fignificava 
que à Condeftavel éra bum homem , 
gue-afliftia fempre ao lado do Rei, No 
exercito era a primeira peflõa depois 
delle, fe eftava prefente , e na aufencia 
faziatodas as fuasvezes. Elle podia na 
guerra ufar de guiaô, de maças, de 
heraldos , e de Eftoque embainhado 
com a ponta para baixo, em difleren- 

do Rei , que o levava nú com a 
ponta para cima. As fuas regalias (ad 
as mefmas dos Duques, o Coronel al- 
to, o elmo direito, e dourado. Per- 
tencia-lhe eleger Capitães » explorado- 
res, guias, atalaias ; marcar terrgno 
Ro exercita; refolver fem appellaçaõ os 

Ca= 


DE PORTUGAL „Liv. XIX. 129 


cafos de juítiça; ter parte nas prezas, Eta vulg.. 
e unir nos Bandos públicos a fua voz 
á do Rei. Nas Praças, em que efle 
afhítia, tinha o Condeftavel as chaves, 
e elle punha os preços aos generos , 
que os:vivandeiros traziaô ao exerci-. 
to. O exercicio do cargo de Condef- 
tavel nas coufas concernentes á guer- 
ra, o daô hoje os Reis ao feu arbi- 
trio, nomeando Generaes , e Chéfes 
das Armadas a quem lhes parece, 
fervindo elle de hum titulo honora- 
rio. | 

Do Marichal diz o Livro do Rei 
D. Diniz, citado no Capitulo XLVIII.. 
Livro XXII. do VIH. Tomo da Mo- 
narquia Lufitana : Que depois de Con- 
deftavel he o maior, e mais honrado 
officio da Hofte , porque a elle per- 
tence fazer muitas coufas , que tan- 
gem á governança da Hofte , fegundo 
fe dirá em diante ; e bem afim dos 
que pertencem á governança da jufti- . 
“ça, alim como ao Condeftabre , .e 
elle lhe póde dar, ou mandar a feu 
Ouvidor, que lhe dê provimento com 
direito. Efte emprego nos tempos em 


TOM, V. lo que 


130 Historia GERAL 


Era vulg. que fallamos , era huma juítiça nos 


exercitos , que os fazia prover de agua, 
e lenha: que tinha a feu cargo exer- 
citar os foldados nas evoluções milita- 
res; Caftigar-lhes os crimes : Que ti- 
nha as chaves das pórtas das Praças ; 
rondava as fentinellas; fornecia man- 
timentos aos campos ; examinava os 
pefos , e medidas ; tinha infpecça6 
juntamente com o Condeftavel em tos 
dos os negocios civis, ecriminaes do 
Exercito. O primeiro Marichal de Por- 
tugal foi, como difle, Gonçalo Vaf- 
ques de Azevedo , Senhor da Lourie 
nhã, criado pelo Rei D. Fernando, 
e que pelo meímo modo do Condef- 
tavel, veio a parar em titulo fimples 
de honra, que os Reis deraô a alguns 
Fidalgos ; porque no exercicio lhes 
fuccedêrad os Tenentes Generaes, 
que fa6 as fegundas pefloas dos exer- 
citos. 

Além deftes empregos , e das in- 
numeraveis mercês , e gratificações, 
que o Rei D. Fernando fez em fua 


vida, como eu deixo referido : Elle, 


foi o primeiro, que augmentou o nús 
| me- 


ça 


DE PORTUGAL, Liv. XIX. 13t 


mero, e deo fórma aos Titulos , que Etá volg: 
até entað erað raros , e tinhað pouca 
authoridade no Reino do tempo dos 
primeiros Reis até D. Diniz, e D. Pe- 
dro ; efte que fez Conde de Barcel- 
los a D. Joaô Affonfo de Menezes ; 
aquelle que antes deo o meímo Con- 
dado a D. Joaô Affonfo de Albuquer- 
que. D. Fernando porém , que nað 
podia ter a liberalidade ociofa , e. 
aquelles dous exemplos o eftimulavaõ 
a honrar os benemeritos: Elle nomeou 
Conde de Neiva, e Faria a D. Gone 
galo Telles de Menezes , irmaô da 
Rainha : Conde de Cea, e de Sintra 
a feu tio D. Henrique Manoel de Vi- 
lhena , filho baflardo de feu Avô D. 
Joað Manoel , Principe de Vilhena: 
Conde de Barcellos , e Orenfe a D. 
Affonfo Telles de Menezes , filho de | 
-~ D. Joaô Affonfo Telles, e porque 
morreo moço , deo o Condado de 
Barcellos a D. Joaô Affonfo Telles de 
Menezes , irmaô da Rainha D., Leo- 
nor : Conde de Arrayolos , Alcaide 
Mór de Lisboa, e Condeftavel a D. 
Alyaro Pires de Caftro , irmaô da Rai- 
Lii nha 


132 Historia GERAL 


Eravulg. nha D. Ignez de Caftro : Conde de 
Ourem a Joaô Fernandes Andeiro :: 
Conde de Viana a D. Joaô Aflonfa ' 
Telles de Menezes , filho do Conde 
D. Joað Affonfo Telles , que os feus 
metmos vaflallos matáraô na Villa de 
Penela. | z 

Finalmente, o Gentil D. Fernan- 
do elegeo por devifa o Emblema my fe 
teriofo de huma efpada , que do mefe 
mo golpe atraveflava dous corações s. 
e por alma a letra: Cur non Utruma 
que: Se efte Symbolo nað fazia allu- 
faô á ferida do amor , que com a mefe 
ma eftocada penetrou o feu, e o cos 
raçað de D. Leonor Telles para os 
unir , quando os defpedaçava : Com 
elle quereria fazer entender, que a 
fua penetraçaô defcobria as idéas occul- 
tas , que erað arcanos dos corações 
humanos , ainda que remontados para 
todo o exame , objectos de probabie 
lidades á fua perfpicacia , que teria a 
-honefta jadtancia de faber prevenir dee- 
fignios nað manifeftos. 


LI- 





LIVRO XX. 
Da Hifloria Moderna de Portugal, 


CAPITULO IL 


Movimentos de Portugal no principio do 
dm dai o que fe  feguio á morte 


do Re: D. Fernando. 


Á mais o Reino de Portugal, de- 

J pois que teve Reis proprios, fen- 
tio os effeitos triftes , que a Anarquia 
“Coftuma caufar nos Efados. Diz o nof- 
fo Faria e Soufa com a fua coftuma- 
da eloquencia nefta occafiað : Que fi- 
lhos dos feus Reis viað os Portugue- 
zes , e nað lhes deixavað vêr Succel- 
fores para o feu Reino as confusões, 
que fe feguirað à morte do Rei D. 
Fernando. Po máis de anno e meio 
“durou efte Intgrregno ; mas em efpa- 
ço tað curto corrêrað ` "aquellas confu- 


sões tað aprefladas , que: alagárað o 


Reino com huma ingundaçaó de e 
å” 


Era vulg. 


134 HISTORIA GERAL 


Era vulg. jamidades. Via-fe nelle a D. Joað ; 


Mefre de Aviz , além de baflardo, 
folemnemente profeflo ya fua Ordem, 
bem longe dos penfamentos de reinar. 
Viaó-fe defterrados em Caftella aos 
Infantes D. Joaô, e D. Dinis , que fe 
tinhaô defnaturalizado , e tomado as 
armas contra a Patria. Via-fe a Rainha 
D. Brites cafada com hum Rei eftras 
nho , que levava Portugal a dominio 
alheio com dor intoleravel dos Portus 
guezes , que a contemplavaó filha dé 
huma mãi aborrecida, e que nafcêra 


de hum adultetio. Todas eflas medie- 


tações populares animára6 o efpirita 
intrigante da Rainha para fe encarres 
gar do Governo fem oppofiçad , até 
que os fucceflos correflem o véo aos 
myllerios, que fe occultavaôd no fun- 
do dos animos. 

Quando o Rei D. Fernando fez 
o cafamento de fua filha em Cafu 
tella , a uniað das Coroas foi en- 
taô olhada como hum evento mui- 
to ao longe, e como huma entidade, 
gue parecia quimera, Ágora que O 
acontecimento já fe via de pa 

Cl- 


DE PORTUGAL, LIV. XX. 13g 


elle fe temeo como huma realidade Er vulg. 
exiltente , que perturbava os animos, 
e chamaya pelas defgraças. Dous ef- 
piritos , que erað os primeiros mo- 
veis para agitaçaO das máquinas , que 
nað poderiaô retardar os movimen- 
tos , logo , e fem demora deraõ aflum- 
pto para fer geral a inquietaçaô. O 
primeiro dentro em cafa, que era o 
da Rainha, Íentio menos a morte do 
Rei, que a pofibilidade de perder o go- 
verno do Reino, e cuidou em promover 
toda a fórte de meios, que entendeo pro- 
porcionados ao feu fim. O fegundo ef- 
pirito , que era o Rei de Caftella, 
nað teve paciencia para perder tempo 
fem reprefentar a Portugal , que já 
lhe pertencia o dominio por fua mu- 
lher a Rainha D. Brites, como her- 
deira. | 
No mefmo mez da morte do Rei 
D. Fernando mandou elle a Portugal 
a Affonfo Lopes de Tejada , e ao Ar- 
cediago de Cea pedir a fua acclama- 
çaô , e a da Rainha , que com éffeito 
fe fez em alguns lugares da fronteira; 
mas a Corte , e os Póvos mais prin- 
ci- 


136 HISTORIA GERAL 


Era vulg. cipaes o nað confentiraô ; duros em 


2 
fe fugeitar a huma dominaçaô , que 


fobre a impedirem as Leis fundamen- 
taes do Reino , ella era tað oppofta 
aos fentimentos vulgares da Nacad, 
Os noflos Chroniftas , efpecialmente 
Fernaô Lopes, tratað ao largo o fuc- 
cefo, que em Portugal tiveraõ eftas 
pertenções do Rei de Caftella , que 
informado do que nelle fe paflava, e 
refoluto a nað perder tempo , nem a 
obfervar os Artigos do Tratado ma- 
trimonial , nað tendo ainda fucceflad 
da Rainha, propôz no feu Confelho: : 
Se devia entrar logo por Portugal? 
Se o havia fazer pacifico, ou em tom 
de guerra ? D. Pedro Fernandes de 
Velafco com os Fidalgos maduros , 
circunípe&tos , e fabios difluadirad ao 
Rei. tanto asarmas, como aentrada 
no Reino, em quanto fenað encbiaô 
às condições do contrato de fuccefiad. 
Os lifongeiros, moços, e inexpertos 
o perfuadiraô tudo ao contrario; mas 
o Rei ; fazendo ufo da prudencia á 
vita de ditames tað encontrados, 
fufpendeo por entaô a perene 
E Go 


DE PORTUGAL, LIV. XX. 137 


defejos para dar mais lugar: ás refle- Era vulg. 
xões. | o 

Efta irrefoluçaô interina fe ro- 
deou , e occupou de outras imagina- 
ções, que fomentavað os fuftos de fer 
poffivel ao Rei de Caftella deixar de. 
reinar em Portugal. Elle tinha prefen- 
tes dous objeêtos, que faziad naõ pa- 
recerem temerarios os feus juizos, 
Hum era o Infante D, Joa6, que fa- 
bendo a noticia da morte do Rei feu 
irmaô , podendo a feu falvo recolher- 
fe ao Reino. que anciofamente o de- 
fejava; foi tal a fua indolencia , que 
permaneceo immovel em Caítella pa- 
Ta agora fer prefo , e pofto em fe- 
guro , como tropeço o mais forte R 
que fe entendeo impediria aos prefum- 
ptivos Reis a fobida ao Throno. O 
outro foi o irmaô do Rei D. Affonfo 
de Noronha , Conde de Gijon , que 
eltava cafado com D. Ifabel , filha baf- 
tarda do defunto D. Fernando; pren- 
dendo a ambos, e confifcando-lhes os 
bens, que tinhað em Caftella , para 
que os Portuguezes nað preferifem 
eita filha do feu Rei, e feu marido , 

a 


138 HISTORIA GERAL 


Era wig. a elle, ea fua mulher. As mefmas 
cautelas fe uláradS com o Infante D. 
Diniz ; e forad eftas quatro vitimas 
innocentes as primeiras, que o ciume 
do Rei de Caftella facrificou á injuf- 
tiça da fua ambiçað. 

Como a prifaô dos dous Infantes, 
do Conde de Gijon, e (ua mulher da- 
vaó ao Rei huma efpecie de fegaran- 
ca a reípeito das entreprezas , que 
elle entendia poderiad intentar a feu 
prejuifo : com as imaginações de here 
deiro de feu Sogro D. Fernando, lhe 
mandou fazer honras magnificas na 
Igreja de Toledo, para que a pompa 
defta ceremonia fizefle mais acceita- 
vel a proclamaçaô de Rei de Portu- 
gal , que fe lhe havia fəguir na mef» 
ma Cidade. Para a fazer exercitando 
o cargo de Alferes Mór , nomeou 
elle a Vafco Martins de Mello , que 
tinha ido de Portugal em ferviço da 
Rainha; mas o generofo Fidalgo lhe 
refpondeo : Que elle nað podia accei- 
tar a mercê, que Sua Alteza lhe fa- 
zia , porque era vaflallo , e Guarda 
Mór do Rei de Portugal , que elle 

ain- 


DE PORTUGAL, LIV. XX. 139 


ainda ignorava quem houvefle de fer; Era vulg. 
e no cafo de fe declarar huma guerra 
em Caftella, e Portugal, elle por ca- 
fo algum queria tomar armas contra 
a fua Patria. Difimulou o Rei a ma- 
gnanimidade de Vafco Martins, e en- 
tregou a bandeira Real a Joa6 Furta- 
do de Mendoça , que fendo Caftelha- 
no , naô duvidou acclamar Rei de 
Portugal ao feu Monarca , que devia 
ter propício para a fua fortuna. 

| Entaô fuccedeo o acafo do pé de 
vento , que raígou a bandeira , e fe- 
parou as Armas de Portugal, que ef- 
tavað por baixo das de Caftelia. O 
fuçurro do Povo foi o primeiro inter- 
prete defte prodigio , que períuadia a 
defuniaô dos Reinos na rotura da ine 
fignia. O efpirito da lifonja acodio 
com o remedio , antes que o ruido 
tomafie corpo , e lembrou ao Rei, 
gue aquelle cafo fuccedia: Porque as 
Armas de Portugal erað as chagas de 
Jefu Chrifto que inconfideradamente 
fe poferaô em lugar inferior ás de Caf- 
tella : que fe deviaô collocar com igual- 
dade para a reverencia evitar o deftro= 


GO. 


140 Historia GERAL 


“sa vulg. co, Aflim fe fez para continuar a ac- 


clamaçad , que fe concluio em To- 
ledo , e na Povoa com cortezia do 
vento , que refpeitou na bandeira , 
as Armas poítas no feu lugar devido, 
mais decente. 


Feitas eftas coufas em Caftella 5 


e afluíftado Portugal da revolução, 


que a feu reípeito contemplava naquel- 
la Monarquia: O Meftre de Aviz D. 


Joad fe fervio della para pretextar o 


requerimento , que fez ao feu Rei; 


pedindo o Governo do Reino, até 


que elle tivefle filhos da Rainha D. 
Brites. Efta demanda recufada ao Mel- 
tre feria o pafo mais vantajofo ao 
Rei de Caftella fe elle a concedéra. 
Ella lhe abriria feguro o caminho pa- 
ra a uniaô da noffa Coroa com a fua, 
ninguem lha difputaria , e o Meftre 
feria o fuftentaculo mais firme dos feus 
interefles. Mas como o Dominante 
Supremo dos Imperios tinha formado 
fubre Portugal defignios , que os ho- 
mens entaô nað chegavaô a penfar : 
Elle fez conceber ao Rei de Cafítella 
hum grande temor do Meftre de Aviz, 
por 


DE PorTUGAL, Liv. xx. 141 


por fer dos Portuguezes tað amado , Eta vulg. 
como elle aborrecido: que os Póvos 
vendoo com authoridade, fe lhe in- 
clinarião mais por gofto: que toman- 
do-o á doçura dó Governo , que elle 
faberia temperar , viriaô a fazer os ul- 
timos esforços para o poluir Rei. Ef- 
tas idéas funebres tanto o occupárad » 
que nem podia ouvir fallar na perten- 
cad do Meftre , julgando impoffivel 
eítar com focego na regencia de hum 
Principe Portuguez em Portugal, quan- 
do inteiramente lho perturbavad os 
Infantes fem acçaô em Caftella. 

= O Mefre , efcandalifado della 
repugnancia , Ífoube aproveitar-le da 
definclinaçaO dos Portuguezes ao Rei 
eftranho para fe declarar Chéfe de par- 
tido a favor do focego da Naçaô. El- 
le fe reveítio de todas as exteriorida- 
des de doçura , de agrado, de docili- 
dade, que fabem ganhas corações pa- 
ra os ter favoreis nas conjunturas, 
que fofle difpondo a Providencia. A 
liberalidade das mãos fe fez infepara- 
vel das affabilidades do roíto ;.e inal- 
teravel nọ fyítema de naó dar pafilo, 

~ que 


142 Historia GERAL 


Era vulg. que nað fofle movido pelas deliberas 
ções do Confelho de Eftado , attrahio 
os votos univeríaes da Corte a feu fa- 
vor. Elle, que nað podia confiderar 
indeflerente o negocio da fuccefað , 
bem contemplava , que nað lhe bafta- 
vað fó os expedientes de fe fazer ama- 
do, fem o concurfo da audacia , do 
valor , da dexteridade para fe oppôr 
a quaeíquer defignios , que intentafle 
Caftella, Por outra parte alguns dos 
Fidalgos, efpecialmente D. Nuno Al- 
vares, e feu tio Ruy Pereira , enten- 
diaô, que todos os projectos do Mef- 
tre haviad ter principio na morte, 
que elle devia dar ao efcandalofo Con- 
de de Ourem , objeito do odio do 
Povo, dos agrados da Rainha, da in- 
juria á memoria do Rei D. Fernando. 
Ella ficou ajuftada entre os tres; mas 
o Meftre confiderou depois circun(tan- 
cias, que entendeo o deviað fufpender 
para melhor fe fegurar , e prevenir 
para o futuro mais firmeza. 

Quando o Meftre laborava nefta 
irrefoluçað , o veneravel velho Alva- 
ro Paes, que fora Chanceller Mór dos 

| Reis 


DE PORTUGAL, Liv. XX. 143 | 


Reis D. Pedro, e D. Fernando, e que Era vulg. 
nada quiz fiar de Cartas, e de reca- 
dos : com o pretexto da authoridade 
dos annos , e queixas da velhice, cha- 
mou o Meftre de Aviz a fua cala, e. 
tendo-o prefente lhe difle : Vós, Se- 
phor, nað penetrareis os motivos fór- 
tes, que me obrigárað a chamar-vos 
a efta cafa pelo Conde de Barcellos, 
que já eftá inítruido das minhas inten- 
ões zelofas a voflo reípeito: Eu fer- 
vi com o amor, fidelidade , e candu- 
za, que fabeis ao Rei D. Pedro voflo 
Pai, ea voo irmas D. Fernando : 
Quem póde fentir mais que eu asin- 
jurias , que á fua memoria faz efto 
Joaô Fernandes Andeiro ? E de que 
caracter he a que vós recebeítes del- 
le , quando foítes prefo em Evora, 
e efteve a voíla vida por hum fio? 
Vós penfais.vos feguro em quanto €f- 
te homem viver ? E em Portugal ha 
outra mað , fenað a vofla, que o ti- 
re do mundo para defaggravo da hon- 
ra de voflo irmað , eftabilidade da Mo- 
narquia, e confervaçao da volfa Pef- 
foa ? Morra Joa6 Fernandes Andeiro 
ás 


144 Historia GERAL 


Erávulg. 4s mãos do Mėftre de Aviz na face da 
Rainha D. Leonor : que efte golpe 
façanhofo defcobrirá o amor do Po- 
vo para comvyoíco , quando feita efta 
morte , os voflos criados , e os meus 
publicarem pelas ruas de Lisboa, que 
vós no Paço eftais em grande perigo,. 
fomentado pelo meímo Andeiro , que 
vos aborrece. 

Efe difcurfo nað furprendeo o 
Meflre; mas deixou-o hum pouco pen- 
fativo para confultar o valor á pru- 
dencia ; para fe determinar em hum, 
negocio, que confundia o feu interel- 
fe particular com o commum do Ef- 
tado; para conhecer plenamente, que 
o remedio de tantos males públicos 
unicamente dependia da morte do 
Conde Andeiro ; para difpôr na idéa 
o modo, que fe fizefle plaufivel aos 
moradores de Lisboa ; e depois de 
chamar tudo á prefença prompta do 
fcu efpirito , refpondeo refoluto a Al- 
varo Paes: Eu tomo á minha conta a 
morte do Conde de Ourem. O velho 
ardente , banhado em lagrimas de 
complacencia , fe abraçou com elle , 

roim- 


DE PORTUGAL, LIV. XX. 146 


rompendo nefte tranfporte zelofo: He Era vulg. 
verdade, filho, e Senhor, o que vós 
prometteis fazer ? He verdade ( lhe 
tornou o Meftre ) que o fangue in- 
fame de Andeiro falpicará as mef- 
mas aras fagradas , que profana. En- 
taô o Velho. Paes, foffocado em fo- 
luços, concluio dizendo: Filho, ago- 
ya vejo a differença, que tem os fi- 
lhos dos Reis dos outros homens : E 
lhe deo hum ofculo amorofo. 

Afim fe hiaô difpondo infenf- 
velmente as coulas a favor da fortu- 
na do Meftre de Aviz ; mas a Rai- 
nha era muito politica para deixar de 
temer o grande credito, que elle hia 
adquirindo , e demafiadamente pene- 
trativa para nað prevenir os defignios, 
que elle podia conceber , ou fofle 
para confeguir a Regencia , ou para 
alcançar a Coroa. Ella , combatida 
de tantos movimentos eftranhos , for- 
mou a idéa, de que nada lhe era tað 
conveniente como ter fegura a pef- 
foa do Meftre longe da Corte : mas 
defejando' de o fazer com huma ap- 
parencia de honra, que a ella nað ef- 


Ti OM. V. K îl- 


t46 HisrTọRrIA GERAL 


Em vulg. tivefle mal, e do Meftre foffe bem 
recebida ; o perfuadio , como a fi- 
tuaçaô de tantos negocios a forgavad 
a pedir-lhe fe quizefle encarregar do 
governo da Provincia do Alem-Té- 
jo , que neceflitava de huma pefloa 
refpeitavel aos Póvos perturbados, 
que os contivefle até vêr o femblan- 
te , que tomavaõ as coulas, Ou fof- 
fe que o Meflre entendeo, que nel- 
ta eleiçaô a Rainha fazia delle huma 
grande confiança, ou que por nað ef- 
tar conftante na fé do Povo de Lis- 
boa, duvidava declarar as fuas inten- 
ções, e` cumprir a promefla, que fi- 
géra a Alvaro Paes : Elle acceitou o 
novo cargo , que lhe conferiaó , e 
fe difpôz para a partida. 


CA- 


DE PORTUGAL, LIV. XX. 147 
CAPÍTULO I 

O Mefire de Aviz , nomeado Gover- 

nador do Alem-Tejo , volta do cas 

minho , mata ao Conde de Oure 


Foağ Fernandes Andeiro , e be ac- 
clamado Regente do Reino. 


Era vulg, 


Ni he explicavel a complacen- 
cia, que moftraraô a Rainha, e An» 
deiro da acceitaçad do Meftre, quê 
fe difpunha a marchar pára o Alem- 
Téjo a occupar o governo da Pro- 
vincia. No dia da partida as confcien- 
cias criminofas redobráraô o júbilo; 
mas foi de pouca duraçaô a alegria, 
O Mefre , que pernoutára em San» 
to Antonio do Tojal , na6 pode ter 
focego , atacado de muitas lembrari- 
ças. Elle fe contemplava o refugio da 
Corte, que deixava orfã ; a palavra | 
empenhada a Alvaro Paes, que nað 
cumprira ; o fegredo communicado a 
varias pefloas , que poderiaô revella- 
lo; e elle ficar perdido : Tudo ima- 
gens funebres , que o fizorad deter- 
K ii mi- 


148 Historia GERAL 


Era vulg: minar a retroceder , e fem perda de 
tempo tirar a vida ao Conde. , Para 
cobrir a refoluçaô , mandou a Fer- 
nando Alvares de Almeida feu Védor 
viefle na meíma noite å Cidade, e 
avizafle a Rainha, como elle no dia 
feguinte voltava á fua prefença por en- 
tender neceflario pedir-lhe novos def- 
cachos para fegurança das fronteiras 
da Provincia , fem que nella tivefle 
mais demora. Servio a induftria do 
Meftre para nað fazer fufpeitofa à 
vinda á Rainha, e ao Conde, que o 
efberáraô fem maior fobrefalto , fa- 

ceis, e credulos , como fem remor- 

fos. | | 

A fua chegada na manhã feguin- 

te em companhia de alguns homens 

armados nað deixou de perturbar a 

Rainha , que lhe perguntou o moti- 

vo de retroceder, e a caufa de con- 

duzir gente com armas. A ambas as 
perguntas refpondeo o Meftre com fi- 
mulaçað ajuftada , que a Rainha teve 
por indifferente ; mas ao Conde pa- 
recéo aftectada , e para evitar o que 
temia , mandou ás fuas creaturas 
| | que 


DE PORTUGAL, LIV. XX. 149 


que com prefla foflem a cafa armar- Eta vulg: 
fe, e voltaffem a acodir-lhe no peri- 
go, que receava. Efe defacordo fa- 
“cilitou a occafiaô ao Meftre , que os 
mais Fidalgos foraô deixando para a 
executar , por lhe perceberem a in- 
tençaô. Entretanto os Condes de Bar- 
cellos, e Ourem difputavaô entre fi, 
qual havia dar naquelle dia de jantar 
ao Meftre ; mas elle ordenando ao 
de Barcellos fe retirafle com os mais, 
e o eÍperafie em fua cafa: tomou da 
mağ ao de Ourem, como quem que- 
ria dizer-lhe algum fegredo , e quan- 
do o teve na camara immediata ao 
quarto da Rainha , a hum golpe de 
efpada lhe abrio a cabeça. Acodio Ruy 
ereira; atraveffou-o com hum efto-, 
que , e cahio morto o monftro da 
fortuna, o infeliz Joaô Fernandes An- 
deiro , que pagou com o feu fangue 
derramado por mãos Reaes os crimes, 
com que profanára o fagrado da Ma- 
geftade infolente, e temerario. | 
O Meftre fe retirou immediata- 
mente a huma das varandas do Paço: 
mandou a alguns dos feus criados e 

cef- 


Eq valg. 
| 


ISO Historia GERAL 


ceflem a fechar-lhe as portas : ordes 
nou a outros marchaflem a cavallo , 
clamanda pelas ruas até a cala de Al- 
varo Paes, que acodiflem a feu Amo, 
que o queriaô matar em Palacio. As 
mais pefloas, que nelle eftavaó , ato- 
nitas com o fucceffo nað imaginado, 
cuidiraô em falvar-fe fugindo , duvi- 
dolas do que lhes poderia fobrevir. 
A Rainha gritando a altas vozes, que 
lhe tinha6 matado o criado mais bes 
nemerito, e fiel, fem merecimento 
para golpes taô crueis, e deshumanos, 
mandou perguntar ao Meftre , fe tað 
bem ella tinha de morrer. Elle fe jul- 
tificou, ordenando fe lhe difleffe: Que 
fora indifpenfavel a huma pefloa da 
fua qualidade tomar as armas , nað 
contra huma Rainha; mas a favor do 
Povo para o livrar de hum Miniftro 
odiofo , que lhe tyrannizava a Patria: 
que fe o mefmo Povo tiveffe a auda- 
cia de lhe faltar com o refpeito de- 
vido á fua Mageftade , que elle faria 


-huma gloria bem particular de mora 
rer na fua defenfa. 


Em 


aeee 


DE PORTUGAL, Liv. XX. IgI 


Em quanto no Paço fe paflavaõ Era vulg. 
etas coufas , os criados do Meftre 
atroavað as ruas de Lisboa , pedindo 
foccorro para feu Amo , que eftava 
chegado aus termos de perder a vida, 
pelas fugeftões da Rainha cruel às mãos 
do tyranno Conde de Ourem. Afim 
fe conduzirad até a cala do Velho Al- 
varo Paes, que recobrando efpiritos 
com a boa nova, que elperava, mon- 
tou a cavallo , e fahio fazendo as 
melmas exclamações, voando a auxi- 
liar o Meftre no figurado aperto. Nað 
he crivel a comoçaô , que elta nova 
caufou no Povo de Lisboa , fem dif- 
tinçaô de fexo, ou idade. Todo elle 
correo de tropel ao lugar do imagi- 
nado perigo do feu Principe, que di- 
ziaô fora chamado do caminho do 
Alem-Téjo com engano para o mae 
tarem dentro das paredes do Paço. 
Quando o viraô com as portas fecha- 
das, o furor degenerou em defeípe- 
raçao , fuppondo o Meftre já morto, 
e fe lançou a dar-lhes fogo para elle 
fobir, e abrazar quanto eftivefle den- 
tro. Entaô (e lhe moftrou o Meftre 

| a 


162 Historia GERAL 


Era vulg. a huma janella gritando, que elle ef- 
tava fa6, e falvo ; que o morto era 
o Conde de Ourem ; que fe portaf- 
fem como bons Portuguezes a favor 
da Patria à maneira do feu exemplo. 
Os vivas, que feriað os ares, foi o 
applaufo defa vigorofa acçaô , que 
levou ao Meftre em triunfo entre a 
Nobreza , e o Povo ao Palacio do 
Conde de Barcellos , irmað da Rai- 
nha , que o efperava cheio de alvo- 
roço com outros muitos Fidalgos , 
todos officiofos. - 

— Pofto em feguro o Meftre, con- 
tinuavað os alaridos do Povo , que 
fe faziaô mais horrorofos com os re- 
piques plaufiveis dos finos , em que 
.a Igreja Cathedral nað imitava as ou- 
tras. Entendeo o Povo , que efta 
omiffaô provinha do Bifpo fer Caf- 
telhano , o D. Martinho Scifmatico , 
que já o fora de Sylves , e por efte 
tempo tinha fido criado Cardeal em 
Avinhaô pelo Anti-Papa , abertamen- 
te faccionario da Rainha. Elle , que 
ouvia o delconcerto do eftrondo , e 
ignorava o motivo, até faber a caufa 
‘ -del 


DE PORTUGAL , LIV. XX. 153 


delle , fez fechar as portas do Tem- Era vulg. 
plo ; fobio-fe á torre , e com elle 
Goncalo Vaíques , Prior de Guima- 
sães , e hum Efcrivad de Sylves, que 
era feu hofpede. O Povo, que o co- 
nheceo no alto da torre , traníporta- 
do de furor , porque nað mandava 
repicar os finos em applaufo do Mef- 
tre triunfante, fem mais averiguaçao 
fobio a cima Sylveftre Efteves, Pro- 
curador da Cidade, com mais dous, 
e arrojáraô o Bifpo , o Prior, e o 
Elcrivaô da torre abaixo: Quéda myf- 
teriofa, que permitio Deos para mof- 
trar caítigo ás mãos dos Portuguezes, 
ainda que com indignidade, o unico 
Prelado , que entre elles fuftentou in- 
corrigivel o efcandalofo Scifma. À in- 
fima plebe deípio o cadaver refpeita- 
vel , que levou de raftos pela rua, 
clamando : Juítiça, que manda fazer 
o Papa nofio Senhor nefe Scifmati- 
co Caftelhano por defobediente á San- 
ta Madre Igreja de Roma. | 
Quando ceflárab os movimentos 
populares, o Meftre , acompanhado 

dos Condes de Barcellos , e Arrayo- 

| 08, 


154 Historia GERAL 


Era vulg. Jos, de muitos Grandes, e dos feus 
criados armados, foi na mefma tarde 
ao Paço juftificar-fe com a Rainha do 
infulto comettido na fua prefença, El- 
les a encontráraő na fua Camara co- 
berta de luto, e a percebérad alvoro- 
çar-ľe com efta nað penfada vitita. Sup- 
prio com tudo a corage da Soberenia 
as evidencias covardes da natureza , 
e com os reítos da Mageftade , que 
ainda guardava no fundo do efpirito 4 
ella os recebeo como Rainha. Ao 
Meltre tratou com as diftinções de- 
vidas à (ua qualidade ; aos Grandes 
deo final para fe affentarem , como 
elles tinhaô direito de o fazer. O Mef- 
tre fe lançou aos feus pés , pedindo 
perdaô , nað de matar ao Conde An- 
deiro, mas deo fazer na fua prefen- 
ca. Todos os Fidalgos animáraô com 
inflancias os modos infinuantes , de 
que o Meftre fe fervia para applacar 
a Rainha, ea pôr em fituaçaô de nað 
levar todo o tempo da vilita em fi- 
lencio. 

Em fim, efta Princeza, que flu- 
&uava entre a vehemencia da dor, e 
: € os 


DE PORTUGAL, LIV.XX. 186 


os defejos da vingança , forçada por E's vulg 
tantos rogos, nað pode efcufar-fe de 
dizer ao Meftre : Que o perdaô que 
lhe pedia do attentado , que fora hum 
effeito da fua liberdade , nað admit- 
tia formalidades, que todas erað inu- 
teis nos apertos da occafiaS , que fó 
demandava applicações férias para naô 
divertir os cuidados da fegurança do 
Reino: Que o Rei de Caítella fe fa- 
' gia preítes para entrar em Portugal 
com mað armada, trazendo na frente 
do exercito o Direito indifputavel, 
que lhe déra o calamento com fua fi- 
lha a Infante D. Brites. O Meftre pe- 
netrando , que a induftria fó a elle o 
feria, quiz fer fó o que refpondefle , 
e fem dar intervallo á confideraçaõ , 
que pareceffe temor , lhe voltou prom- 
pto : Senhora, Vofla Alteza deve 
avizar ao Rei de Caftella , que ful- 
penda a fua marcha para Portugal, 
fenað que fe poem no rifco de me en- 
contrar em parte, aonde Eu lha faça 
parar, e o detenha. A Rainha, com 
geíto bem pouco fignificante , esfor- 
çou efta critica : Vós Principe o ba- 
| veis 


` 


186 Historia GERAL 


Era vulg. veis deter , o haveis fazer parar? 
Porque nað obraftes efas gentilezas 


nas occafiões, que fe offerecêrað em 
vida do Rei voflo irmað ? O Venera- 
vel Alvaro Paes, que notou a indif- 
criçad por aflumpto avancado na vi- 
fita , diffe para o Meftre : Senhor, 
faiamos daqui para fóra, que nós fo- 
mos muito pelados, e por groffeiros 
delagradamos á Rainha. Afim o fi- 
zeraô todos , ea deixáraô lutando 
com a faudade , ea cólera, com a 
vehemencia da dor, e defejos da vin- 
gança. 

O Povo fem fugeiçao continuou 
nos defatinos , que faô vulgares nos 
Interregnos ; e traníportado do odio, 
que concebêra contra a infeliz Rai- 
nha , occupava em magotes as ruas, 
e praças públicas , difpofto a pilhar 
as cafas dos faccionarius da mefma 
Rainha, efpecialmente as dos Judeos 
poderofos , que ella amparava. Ap- 
pareceo o Meltre a cavallo , como 
Iris, a applacar eftas turbulencias + 
fervindo-fe do nome da Rainha. O 
Povo lhe proteftava, que eĝa autho- 

ri- 


casa eee — 


DE PORTUGAL, Liv. XX. 157 


yidade nað o abatia : que mandafle Era vulg. 
Sua Alteza em feu nome fe queria fer 
obedecido com todo o coraçaô , to- 
da a alma , todas as forças do Povo 
de Lisboa. O mefmo lhe fuccedeo 
- com o Juiz do crime Antaô Vaíques, 
ao qual ordenando , que em voz da 
Rainha mandafle deitar hum bando 
para pefloa alguma entrar armada no 
Gueto dos Judeos ; elle lhe refpon- 
deo da janella abaixo , aonde o efta- 
va vendo paflar rodeado da Nobreza, 
e Povo: Eu mando lancar ó pregaõ; 
mas em nome de Vofla Alteza que 
he fó a quem conhecemos por Se- 
nhor, e Defenfor. Afim fe fez; eá 
maneira do mar, que amaina de re- 
pente, quando calla o vento , o Po- 
vo fe pôz em focego profundo, quan- 
do ouvio no bando a voz do Meftre, 
a parecia reípeitar já como feu 
ei. 

Efta acclamaçaô ruidofa , o alvo- 
roço de tantos corações , ainda nos 
indifferentes , e definclinados , entrá- 
rað a fazer tað geral a comoçaðő , que 
todos os córpos de Lisboa pareciaô 

ani- 


158 Historia GERAL 


Era vulg. animados de hum mefmo efpirito. Só 


a Rainha fem acordo pela depreflad 
da fua authoridade , cada clamor fa- 
voravel ao Meftre era hum eítimulo, 


que lhe picava os defejos da vingan-. 


“ca. Os diderios públicos , e livres 


das mulheres tanto lhe feriað a alma, 


que dizia fenað dava por fatisfeita em 
quanto nað enchefle faccos das fuas 
linguas. Por outra parte a fua politi- 
ca áflectava , que nada eftimaria Co- 
mo a paz; eporque a fua pefloa era 
a origem da difcordia, animou a in- 
duftria com fe retirar para Álemquer, 
como quem arrancava da face dos fe- 
diciofos a caufa dos tumultos. Ainda 
que ella foi acompanhada por feu ir- 
" mað o Conde de Barcellos, e de ou- 
tros Fidalgos de grande caracter, nað 
fe teve por fegura em Alemquer das 
tentativas audaciofas do Povo de Lis- 
boa , e negociou com Gonçalo Vaf- 
ques de Azevedo , Alcaide Mór de 
Santarem, fer admittida naquella Vil 
la. Afim foraô principiando os gran- 
des trabalhos da prodigiofa mulher D. 
Leonor Tellks de Menezes, que che- 
gou 


ee eita e T, 


mma ama o o a rio rm ct 


DE PORTUGAL, LIV. XX. Ts 


gou a fer Rainha de Portugal ; ago- Era vulg. 
ra hum objedo latimofo da fórte. 

A retirada furtiva defta Senhora 
para Alemquer nað podia deixar de 
perturbar o efpirito do Mere , que 
fe perfuadio traçava ella a fua ruina 
por meio de alguns parciaes, que oc- 
cultos em Lisboa attentariað contra 
a fua vida. Para elle fe fegurar na fi- 
delidade dos que o feguiað, e defar- 
mar o partido , que lhe poderia fer 
contrario , entendeo a fua magnani- 
midade, que devia próvar as idéas ar- 
dilofas. A primeira foi efpalhar a voz, . 
de que o retiro da Rainha para Alem- 
quer fe terminava a perdello ; e que 
elle para lhe fugir á indignaçaS , fe 
retirava para Inglaterra. Para melhor 
cobrir a fimulaçaó , mandou embar- 
car as fuas equipagens. Nefte lance 
foi mortal a dor do Povo , que fem 
concerto o hia bufcar ao feu Palacio, 
e encontrando-o na rua feria o Ceo 
com clamores, os feus ouvidos com 
rogos , forçando-o a refponder-lhe. O 
Meftre , que via o effeito defejado 
dos leus intentos , aflegurou ao Po- 

| vo, 


160 Hisroria GERAL 


Era vulg. vo, que focegafle; que elle lhe em- 
| penhava a palavra de nað fahir do Rei- 
no , e defendello contra quaeíquer 
ufurpadores da fua liberdade até dar 

a vida. | 
Quando o Meftre afim fazia hum | 
partido de corações officiofos , o da 
Rainha nað reípirava mais que vin- 
/ gana. Ella fe traníportou de gofto 
com a noticia da retirada do Meftre 
para Inglaterra ; e refoluta a abyí- 
mallo., ganhou o Capitað do navio 
para faltar com a tripulaçaô em al- 
guma praia , e deixar o valo á def- 
“criçaô das ondas; mandando ao mef- 
mo tempo poítar com cautela gentes 
da fua facçaôd pela cófta , para que 
varando a não , mataffem o Meftre, 
e os feus criados. Eftas difpofições da 
Rainha naíciaô da ignorancia dos ex- 
tremos paticados em Lisboa pelo Po- 
vo , a que deo a ultima mað o no- 
bre particular Alvaro Vaíques , que 
bufcou o Meftre, e em nome da Na- 
çaô fe refolveo a fallar-lhe afim: Que 
injuítiça he elta , que quereis praticar 
fobre nós ? Abandonar hum Reino, 


que 


DE PORTUGAL , Liv. XX. 161 


que vos reconhece, e vos eftima por Eta vulg: 
feu Protector? Que vos obriga a efta 
temeridade ? O furor de huwa mus 
lher? Que mais póde ella fazer, que 
ameaçar ? E ameaças de huma mað 
fragil ha de caufar temor ao voflo 
peito viril, rodeado de hum Povo fiel, 
que eípera em pouco tempo ver-vos 
“reinar ? Eles faô os fentimentos de 
todos- os bons Portuguezes. Os vol- 
{os em nada devem. fer deflemelhan- 
tes. ' 
O Mefre de Aviz acaba de fe 
confirmar no affecto. de que he deve- 
dor ao Povo; mas com o defejo de 
entreter a, Rainha , que na repugnan- 
cia ao perdað da morte de Andeiro , 
moftrava , que a dor , e a vingança 
lhe faziað aborrecidos os Portugue- 
zes, e o Meftre : Elle com huma 
traça nova intenta oppôr á paixaô do 
odio a contrária da ternura. Declara- 
fe o Meftre amante da: Rainha, e 
com todo o fegredo lhe manda fallar 
a Alemguer em cafamento, que con- 
feguido lhe fegura o Throno , e re- 
pugnando-lhe juftiica as acções. A 
TOM. V. ` L Rai- 


162 HISTORIA GERAL 


Era vulg. Rainha, que ou percebeo a idéa, ou 
naô pode vencer o rancor para dar o 
Jado ao matador do feu valido , ref- 
pondeo á propofta com termos ultra- 
jantes , que o capitulárad por huma 
temeridade , por huma affronta da fua 
foberania ; como fe o filho baftardo 
do Rei D. Pedro , nað fofle marido 
Competente para a mulher, que a qua- 
lidade particular fez efpofa de Joað 
Lourenço , e a inclinaçaô.do amor 
frenetico elevou ao Throno de D. Fer- 
nando. | o l 

Conheceo o Povo de Lisboa, 
que a Rainha. nað fe occupava de mais 
penfamentos , que os de efcogitar os 
meios para tirar a vida ao Mefife, 
unica eíperança da Pátria afflicta ; e 
fem mais demora todos os fieis Por- 
tuguezes á força de rogos, lagrimas, 
e períualões na Igreja de S. Domin» 
gos confeguiraô , que elle confentifle 
fer acclamado Regente , e Defenfor 
do Reino, até que o Rei de Caftella 

* tivefle filhos da Rainha D. Brites. Os 
partidarios da Rainha, os que duvi- 
dáraô , que o Meftre podefle confers 

= ~x Vo Vãl= 


DE PORTUGAL , Liv. XX. 163 


var-fe na Regencia, abandonáraô Lis. Eta vulg.. - 
boa. Naô fe perturbou o feu efpirito; 
antes, como fe eftivefle vendo a glo- 
ria dos fucceflos futuros , com toda 
a tranguillidade formou o Confelho 
das pefloas mais habeis da Corte, en- 
tre ellas os feus fieis fervidores Joaô 
das Regras , e o memoravel Alvaro 
Paes, refufcitado à occupaçaôd do feu 
antigo cargo. Entaô lhe dife efte He. 
róe magnanimo : Senhor, fazei ami- 
gos, dando o que naó he voo, pro- 
mettendo o que na6 tendes : Quiz 
dizer nito o Aulico experimentado ao 
Meftre D. Joaô , que conffcafle os 
bens dos traidores , e os défle aos 
ficis , e que promettefle para o futuc 
ro os da Coroa , que ainda nað pof- 
fuia, e poderiaô fer feus. ; 
Todos eites fucceffos , que ficað 
referidos , e fuccedêrad immediatos å 
morte do Rei D. Fernando , efpecial- 
mente efta proclamàgað de D. Joaõ, 
Meftre de Aviz , para Regente : elles 
fizera6 no Reino huma comoçaó ge- 
ral , que punha attentos os animos 
para olharem~os interefles da Patria 3 
py L ii e ` 


164 Historia GERAL 


Eri wig. e entrando por Caftelia o feu eftroni 


N 


do., Fompeo os ferros da prifað , que 
detinha ao Infante D. [oa , Succel- 
for verdadeiro de Portugal , como fi- 


“da R ainha D. Ignez de Caftro, que 
fe Nfongeou dos feus éccos. Elle ef- 
Weve ao Meftre feu irmas com as 
palavras mais expreflivas do gofo, 
ue the caufava a fua eleição para Re- 
gente > de que lhe dava os parabens : 
que ficava certo , de que elle nað 


erdoartia à meio algum , que podefe 


Y ontribuir para a confervaçaõ do Rei- 
opta que muito lhe recommendava por 
auro amor da Patria, quando elle fe 
via góra de toda a efperança de a 
poder gozar » € Oferecer o fangue 
P feu obfequio. À Rainha D. Leo- 
mor » Mt agora animo(a , com efta 
a enfada refoluçað do Eftado, te- 
eo a fua afitencia em Alemquer, e 
gratou com o Alcaide Mór de Santa- 
gem ? negociaçað de fer admittida 
sefta Villa, que fe lhe fazia fufpeito- 
fa pela repugnancia , que teve em re- 
q onhece Rainha a lua filha D, Britese 


- 


DE PORTUGAL, Liv. XX. 16s 


Ella confeéguio efte intento, como eu Era vulg 


já. diffe , e em Santarem a deixaremos 
traçando as novas máquinas para a fua 
confervaçaôd , que forad as meímas da 
fua ruina, para nos entretermos com 
o. que fe paflava em Caítella , e como 
Portugal fe difpunha para lhe rebater 
os projectos , que ella pelas configu- 
rações concebia faceis, 


CAPITULO IH. 


O Res D. Joad I. de Caftella entra em 
Portugal ; o que lhe fuccede nefa 
âuva/ad, I red com a 

inba. 


É movimentos, e tað confi- 
deraveis em Portugal , ainda nað fa. 
ziað alterar a indiffgrença do Rei D, 
Joaô , que vacillava fe devia, ou nað 
entrar pelas noflas terras com armas. 
Achava-fe entad em Caftella o per- 
fido Bifpo da Guarda D. Affonfo Cor- 
Tea , que mais arraftado dos interef- 
fes proprios , que advertido ao amor 
da liberdade da Patria, aconfelhau ao 
Rei 


1 


166 Historia GERAL 


Eca vulg. Rei marchafle com elle a Capital do 


feu Bifpado , que elle lhe aflegurava 
na fua devoçaô; que fendo ella huma 
das Praças mais importantes , as das 
Provincias vinhas feguiriad o feu 
exemplo; e que com elle hiria avan- 
cando a fujeiçgað do refto do Reino , 
que reconhecia o direito da Rainha 
fua efpofa. Foi abraçado efte pare- 
cer; entrou o Rei com trinta criados 
na Cidade da Guarda ; pouco depois 
vierad para ella desfilando trópas; mas 
o Alcaide Mór Gil Cabral eftava no 
Caftello vendo eftas manobras immo- 
vel, como fenað fof: hum Rei, e tað 
poderofo , quem lhe entrára na Praça. 
Vafco Martins de Mello , o fiel Portu- 
guez que nað quiz acceitar em Toledo 
a bandeira Real , tambem veio å Guar- 
da no ferviço da Rainha , que ainda 
nað era tempo de abandonar pelos in- 
tereffes da Patria. 

"Com grande defprazer defte fi- 
lho chegou feu Pai Martim Affonfo 
de Mello, e outros Fidalgos dos lu- 
gares vifinhos beijar a mað aos Reis, 
€ reçonhecellos como taes , ainda que 

pro- 


m mme amaia a a mae 


DE PORTUGAL, LIV. XX. 167 


proteftáraS o fazia , cheias que fof- Era vulg. : 
fem as condições do cafamento. O 
Rei, que fe eftimulava da pouca at- 
tençaô do Alcaide Cabral , fervio-fe 
de Martim Aflonfo para o perfuadir, 
que debaixo do feguro da palavra Real 
viefle á fua prefença. Nað duvidou fa- 
zello o Alcaide Mór ; mas o Rei vio 
diante de fi huma montanha : de conf- 
tancia , em quem as promefias , € 
ameaças fizeraô a melma impreflad, 
que podiaô caufar em huma penha, 
Valco Martins, que tanto eftranhára 
a acça6 do Pai, como applaudira ef- 
ta do Cabral , lhe mandou dizer aq 
Caftello por feu filho Martim Af- 
fonfo : Que entendia naô lhe poria 
el Rei cerco ; mas que fe o fizefle, 
élie, feus filhos , e criados no mef- 
mo inítante o hiaô ajudar a defendere 
fe até dar as vidas para fultentarem à 
liberdade. 

A ete meímo tempo fuccedeo 
a mudanca da Rainha D. Leonor de 
Alemquer para Santarem : e como 
no (eu efpirito ardente crefciad os de- 
fejos de vingança ao pafo , que a 

| au- 


168 HISTORIA GERAL 


Ers vulg. authoridade do Regente fe avançava $ 
ella efcreveo aos Reis de Caftella , 
para que da Guarda vieflem a Santas 
rem: que fó na prefença poderia de- 
faftogar os eftimulos da fua dor: que 
os exceflos do Meftre de Aviz, e do 
Povo de Lisboa pedia hum prom- 
pto remedio : que os aggravos feitos 
á fua Real pefloa excediað todas as 
medidas : que a fua depofiçaô da Re- 
gencia até elles terem geraçaô , a de- 
viað olhar como hum attentado para 
caftigarem a foberba dos que afim 
fe conduzfrað com huma Rainha, que 
era fua Mäi. | 

Já obravo D. Nuno Alvares Pe- 
reira com outros filhos da fua fideli- 
dade, e valor , havia vindo de San- 
tarem offerecer-fe no ferviço do Mef- 
tre Regente , ainda que com o def- 
goífto de nað poder reduzir feu ir- 
mað o Prior D. Pedro Alvares, que 
fe retirou para o Crato , donde paf- 
fou ao ferviço de Caítella. Foi indi- 
zivel o alvoroço do Regente com a 
chegada de D. Nuno , dous corações 
taô fympaticamente unidos, nr re- 

E | fuf- 


DE PORTUGAL, Liv. XX. 169 


fufeitárad as idades de David e Jo- Era vulg. 
nathas , de Pilades e Oreftes , em 
nada deffemelhantes D. Joad , e D. 
Nuno. Quiz o Regente celebrar a 
vinda do feu amigo com a tomada: 
do Caftello de Lisboa, que tinha em 
nome do Conde de Barcellos o feu 
Tenente Martim Affonfo Valente y 
que o Conde mandou reforçar de Alem- 
guer por Affonfo Annes Nogueira feu 
eicudeiro. Naôd pareceo juo a D, 
Nuno tingir com o fangue da Patria 
a primeira acçaô do novo Principe, 
e confeguio por meio da-perfuafað 
a entrega do Caftello, que foi imita- 
da pelo de Almada , e eftes os ulti- 
ei fucceflos do memoravel anno de 
1383. 

| Como no fim delle havia o Rei 1384 
de Caftella chegado á Cidade da Guar- 
da, e a Rainha D. Leonor mudado 
a fua refidencia, e convidando-o pa- 
ra vir a Santarem .:. entráraô a divi- 
dir-fe os fentimentos na face do pe» 
rigo , que fe temia, A nobreza do 
Reino olhava o proje&o do Regente 
como huma temeridade , que fe ar» 

i TO= 


170 Historia GERAL 


Era vulg. rojava à perder a Patria na reúiftenéia 
a hum Rei tað poderofo. Os Povos 
nað foportavad a confideraçaô , de que 
Portugal houvefle de fe fugeitar a Caf- 
tella. Tanto vacillava o corpo dos No- 
bres , que fabendo Iria Gonçalves 
do Carvalhal , que feu filho D. Nu- 
no Alveres Pereira tomára o partido 
do Regente, veio do Alem-Téjo a 
Lisboa a difluadillo defla inconfidera- 
çaô; mas encontrou o Herde taó fir- 
me , que nað íó lhe approvou a re- 
foluçaô , fenað que ordenou. a Fer- 
nað Pereira feguiffè em tudo os pal» 
fos de feu irmaô D. Nuno, 

Pelo contrario os Póvos , que 
tocados do exemplo do de Lisboa, 
alvoroçados com o rendimento do feu 
Caftello , e entrega do de Almada , 
motejavað a Nobreza de covarde , de 
pouco amante da Patria, e davad to- 
das as demonítrações de acclamar o 
Regente com voz unanime. A Rai- 
nha, que o receava , e temeo , que 
á imitaçaô de Lisboa , e Almada, 
os Alcaides Móres das outras Pracas 
fizefem o mefmo ; efcreveo a todos 

re- 


DE PORTUGAL, LIV. XX.  IYI 


reprefentando-lhes o empenho do Mef- Era vulg. 
tre como huma loucura , e a fideli- 
dade, que elles haviaõ jurado á Rai- 
nha de Caftella fua filha. Ao meímo 
tempo foraô apparecendo pelas Pro- 
vincias as primeiras Cartas do Regen- 
te com expreísões contrarias , que 
como todas refpiravsó zelo , fé, ar- 
dor de liberdade : Elle foi mais feliz 
nos feus intentos, que a Rainha. As 
Cidades de Evora, Béja, Porto, e a 
maior parte dos Governadores das ou- 
tras Praças do Reino nað reculárad 
entrar no feu partido , fe menos fe- 
guro , mais honrado. Aquelles que 
afim o nað fizeraô , pagáraô a fua 
rebelliad , e refiftencia a duro preço, 
já na altura das vozes defcompoftas, 
já na mað baixa , que nelles defcar- 
regava o Povo, como fobre homens 
faccionarios, e traidores. É 
A entrada intempeftiva do Rei de 
Caftella em Portugal com contraven- 
çaS manifefta do ultimo Tratado, foi 
O lance mais feliz para os interefles 
do Regente pela declaraçaô da maior 
parte das Praças ,-e dos ice 20 
eu 


172 Hisroria GERAL 


Era vulg. feu partido. Elle, que fe confiderava: 
já em eftado de poder refiftir, cuidou 
em formar exercito , e mandou pedir 
a Ricardo IĮ. Rei de Inglaterra armas, 
e licença para a gente , que a feu 
foldo o quizefle vir fervir a Portugal. 
O Povo de Lisboa, que era a fonte 
donde corriaô as idéas da liberdade :. 
que confiderava a apertada fituaçao , 
em que os negocios fe achavaô: que 
via os thefouros reaes efgatados pe- 
las prodigalidades do Rei D. Fernan- 
do: por hum aéto voluntario do feu 
amor para com a Patria , os Pa 
levavaõS as baixellas da fua Cafa , a 
Damas as joias preciofas do feu ora 
nato , e juntos os corações aa cabe- 
dal, tudo pozéraô aos pés do Regen- 
te para defpender nos gaftos da guer- 
ra eminente. Semelhante oblaçaô fez 
o Clero da prata das Igrejas , que . 
deixou efpoliadas para fervirem o Ef- 
tado. 

Com dor entranhavel dos efpiri- 
tos foi vito mover-fe.o Rei de Cal- 
tella da Guarda para Santarem, cha- 
mado pela Rainha D. Leonor , que 

abra- ` 


DE PORTUGAL, LIV. XX, 173 


abrazada no odio do Regente, arden- Eta vulge 
do pela vingança da morte do Con- 
de de Ourem , nada mais lhe fazia 
efpecie no cotejo com eftes objectos. 
Chegou elle a Coimbra; mas teve de 
lhe refpeitar as paredes , e paflar de 
largo 5; porque D. Gonçalo Telles , 
irmað da Rainha D. Leonor, que era 
feu Alcaide Mór , fez-fe defentendi- 
do á paflagem defles honrados hofpe- 
des pelo feu deftricto. Juftamente en- 
tendia os Reis, que efta Praça fe- 
ria a primeira , que com tal Com- 
mandante lhe abrifle as portas ; mas 
D. Gonçalo , efquecendo as razões, 
que tinha com as duas Rainhas, fó 
lembrado de-que era Portuguez com. 
honra, preferio os interefles públicos, 
que defendia o Regente , aos movi- 
mentos do fangue , que o unira aos 
Reis em particular alliança. O meímo 
lhes fuccedeo em Thomar com o Mef- 
tre da Ordem de Chrifto D. Lopo Dias 
de Soula , filho da infeliz D. Maria , 
irmã da Rainha, que fem os querer 
ver, fe retirou para o Pombal, e pou- 
co depois feguio a yoz do epen 


- Era vulg. 


174 Historia GERAL 
A chegada dos Reis a Santarem, 


| e o modo por que haviað fer recebi- 


dos , deo nað pouco que penfar á 
Rainha, ambiciofa pelo governo, ar- 
dendo pela vingança. Nem fahir, 
nem dar entrada no Caítello aos Reis 
ella queria : Modo bem eftranho de 
receber os filhos pela fua mefma pef- 
foa convidados. Como fuftentar am- 
bas as imaginações parecia huma qui- 
mera , determinou a fua politica ef- 
colher hum meio, que foi o de lhes 
fallar na ponte levadiça da fortifica- 
çaô. Se ella até entaô Ífuftentou o pro- 
prio fentimente contra os rógos fub- 
miflos dos mais condelcendentes ás 
fuas refoluções ; agora naô pode re- 
fftir as infinuações dos Reis , que a 
leváraô comigo do Caítello para o 
Convento de S. Domingos. Os agra- 
dos , e civilidades parece que defter- 
ravaô da Rainha todos os receios; 
mas delles veio a originar-fe a fua rui- 
na. Entaô defarou ella os diques do 
furor para correr a innundaçaô de im- 
properios , que a cólera lhe infpira- 
va contra o Regente , de quem ng 

åa 


e rr Om |e a 


DE PORTUGAL, LIV. XX. 176 


Java, como de hum ufurpador indi- Era vulg. 
gno, que depois de lhe arrancar dos 
olhos o Valído, tinha a confiança de 
lhe difputar a Regencia. 

Efte mefmo tom diflonante fer- 
vio ao Rei de Caftella para fe arro- 
gar o governo , que elle perfuadio á 
Rainha o habilitava para mais facil- 
mente confeguir a vingança , que el- 
la tanto promovia. Eis-aqui o primei- 
ro paflo , de que fe fervio a Provi- 
dencia para auxiliar a nofla liberda- 
de ; para confundir as idéas de Caf- 
tella ; para voltar a fetta contra a 
mað, que a deípedia. Quem enten- 
deria, que à primeira propofta a Rai- 
nha havia convir no mefmo , que re- 
ceava ? Mas ella entendeo , que ce- 
dia de hum direito imaginario , è 
por aéto livre, com todas as forma- 
lidades , fez demiffað da Regencia pa- 
ra lhe pezar , quando já nað podia 
fer fructuolo o arrependimento , nem 
revogar a refoluçaõ, 

Vierað trópas de Caftella , que 
fe chegavað a Santarem a tempo , que 
o feu Rei eftava já reveftido ” to 

os 


176 Historia GERAL 


Era volg. dos os titulos neceffarios para avm: 


çar as fuas pretenções fobre Portu- 
al. Fora muitos os Fidalgos, e as 

sd » que entaô lhe deraô home- 
nage ; mas de pouca duraçaô pelo 
abandono , que depois fizerad defte 
partido o maior número de humas, 
e dos outros para tomarem o do Re- 
gente. Santarem mefmo , que tinha 
dentro em fi aos Reis de Caftella , 
mandou offerecer-lhe a fua entregas 
que elle entaô naô teve por conve- 
niente acceitar : muitos Fidalgos na 
fua face , varios Miniftros, e todos 
os efcudeiros do Governador. Gonça- 
lo Vaígues de Azevedo vierad para 
Lisboa fervir a Patria. O Principe 
Regente , feníivel a eftes reconheci- 
mentos, e attento ás novidades fuc- 
cedidas em Santarem , applica todos 
os cuidados á guerra , que difpoem 
com acções pequenas para fervirem de 
enfaio ás façanhofas, D. Nuno Alva- 
res Pereira na téfta de algumas tró- 
pas marchava fobre as Praças rebel- 
des a forrajar os feus terrenos , tO- 
mar as armas aos que encontrava, € 
im- 


DE PORTUGAL, LIV. XX. 177 


impedir-lhes a provifaô dos mantimen- Era vulg 
tos. E a l ' | 
Já a harmonia dos Reis em Santa- 
rem principiava a defconcertar-fe, nað 
fendo toleravel ao genio grave, mo- 
deto , e malancolico de D. Joad o 
jovial , alegre , e defembaraçado da 
Rainha fua Sogra. Accrefceo , què 
eíte efpirito coftumado a mandar, 
pedio , e nað alcançou do Rei certos 
deípachos , que queria em Caítella 
para varias pefloas da fua devoçaõ. 
Tað grande foi o feu defprazer nef- 
te repudio , que elle lhe infpirou o 
arrependimento mais vivo de quanto 
obrára a favor dos interefles de feu 
genro; À vehemencia da paixaô a ar- 
raíftou a períuadir aos Fidalgos , que 
até entaô a acompanhárad, que fe fof- 
fem para Lisboa offerecer ao Regen- 
te, porque do ferviço do Rei de Caf- 
tella , nada tinhaô, que efperar. Di- 
zem, que aos Chefes das Praças man- 
dára ordens femelhantes , com aflom- 
bro de huma mudança tað repentina 
em hum cafo tað eftranho. Ellas eraó 
concebidas em termos tað precifos, 


TOM. /V. M que 


178 Historia GERAL 


Ec vulg.: que continhaô as claufglas expreflas de 


fuftentar-fe fieis a Regente, ainda que 
ella fofle em pefloa perfuadir-lhes o 
contrario. 

uando a Rainha fe conduzia , 
o Rei de Caftella a inftava , para que 


efcrevefle a feu irmað D. Gonçalo 


Telles, Conde de Neiva , e a feu 


tio Gonçallo Mendes de Vafconcellos ,; 


que governavaô Coimbra, per(uadin- 
do-os lhe entregaflem a Cidade. Os 
Chéfes aftutos , que queriad dar 4 
Patria hum teftemunho fiel do feu ze- 
lo, refpondêraS á Rainha, que indo: 
ella juntamente com os Reis a Coim-. 
bra , nað faltariad ao cumprimento 
do feu dever , fe os bravos cavallei- 
ros , que eftavað na Praça , o nad 
impediffem. Eftas boas efperanças fi-. 
zerað ao Rei diffimulavel a trifteza, 
que lhe caufava a facilidade com que 
homens , e Praças , que lhe tinha6 
feito homenage , voltavaõ cafaca , e 
huns veftiað a farda do Regente, ou~ 
tras arvoravad nos muros os feus Ef- 
tandartes. Elle partio com as Rainhas 
na volta de Coimbra , que nec š 
od a o dhe 


/ 


e e e mm o rt a a a a 


DE PORTUGAL; Liv. XX. 179 


lhe feguraria a melhor parte das Pro- Erè valg. 
vincias do Nórte; mas já tað deígo(. 

tado da fogra , que temendo lhe fu- 

gifle, naô fez efpecie de lhe pôr fen- 
tinellas das fuas trópas , como quem 

a fazia guardar á vifta. 

Com violencia fumma houve de 
foffrer efta affronta o: genio fenhoril 
coftumado a nað ter fuperior. Em fim, 
entrou a Corte, e as armas de Caf- 
tella nos arrabaldes de Coimbra , que 
eíperavaô encontrar em alvoroço com 
as portas do feu Caítello patentes. Na- 
da mais fe via nelle , que os muros 
bordados de trópas , que faziaô fcin- 
tilar as armas, fem fe deixarem vêr os 
Commandantes. Foi notificado o Con-. 
de para a entrega. Elle refpondeo , 
que nunca fizéra tençað de render 
aquella Praça, fenað a quem fofle feu 
Senhor legitimo. Inftáraô-no pela pa- 
Javra, que fe continha na Carta rece- 
bida em Santarem. Elle tornou, que 
era aquella mefma , e que a tiveflem 
pela decifiva a quantas propoítas lhe 
quizeflem fazer da natureza das. duas 
primeiras. Affedtou a Rainha huma cá- 

M ii le- 


180 Hisroria GERAL 


Era vulg. Jera toda fogo contra' o irmaô , e tio; 
e tratou aviftar-fe com elles , diífpofta- 
primeiro a fegurança das pefloas , para 
confeguir com a prefença o que fe 
defprezava por avifos. 

Em tom de Mageftade a Rainha, 
fallou ao Governador de Coimbra, 
nað ao Conde de Neiva feu irmað. 
Mandou como Soberana , ordenou Se- 
nhora entregafie Coimbra a feu dono, 
que erað os Reis de Caítella feus fi- 
lhos. Ameaçou viril a obítinaçaõ á 
“obfervancia das fuas ordens , fe elle 
differifle abrir as portas da Praça. Lem- 
brou , que o exemplo de hum homem 
da fua qualidade communicaria os mef- 
mos fentimentos a todos os outros 
para promoverem a rebeldia, gue nel- 
les fe redobrava pelo caradter da in- 
gratidaô , de que a reveítia. O Con- 
de com o mefmo ar tranquillo com 
que ouvio os arreítos fogo(os , refpon- 
deo pacato. Que elle naő podia temer 
ameaças , fazer cafo de refentimentos, 
nem efperar mercês dos Reis de Caf- 
tella, quando a fua honra lhe impedia 
tudo : que a primeira obrigaçaô de 
= m hum 


DE PORTUGAL , Liv. xx.  18t 


hum Chéfe era a fidelidade : que a fua' Erd vulg’: 
havia acompanhar o eftado dos nego- 

cios do Reino; e que ella nað fe cand 

gafle mais em perfuadillo , porque co 

mo a Rainha naô podia, como a ir- 

mã naô queria obedecer-lhe. 

Nunca reípoíta: tad brúfca foi 
tað bem acceita como efta. da Rainha, 
por fer a meíma que defejava. Ella 
era bem conforme ás: ordens antes 
mandadas aos Governadores; mas du- 
ra de foffrer ão Rei de Caítella, que 
fobre lhe derrotar a efperança de pbí- 
fuir. Coimbra :, lhe moftrava a quali- 
dade de homens , que guardavaô huma 
fé , e-uniad inviolaveisá Pefloa ‘e 
interefles do Principe Regente. Ainda 
o Rei de Caítella nað penetrava a fun- 
do o efpirito intrigante da` mulher , 
que tinha em feu poder. A Hiftoria 
nos fornece agora hum dos acontecir 
mentos. mais conformes: å fua politi 
ca, e dos mais eftranhos ‘a: qualquer 
outra. Como efta Senhora :, quando 
entendia , que os cafos o 'neceflita- 
vað , eftimava por brilhante a negra 
perfidia ; em Coimbra ella aa 

EE 


182 Histokia GERAL | 


Ers vulg. huma ; que em nada céde a outras ; 


que jáhaviaô fido executadas, ou pe- 
las føas ordens, oupelo feu -confes 
lho , tudo effeitos da fua condiçaõ in- 
contante.  ! 


a: CAPITULO IV. 


Intenta a Rainba D. Leonor dar nior- 
“te ao Rei ide Caflella. Defcobre- 
` feá conjuraçao. Succefos de- 

„~ pois della. 


À RAINHA D. Leonor , tað: facil 
em amar, como em aborrecer , has 
yia concebido tal odio ao Rei de Caf- 
tela , gue ficava a perder. de vifta o 
grande , de. que © Meftre de Aviz lhe 
gra devedor. - Como os defpiques na 
fua imaginaçãd haviaô tocar os mel- 
mos extrerios:das fuas paixões, já ele 


da nað tíaçava outro menor ,. que a 


morte violenta do mefmo Rei.- O feu 
efpirito de orgulho , que para eftes 
lances tinha: expedientes promptos , 
waleo-le de D, Brites de Caftro , ir- 
mā do Conde. de Arrayolos, que Fo 
Fan a 


mer a e o tt am 


DE PorRTUGAL; Liv. xx. 183 


Ja havia criado, e mandado para Caf- Eta vulg.: 

tella com o emprego de Dama da Rai- 

nha D. Brites. Galanteava efta Se- 

nhora. como futuro: noivo a D. Affon= 

fo Henriques , irmao do Conde de 

Traftamara D. Pedro , que ambos 

com outro feu irmaô baftardo tam: 

bem chamado D. Affonfo, eftavaõ no. 

campo de Coimbra. Era grande O cara- 

Cter deítes Senhores , porque erað pri- 

mos do Rei D. Joaô , filhos de feu 

tio o Infante D. Fradique, Meftre de 
Sant-lago. o 

| Terna , .chorofa , afflidta encare- 

ceo a Rainha a D. Brites o cativeiro 

penoífo , em que a tinha o Rei de 

Caftella “depois de lhe: dever tantos be- 

neficios :: que :delejava efcapar-le das 

fuas mãos ,:e recólher-fe á Cidade, 

aonde comi o-favar .de feu irmaôd o 

Conde de Neiva, e-dos mais. paren- 

tes, que. lhe acodiriaô, poderia reens 

trar nas acções da fua liberdade : que 

o reconhecimento: da criaçaô , que 

lhestinha dado , devia eftimulalla à 

empenhar os tres de Traltamara, quê 

{íó entendia capazes da acgað cdi 
Ee e 


184 Historia GERAL | 


Era vulg. de refgatar huma Rainha prifioneira é 
| que D. Affonfo Henriques , como. 


amante , nada- lhe negaria do que el- 
la lhe infinuafle : que efte facilmente 
attrahiria feu irmað o Conde, brinda- 
do com a mað della Rainha , fe o 
Rei de Cafítella morrefle , e que ella 
podia fazer Rei de Portugal : que co- 
mo todo o empenho dos Portugue- 
zes era impedir a unia das coroas , 
ceflaria o do Meftre de Aviz, e nin- 
guem faltaria em acclamar o Conde: 
de Traftamara , quando o vifem ma- 
rido da Rainha D. Leonor. 

A Dama maviofa fe deixou to- 
car deítas expreísões feníiveis , e mui- 
to mais o eípirito duro do de Traf- 
tamara , que com a vifta fubtil em- 
pregada no feintillar da Coroa, con- 
fentio em tudo, quanto lhe foi pro- 
poífto , com: a' vaidade de fer elle o 
efcolhido para huma tal empreza. Paf- 
fáraô-fe avifos frequentes ao Conde 
de Neiva do que fe tratava: para. eftar 
preítes a receber a Rainha , :e:os 
Parricidas dentro da Cidade. A me- 


lhor parte deítes fegredos fe confia- 


vaõ 


—— te SR E e toa 


DE PorTUGAL, Liv. xx. 186 


vað de hum Frade Francilcano, que Era vulg. 
era o menfageiro dos recados , ami- 
go intimo do Judeo David, que por. 
muito favorecido do Rei , e abomi- 
navel à Rainha, naó quiz, que pe- 
recefle na revolta , e o avifou fe re- 
colhefle na Cidade. O Judeo , fiel ao 
feu bemfeitor, fez avifo ao Rei an- 
tes da traiçaO fer executada. Supren- 
deo-fe , fez-fe incrivel ao Monarca , 
que em cerebros femelhantes fe con- 
cebeflem idéas para attentado tað hor- : 
rorofo, e confultou fobre elle a Rai- 
nha D. Brites. Fluétuou o coraçaô da 
Rainha no meio da tempeftade , que 
lhe movia o amor conjugal, e o mas 
terno. Ella naô queria faltar às ter- 
nuras. de hum , nem aos deveres do 
outro. Conhecia as aftucias da Rai- 
nha , que era Mäi ; temia o perigo 
do Rei , que era efpofo ; e fem fal- 
tar á reverencia de filha , perfuadio a 
cautela com fé de efpofa. 

Seguio o Rei o parecer da Rai- 
nha , e fe pôz prompto a obtar., 
quando chegafle a occafiad de crêr; 
que os avifos erað verdadeiros. Hum 

| cria- 


186 HISTORIA GERAL > 


Ers vulg. criado do de T'raftamara percebeo ay 
precauções. do Rei ; os movimentos 
do Paço; a defconfiança dos femblan- 
tes; o retiro dos Reis; o reforço 
das guardas ; a agilidade do Conde 
de Mayorga , a quem ellas fe tinhaôd 
encarregado , e tudo participou a feu 
Amo para fe pôr em feguro. A fu- 
gida repentina dos tres irmãos de Traf- 
tamara acabou de provar os intentos 
perfidos. Elles foraô bater ás portas: 
da Cidade; mas o de Neiva, que os 
vio fem a Rainha fua irmã , temeo 
alguma traiçaô urdida contra elle; 
nað os admittio, e fe forað ao Por. 
to, aonde embarcárað para Lisboa a 
offerecer-fe no ferviço do Regente. Im- 
mediatamente «mandou o Rei vir D. 
Leonor á fua prefença, e da Rainha 
fua filha para a inftruir no proceflo 
do golpe mortal, que Íobre elle in- 
tentava defcarregar a (ua impiedade: 
Reprehendeo-lhe o abominavel atten- 
tado prefente, e os mais da lua vida 
paflada. Pôz-lhe á face o Judeo, que 
a convenceo delle , e das ordens , 
«que. mandára de Santarem . aos pg 

pé ong es 


DE PORTUGAL, Liv. XX. 187 


fes. das Praças para nað fe entrega- Era vulg.. 
rem a feu genro. ` e 
= Porém aquelle efpirito criminos 
fo 4: com o maior ardor , vivacidade, 
e conftancia , como fe tivera a confa 
Ciencia mais tranquilla tudo negou ; 
defcompôz os afiftentes, ameaçou o 
Rei com refoluçaô tal ,- que nað o 
fizera mais animofa fe eftivefle rodea- 
da de hum exercito numerofo , e 
aguerrido, prompto a morrer em feu . 
obfequio. . O Rei, nað admittindo as 
fuas elcufas , nað fazendo cafo dos 
feus fingimentos, lhe afirma, que a 
deixa com vida em attençaô a fer hu- 
ma Rainha, Mai de fua mulher, mas 
que elle a recolherá em hum Mofteiro 
em Caflella , aonde acabe os dias lis 
vre das occafiões de inquietar os Prins 
cipes , e revolver os Eftados. Neke 
lance a cólera da Rainha rompeo to- 
dos os modos honeftos , que fó po- 
deriaô applacar hum Rei tað juftamen- 
te indignado ; e,difcorrendo , que 
tanta liberdade em dizer proviria da 
confiança nos parentes, e officiofos 4 
que cuidariad em libertalla : O Rei 
o a 


ed 


A 


188 HISTORIA GERAL. 


Era vulg. à entrega a Diogo Lopes Elunhiga ; 
para que com huma efcólta de gente 
eícolhida a leve fegura a Tordefilhas , 
aonde em hum. convento paflou trifte, 
e aflita ; viveo defprezada , e po- 
bre ; acabou infeliz ; e abórrecida , 
quando o Meftre de Aviz já era Rei 
de Portugal, a 27 de Abril de 1386. 

Depois da partida da Rainha D. 
Leonor para Caítella , a Villa de 
Alemquer , ainda que governada por 
Vafco Pires de Camões , Fidalgo 
Gallego , fe fubmettéo ao Regente; 
e o Rei, que nada tinha que efpe- 
yar dos moradores de Coimbra, vol- 
tou para Santarem. Em quanto em 
Caftella fe ajuntavaô os apreítos for- 
midaveis de mar , e terra para o fi- 
tio de Lisboa, que eftava determina- 
do , os Reis fe fizeraô fenhores de 
algumas Praças vifinhas, fendo Alem- 
quer a primeira , que faltou à fé 
' pouco antes jurada ; de que nað fez 
efcrupulo o Cavalheiro de Galliza. O 
Regente nað fe defcuidava da (ua par- 
te em fornecer todos os meios pre- 
cifos para huma defenfa vigorofa ,'e 
da tras 


DE PORTUGAL, LIV. XxX. 189 


trabalhou em fazer alliados , e em Era vulg. 
contentar os homens. Para o primei- 
yo fim mandou a Embaixada , que 
eu difle a Ricardo de Inglaterra pelo 
Meftre de Sant-Iago , que era D. Fer- 
nando Aflonfo, filho de D. Joaô Af- 
fonfo de Albuquerque o do Ataude, 
e neto do memoravel D. Aftonfo San- 
ches , filho amado do grande Rei D. 
Diniz. | 

Para o fegundo fim praticou o 
Confelho do velho Alvaro Paes, que 
fica referido , ufando de huma gran-. 
de liberalidade , e igual clemencia. 
Com efta perdoou todos os crimes 
precedentes : com a outra repartio 
todos os bens confifcados pelas pef- 
foas benemeritas : fez mercê das Vil- 
las , que tinhaô a voz de Caftella , , 
aos Fidalgos do feu partido , efpe- 
cialmente aos da Cafa de feu irmaô 
o Infante D. Joaô, que vieraô com 
huma bella induftria , e ordem do 
Amo bufcar o feu ferviço. Eftes Fi- 
dalgos vendo o Infante prefo , igno- 
rante de quanto fe paflava em Por- 
tugal ; elles vigiados para nað fe ef- 

l ça- 


190 Historia GERAL 


Eravolg. caparem; (empre temerofos, e arrifo 


cados , refolvêrad retirar-fe a todo O 
rifco 5 mas defejavaô fazello laber ao 
Infante. Hum delles teve induftria de 
confeflar-fe ao feu meímo Confeflor , 
e debaixo do figilo do Sacramento 
communicar-lhe os movimentos do 
Reino, as tentativas do Rei de Caf- 
tella, as deígraças da Rainha, a he- 
roicidade de feu irmaô o Meftre de 
Aviz em fultentar a liberdade : que 
elle, e feus companheiros , andando 
em Caftella errantes , lhe pediaô li- 
cença para o virem fervir a Portugal. 
Pelo mefmo canal lhes ordenou o Ín- 
fante , que fem perda de tempo fi- 
zeflem jornada , e avifaflem os mui- 
tos Portuguezes , que andavaô em 
| Caftella, obraffem o mefmo : que fer- 
vifem a feu irmao com o zelo, com 
que a elle o tinhaô feito; e da fua 
parte lhe difefem, que logo fe acla- 
mafle Rei, por fer o meio unico de 
derrotar as idéas de Caftella , e delle 
ter liberdade. 


Lisboa tinha occupadas todas at- 


tenções em fe preparar para O cerco, 
i . que 


va reias AO iai re a a ae ne 


DE PORTUGAL, LIV. XX. 191 


que efperava. Reparárað-fe as fortifi- Era vulg.. 
cações ; elquipáraG-fe galés , e na. | 
vios ; proveo-fe a Praça de manti- 
mentos com abundancia. O Regente, 
os Fidalgos, o fiel Arcebifpo de Bra- 
ga D. Fr. Lourenço Vicente nað fe 
poupavaô á fadiga, que podefle ani- 
mar o Povo com o exemplo. No 
meio deftas manobras fe recebêraô os 
alegres avifos, de que as Praças mais 
importantes do Alem-Tejo tinhaõ def- 
picado a perfidia de Alemquer , e 
Obidos , declarando-fe pelo Regen- 
te. O Rei de Caftella, que nað o po- 
dia impedir, e eftava impaciente pe- 
la chegada das galés para principiar 
o fitio de Lisboa , ordenou ao Mef- 
tre de Alcantara, € ao Conde de 
Niebla, que com as trópas da fron- 
teira talaflem os terrenos daquela 
Provincia, que devaftáraô até Porta- 
jegre. Eta irrupçao obrigou o Re- 
gente a feparar de fi o bravo D. Nu- 
no Alvares Pereira, e conferir-lhe 
o Governo do Alem-Téjo, para on- 
de partio com hum corpo de gente 
efcolhida a dar principio ao a 
€- 


192 Historia GERAL 


Era vulg. Jecimento da fua reputaçaó, á gloria 


do Principe, á fegurança da Patria. 
Elegeo D. Nuno a Cidade de 
Evora para Quartel General , e or- 
denou que para ella desfilafle a gente 
da Provincia , que unio aos córpos 
com que marchára de Lisboa , pou- 
cos , e mal armados. O deítemido 
Chéfe ponderou a neceffidade , que 
tinha de dar á fua alma taes dilpofi- 
ções, que communicafle efpiritos ar- 


dentes á materia languida , em tað / 


pequena quantidade , que toda delle 
dependia. Enta6 esforçou os actos de 
Religiaô para moftrar , que punha a 
fua confiança no Deos dos exercitos. 
Deixou vêr a equidade natural acom- 
panhada de hum agrado taô indiffe- 
rente , que nað houvefle qualidade 
de pefloas a quem nað attrahife. Def- 
cobrio o valor taô impavido , que 
fe gloriava na imaginaçad de fe vêr 
nos perigos mais enormes , para fa- 
hir delles com honra fublime. Falla- 
va dos inimigos com reípeito para 
perfuadir mais brilhante a vantagem 
de os vencer. Defte modo , fenhor 
de 


item mo ma 


DE PORTUGAL, Liv. XX. 193 


de fi, e dos corações de todos , far Eta vulg 
bendo que o exercito dos Caítelha- 
nos , em que eftava feu irmaô o 
Prior do Crato , marchava a fitiar 
Fronteira para fazer efta divería6 ao 
cerco de Lisboa : chamou os poucos 
filhos da (ua difciplina , e com fem- 
blante. que fe derretia em ternura, 
quando derramava terror, afim lhes 
falla : | | 7 

Todos vós, fenað fofleis Portu- 
guezes , que eftais promptos a dar 
a vida pela liberdade , terieis por hum 
empenho temerario o que eu vou a 
períuadir-vos. Ahi fobre Fronteira ef- 
tað os maiores homens de Caftella 
com forças muitas vezes fuperiores ás 
noflas., contando os feus triunfos fo- j 
bre a nofla fraqueza. Que deprefa 
os obrigaremos nós a mudar de idea, 
fe lhes moftrar-mos o contrario? Por- 
que elles naô nos efperaôd , vamos a 
elles ; que efta. primeira viêtoria nos 
abrirá o paflo para outras muitas. Ao 
ouvir propoíta femelhante nað houve 
coraçaô , que naô palpitafle ; pallida 
a cor, que indicava o medo no em- 
` TOM, V. N pe- 


Era vulg. 


194 Historia GERAL 
penho de huma temeridade ; mas aco- 


«indo os efpiritos do valor a reani- 


mar os alentos , que diflipára o fuf- 
to, naó fe achou hum fó , que du- 


- vidafle expôr-fe ao perigo , que em 


qualquer das fórtes era honrofo á Pa- 
tria. 

Ao fom de caixas , e trombetas 
marchou o pequeno efquadrað de Ef- 
tremoz para Fronteira, quatro leguas 
diflante , que já os Caftelhanos ata- 
cavaô. Os feus efcritores, defculpan- 
do a Naça6 com É efpecio- 
fos, quando confeflad a fua derrota, 
períuadem a nofla marcha feita á fur- 
dina; que nað lhes demos tempo de 
fe poftar com vantagem , nem ainda 
de fe formárem em batalha, Se efta 
ficçaô fenað defmentira com a verdas 
de , que eu vou a referir ; que ap- 
parencia lhe podem dar os Caftelha- 
nos , fe elles ellavad já dentro de 
Portugal; fe erað muitas vezes fupe- 
riores aos Portuguezes; fe a fua or- 
dem de batalha tinha vantagens in- 


-comparaveis á nofla? Primeiramente, . 


duas leguas antes de chegar a Frons 
`: -> tei- 


DE PORTUGAL, LIV. XX. 196 


teira , efperava no caminho hum cria- Efa vulg, 
do do Prior do Crato, que fabendo 
da marcha de feu irmað D. Nuno, 
lhe mandava eftranhar a temeridade 
de fe perder ; que mudafle de refo. 
khuçaô , e de ferviço teria do Rei de 
Caítella as mercês , que nað feria6 
firmes feitas pelo Meftre de Aviz, 
evidentemente impoflibilitado de fe 
manter em Portugal. D. Nuno , de~ 
pois de ordenar ao criado refpondel- 
fe a feu irmaô , que fe o partido do 
Meftre era o menos forte na apparen- 
cia , que na realidade era o mais 
juto ; que ainda no cafo do Rei de 
Caftella lograr os feus intentos , na- 
da poderia aballar a fidelidade , que 
elle havia jurado ao Regente, que o 
Prior olhafle por fi, e nað fe emba- 
zaçafle com elle : ultimamente lhe 
dife, que correfle até matar o caval- 
lo para o avifar , como D. Nuno 
marchava a enveftir os Caftelhanos a 
todo o rifco no feu meímo campo, 
Com efta refpoíta tað precifa, os 
Chéfes inimigos eftimulados refolvê- 
raô poupar caminho a D. Nuno , è 
| N ii mar- 


196 HISTORIA GERAL 


Era vulg. marcháraô formados ao feu encontros 
Aviftárad-fe os dous campos na pla- 
nicie , que chamaô os Atoleiros, de 
que a batalha tomou o nome. Cada 
partido fe occupou em tomar as fuas 
vantagens. O noflo, como menos nu- 
merofo , que confentia poucas divi- 
sões , formou hum efquadraő fecha- 
do com os intrepidos na vanguarda ; 
no centro o Eltandarte com o Simu- 
Jacro adoravel do Crucificado ; na 
retaguarda as milicias bifonhas. Ao 
contrario os Caftelhanos, que cobri- 
raô o- corpo de batalha de duas gran- 
des allas , nað fó com o defignio de 
fazerem parecer o exercito maior 5 
mas deítinadas a abraçar o nofio, 
que ficando no feu centro , feria a 
hum tempo atacado por todos os la- 
dos. Eraô os inimigos mais fortes que 
nós, e bem fe conheciad menos fir- 
mes , quando , Íuperiores em núme- 
ro , fe fufpendéraô em enveftir-nos, 
temero(os de entrar em huma acçaô , 

que fofle decifiva. 

O bravo D. Nuno, vendo nos 

femblantes dos Portuguezes , que E 

| a 


de 


DE PORTUGAL, LIV. XX. 197 


da mais tinha que ajuntar a fua intre- Era vulg, 
pidez, depois de adorar com o -rofto 
em terra no Eftandarte a Imagem de 
Jefu Chrifto; de ordenar fe defmon- 
-téflem os 300 Cavalleiros, que tinha, 
para efperarem a pé firme nas pon- 
tas das lanças o repelad de mais de 
dous mil cavallos dos inimigos ; lee- 
vantou o grito de guerra Portugal, 
S.Jorge, que era o final de avançar. 
Ao écco dos clamores fe feguíraô os 
golpes das armas. Os Caftelhanos nos 
“enveftíraô com vigor extremo; eften- 
dendo as allas para nos colherem pe- 
la retaguarda; mas a fua cavallaria ef- 
petada nas lanças , deípedia os ho- 
mens , que degolava o furor, e del- 
compondo os que a feguiað , foi fa- 
cil introduzir a confufad em todo 'o 
exercito. Como o corpo da batalha 
recuava , fizeraô o mefmo as allas; | 
e obfervando D. Nuno -a boa occa- 
fia de carregar o inimigo, mandou 
montar os- 300 Cavalleiros, que com 
as lanças enriftadas atropelavad quan- 
to. fe lhes punha diante. Enfraqueceo 
a corage Caftelhana , já fem acordo 
| par 


198 . Historia GERAL 


Era vulg. para a defenfa , nem para a fugida, 
O feu exercito em pouco mais de 
meia hora de combate foi inteira- 
mente derrotado fem perda de hum 
fó Portuguez , e com morte de 117 
cavalleiros contrarios , de muita da 
fua infantaria, do Metftre, e Clavei- 
ro de Alcantara, e feridos o Conde 
de Niebla , o Prior do Crato, e ou- 
tros Fidalgos de grande qualidade. 

As confequencias defta victoria 
principiáraô a fazer-fe confideraveis 
E terror , que ella derramou nas 

raças, que feguiad a voz de Caítel, 
la. Já parecia aos feus Commandan- 
tes, que elles tinhaô pouca apparene 
cia de fe firmar na fua protecçad, e 
nas fuas trópas. D. Nuno Alvares, 
que aflim o penfava, no dia feguinte 
á vitoria, para fe aproveitar .da conf» 
ternaça6 dos inimigos, fahio de Fron- 
teira na téfla de hum groffo deftaca- 
mento, foi infultar as fuas reliquias, 
que fe haviaô refugiado na Villa de 
Monforte , donde fenað refolvêrad a 
fahir , e fubmetteo á obediencia da 
Regente os Lugares daquelles contor- 

| nOSe 


DE PORTUGAL , LIV. XX. rog 


nos. As Villas mais diftantes com as Era vulg: 
guarnições reforçadas pelo Rei de Cal- 
tella, e entretidas por elle com a ef- 
perança da conguifta de Lisboa , pa- 
ya que fe difpunha , aínda fe confer- 
'várað na fua obediencia ; mas antes 
que entremos na narraçaô do itio da- 
quella Capital : Sitio , para cuja: de- 
fenfa concorreo o Ceo movido pela 
juítiça da. nofla caufa ; entretenhamo- 
nos hum pouco nos fucceflos meno- 
res , e gloriolos , que lhe precedês 
rað. | | 


CAPITULO V. 


Varios fucceljos militares depois da ba- 
talha.dos Atoleiros , e os mais até ao 


fítio da Corte de Lisboa. 


Dou Nuno Alvares Pereira, Fron- 
teiro Entre o Téjo , e Guadiana, 
com as fuas façanhas principiou a alen- 
tar os fequazes da liberdade. Como 
os inimigos nað fe atrevêraS. a fahit 
de Monforte , elle voltou para Fron- 
teira ; e porque os dias erað- jr da 
É Go 


200 Historia GERAL . 


Era vulg. Semana Santa, quiz moftrar ao mune 
do em aĝos de Religiad , que fe o 
feu valor vencia os homens , o con- 
forto lhe vinha do alto. Na fexta fei- 
ya Maior fahio elle de Fronteira a pé 
defcalço vifitar a Igreja de Nofia Se- 
nhora do Aflumar , huma legua dif- 
tante , que achou cheia das indecen- 
cias immundas , que nella deixáraô 
os Caftelhanos, quando a fizeraô ca- 
valharice. Comoveo-le o coragað pio 
do noflo Heróe, e banhado em lagri- 
mas de ternura o roto, que na came 
panha fcintilava raios de ardor ; elle 
por fuas mãos varreo o Templo, com 
tanta acceitaçao do feu Habitador Di» 
vino, que nelle mefmo lhe remune- 
rou o obfeguio com o avifo dos de 
Arronches , que pediad fofle tomar 
entrega daquella Praça pelo Principe 
Regente. Ê 

No Sabado de Alleluia partio D.. 
Nuno a tomar poffe de Arronches , 
que o recebeo entre vivas como a 
triunfante. O Alcaide Mór, que era 

“hum bravo Caftelhino chamado D. 
Aflonfa Sanches , quiz fazer-fe forte 
— NO 


“Leonor culpou ao Meftre da fua pris 


DE PORTUGAL, LIV. XX. 201 


no Caftello ; mas correndo a gente de Era vulg. 


D. Nuno com a do Povo , e dando 
fogo às portas , entráraô efpada em 
mað , e fizeraô prifioneiro o Alcaide 
com toda a guarniçao. Ainda com as 
armas quentes, D. Nuno recebe ou- 
tro menfageiro de Alegrete, que lhe 
rendia obediencia ; e deixando Arron- 
ches encarregada. à feu tio Mártim 
Gonçalves do Carvalhal, fe recolhéo 
a Evora para provêr nos mais nego- 
cios da Provincia. Animados com os 
bons fucceflos do Chéfe, o Commane ` 
dante de Villa Viçofa Alvaro Gon- 
galves Coitado, e o do Landroal Pe- 
dro Rodrigues , entrárad juntos em 
Caftelia., e talando as campanhas de 
Alconchel , e Villa Nova del Tref- 
no , fe recolhêraô com huma preza 
importante de todo o genero de ga- 
dos. . | 

Efes meímos Cabos, zelofos no 
ferviço do feu Principe, fouberad por 
avifos particulares , que Vafco Por- 
galho, Commendador Mór de Aviz, 
aquelle homem , que a Rainha D. 


(ad 


202 Historia GERAL r 


Era vulg. (aô em Evora , era infiel ao melmo 


Meftre Regente , que entað impedio 
aos feus criados tirar-lhe a vida. Co- 
mo elle agora reíidia em Villa Vigo- 


fa, os dous Commandantes acima di-- 


tos o prendêrad depois de huma re- 
fitencia dura. Remettido á Corte , 


tanto foube infinuar-fe no agrado do: 


Principe, que fe tivérad os avifos por 
falfos , e elle foi reftituido a Villa 
Viçofa com as maiores demonftrações 


de bonra. De tudo fe efqueceo efte: 
Fidalgo para traçar o feu deípique 
contra os dous cabos , que nað po- 


dia effeituar fem huma traiçaô mani- 
fefta , entregando a Praça aos Cafte- 
lhanos. Elle o convencionou em San- 
tarem com o feu Rei, em quan- 
to com diflimulaçaó amigavel tra- 


tava a Alvaro Gonçalves , que hum. 


dia o tomou por compadre, e no ou- 
tro foi por elle prezo com fua mu- 
lher, e filhos. Na mefma noite deo: 
entrada na Praça a muitos Caftelha= 
nos , que marcháraôd de Olivença cont 
os Commendadores Móres de Alcan- 
tara, e Calatrava , defejofos de ex- 
piar 


DE PORTUGAL , Liv. XX, 203 


piar com efta façanha a fua covardia Ers vulg 


na batalha dos Atoleiros, e no dia fe- 
guinte, com admiraçaô do Povo, foi 
o Rei de Caftella acclamado por Vaf- 


“co Porcalho. 


O Alcaide Mór do Landroal fen- 
tio em extremo a prifa6 do feu cama- 
rada Alvaro Gonçalves , de que deo 
parte ao Regente com a noticia da 
traiçaô de Porcalho, e ao Chéfe da 
Provincia. O Regente conheceo o feu 
engano; D. Nuno diívelou-fe em im- 
pedir a ruina do animofo Alvaro , e 
mandou hum reforço a Pedro Rodri- 
gues, para, como bom amigo, fahir 
do Landroal, quando os Caftelhanos 
conduzifem o prefo a Olivença , ʻe 
lho arrancafle das mãos, Elle fe en- 
faiou para efta empreza com outra nað 
menos gloriofa , que foi a derrota 
dos dous Commendadores Caftelha- 
nos, com trezentas lanças, que vol- 
tavaô ricos de defpojos feitos nos cam- 
pos de Evora. Pedro Rodrigues os 
efperou com oitenta Cavalleiros , quan- 
do elles fe recolhiaô ; e dando na 
vanguarda , que: conduzia a preza, 


204 HISTORIA GERAL 


Era wulg. matou go , e pôz o refto em fugida. 
Como a viétoria ficava incompleta 
fem o deftroço da cavallaria , que 
cobriað os Commendadores ; nað re- 
parando na defigualdade do número, 
o Alcaide Mór os enveítio com gol- 
pes taô pezados , que perdia6 vidas , 
€ terreno , até abertamente fe porem 
em fugida para Villa Viçofa. 

Lourenço Martins do Tojal, e 
Gonçalo Lourenço de Sampayo , dous 
bravos cavalleiros noflos , fe conjurá- 
Tað para a toda a brida períeguirem 
os Commendadores, e cada hum ma- 
tar o (eu. Já em grande diftancia do 
nofio campo, elles rompéraô pelo ef- 
quadraõ inimigo, e cada qual do feu 
bote de lança deitárad os Commen- 
dadores em terra ; mas atacados. por 
toda a fua trópa, os esforçados ca- 
valleiros abertos em feridas perderiad 
a vida, fenað fobreviera Pedro Rodri- 
gues , que fó com fe moftrar caulou 
tal terror nos Caftelhanos , que fem 
acordo voltáraS caras. Efte fuccefio 
animou os noflos cavalleiros para a 
refoluça de foltar Alvaro. Gonçalves 

a 


DEPoRTUGAL, LIV. XX. 206 


a todo o rifco. Elles efpiavad do Lan- Eta vulg. 
“droal com diligencia, quando feria le- 
vado o prefo de Villa Viçofa, e com | 
que guarda. Informados do dia da par- 
tida, e de que os mefmos Commen- 
' dadores em pefloa o havia6 conduzir 
com a efcolta de 200 cavallos, e hum 
troço de infantaria; Pedro Rodri- 
gues, e os feus cavalleiros fe embof- 
cáraô no pinhal, que ficava na eftrada 
de Villa Viçofa para Olivença , cha- 
mada da Corte de Oliveira. Era alta 
noite , quando as vigias deraô parte 
de virem chegando os Caftelhanos com 
pouca ordem ; os Commendadores na 
vanguarda ; immediato a elles o preío 
carregado de ferros ; bem deícuidados 
do perigo, que os efperava. 

Com grande prazer efperou o Al- 
caide Mór a occafiaô de livrar o feu 
amigo ; animou os camaradas para 
hum feito honrado ; e apenas os ini- 
migos abocárad na eftrada do pinhal, 
os noflos gritando S. Jorge , fizerad 
mað baixa Íobre elles. Entrárad a fal- 
tar cabeças pelo campo á força de va- 
lentes cutiladas ; outros tiravaô os 

- cor- 


206 Historia GERAL 


Era vulgi corpos das fellas efpetados nas lanças; 
a Infantaria fem corage foffria os gol- 
pes retirando-fe á fombra das matas ; 
os Commendadores perdéraô os ca- 
vallos , e fe falváraô a pé com o refto 
dos fugitivos pela fragofidade dos mon- 
tes. O prezo Alvaro Goncalves, que 
lhe chegava a hora de deixar de fer 
Coitado, para que por erro o nað al- 
cançafle- alguma lançada, no principio 
da refrega fe deitou abaixo da mula, 
que o levava, e fe efcondeo em hu- 
ma moita para vér com a luz da ma- 
nha o fim da tragedia. Rompeo o dia, 
e os noflos, que ficárað no campo do 
«combate , nað vendo nelle o prelo, 
culpáraô o feu defacordo em fe em- 
penharem tanto na peleija , efquecen- 
do o principal objeito della. na 
Gonçalves, que conheceo a voz d 
Gonçalo Lourenço de Sampayo , fahio 
das matas arraíftando as fuas cadeias 
com grande alvoroço dos noflos , que 
o conduziraô a Eftremoz , aonde efta- 
va D. Nuno. 

Payo Rodrigues Marinho , Pore 
tuguez valerofo, fuftentava em Cam- 


pe? 


DE PORTUGAL , Liv. XX. 207 


po-Maior a voz do Rei de Caftella. 
Defejava o Regente attrahir efte Cabo 
ao feu partido , e encarregou ao va- 
lerofo Gil Fernandes , de quem já 
tenho fallado, que o perfuadifle. Com 
a palavra mutua de honra fe ajuftá- 
rað os dous Cabos a fallar com fe- 
gurança fóra dos muros daquella Pra- 
ça. Marchou Gil Fernandes de Elvas 
ao lugar deítinado, aonde o Marinho 
perido , e perjuro , o prendeo para 
tirar pela fua liberdade hum avultado 
reígate. Nað era o Gil homem capaz 
de foffrer efta injúria fem defpique, 
Vêr-fe livre, e vingado foi o meímo, 
Elle talou com a gente do feu parti- 
do as campanhas de Caítella até Xe» 
res , donde trouxe importancias do- 
bradas ás do feu reígate , depois de 
poftrar muitos cadaveres para tetemu- 
nhos do feu refentimento. O Marinho 
fahio com forças maiores a tomar-lhe 
contas. Elle as deo tað ajuítadas , que 
o Marinho lhe cahio no poder para 


Era vulg. 


pagar o crime da aleivofia. O Gil fez- 


delle entrega a Martim Vaíques para 


o guardar a bom recato, em quanto 
da- 


208 “Historia GERAL 


Era vulg. dava alcance aos que fugiað. Entað 
lhe diffe o fiel Portuguez : Ora Payo 
Rodrigues, já que fois tað bravo, pa- 
gareis o que fizeítes a Gil Fernandes, 
que he tað manlo. Refpondeo-lhe 
Payo Rodrigues hum pouco livre : 
mas o Vaíques, que ufava poucas ce- 
remonias, de hum golpe lhe levou a 
cabeca , que trouxe a Elvas em final 
do feu triunfo. 

Quando no Alem-Téjo fuccediad 

eflas aventuras, a nofla Armada de 
' Lisboa, que fora incorporar-fe com a 
do Porto para voltarem unidas em 
Ífoccorro ao fitio , que aquella Capi-. 
tal eiperava , marchou commandada 
pelo Conde de Traftamara , que ainda 
eftava no Porto, a invadir as Praças 
maritimas de Galiza. Ella metteo em 
contribuiçað , e tomou muitos navios 
nas de Bayona , Angia , Corunha, 
Neida , e Betancos , donde fe fez na 
volta do Porto a efperar as ordens de 
navegar para Lisboa. Efperava o Rei 
“de Caftella a fua armada de Sevilha 
para principiar o fitio da nofla Corte ; 
e com a noticia de ektar preítes , par- 

tio 


DE PORTUGAL, LIV. XX. 209 


tio de Santarem nateíta de 12% ca- Era vulg: 
vallos, e grande número de infantes. 
Pouco depois chegou a vä-guarda da 
frota compofta de quatorze galés , que 
fizeraô caminho pelo Téjo a 40 nãos 
groflas, que as feguiad. O quartel do 
Rei junto ao Convento de Santos bri- 
lhava pela magnificencia das fuas ten- 
das., das dos primeiros Chéfes , ẹ 
Grandes da Corte. O avultado núme- 
yo das. trópas em terra, a quantidade 
de navios de alto bórdo no rio fazia6 
huma perfpectiva , ao meímo tempo 
que alegre , tað temivel, que jufta- 
mente poderiaô defconfiar os fitiados 
do bom fucceflo da defenfa. A todas 
„as exterioridades correípondia a boa 
ordem , e difciplina do campo , o 
provimento dos viveres , a corage dos 
“Íoldados. TO 
Mas aos Portuguezes , que ven- 
cer, ou morrer pela Patria o elima- 
vað por acto indiftinêto , nada os af- 
fombrava ; antes o maior apparato lhes 
fervia' de eftimulo mais picante para 
meditarem a gloria mais fublime. 
Bem o moftrárad na chegada do Rei 


. TOM. V. o. ós 


210 Historia GERAL 


Era vulg. os dous irmãos Ruy Mendes, e Mem 
Rodrigues de Vafconcellos, que ven- 
do fobre o monte de S. Gens ao def- 
temido Capitað D. Joað Ramires de 
Arelhano com hum grande corpo de 
trópas infultando os da Cidade : Elles 
fahiraô com 200 de cavallo ; fizeraõ 
rodar os Caftelhanos pelo monte ; 
prendéraS a D. Joaô Ramires, e var- 
réraô o campo com os Eftandartes de 
Caftella na face do feu Rei. Bem o 
fizeraô vêr na mefma chegada defte 
Principe , quando elle paffava com 
hum groflo de gente pelas portas de 
Santa Catharina , Fernando Alvares 
de Almeida , e outros gentiz Fidal- 
gos » que atacados pelo Rei em pef- 
oa , o noflo Regente lhes fechou as 
portas á retirada , para aquelle Mo- 
narca vêr diante de fi tantas monta- 
nhas de aço , que immoveis aos re- 
pelões de huma multidaô de lanças , 
o forçárað a defiftir do empenho an- 
tes de arrifcar a Mageftade, ou per- 
der a reputaçaô. Bem o manifeítou 
Gomes Rodrigues , quando veio de- 
fronte da meíma porta hum dos mais 

| alen- 


DE PORTUGAL, LIV. XX. 271 


alentados do exercito pedir combate Era wulg 
particular , que elle perfuadia fe po- 
deria eftimar como fentença definiti- 
va da juítiça dos partidos do vence- 
dor ; e fendo Expectadores do Cafte- 
hano o feu exercito poífto em armas, 
as noflas trópas, bordando os muros, 
do Portuguez : Efte aos primeiros 
golpes deo com o Caftelhano morto 
em terra, ficando mudo o feu campo, 
que teve em mão agouro o fucceflo ; 
alegre nas acclamações o Povo de Liss 
boa , que por elle fe prognoíticou a 
victoria. | 
O Principe Regente, vendo o 
fitio formado, deípedio Ruy Pereira 
para o Porto a fazer expedir a arma- 
da , e efcreveo a D. Nuno Alvares, 
que eftava em Evora, marchafle com 
a gente, que podefie tirar da Provin- 
cia a embarcar-fe nella. Os do Porto, 
que naô tinhaô Commandanté, oftes 
“vecêraS a armada em tal occafiad ao 
Conde de Neiva , já declarado a fávor 
da. liberdade. Naô duvidou elle accei- 
tar a offerta , e partio de Coimbra a 
encarregar-fe da cominiflad ; mas tans . 
O ii “to 


212 Historia GERAL 


Eta vulg. to elle, como os mais.Cabos., faben« 
do que D. Nuno vinha com: marchas 
forçadas a embarcar-fe : nad querendo 
na fua companhia homem tamanho, 
que levaria toda a gloria da empreza, 
foltáraô panno , e fe fizéraô na volta 
de Lisboa. D. Nuno, que recebeo efta 
noticia em Coimbra, retrocedeo pae 
ra o Alem-Téjo, contente com a ge- 
nerofidade de ceder as Villas da Rai- 
nha D. Leonor , que o Regente lhe 
tinha promettido , a favor de feu ir- 
mað o Conde de Neiva, que fem ef- 
ta condiçaô duvidava acceitar o gover- 
no da armada , ambiciolo do premio 
antes de fazer o ferviço. : ? 

Com a noticia da vinda da arma- 
da do Porto, o Rei de Caítella con- 
vocou a confelho para fe refolver fe 
a fua havia fahir a combater no mar 
alto , ou efperalla dentro do rio. Quan- 
do fe debatia a contrariedade das opi- 
niões ,. appareceo a nofla pela ponta 
de S. Giaô , tremolando flamulas , e 
galhardetes , empavezada , e guerreira. 
“Ella fe compunha: de dezafete Galés y 
e outro igual número de navios de 

“e P- dia j l al- 


DE PORTUGAL, LIV. XX. 213 


alto bordo , a que fazia a vá-guarda à Era vulg: 
Não de Ruy Pereira ; que com: os 
- brios do feu Apellido:tomou por mais 
honrado o lugar do maior perigo. El- 
la entrou no Téjo' com tanta-com 
fiança , como fe navegára em triun> 
fo, fem que os Caftelhanos , chegas 
dos antes , entraffem.not deverés dé 
lho impedir.: Ea incuria , ou efta 
frouxidad caufou novos alentos: aos 
Portuguezes, que já fe:impacientavað 
pelo combate. é Re alfa A 
Naô teve elle muita tardança ; 
porque várias nãos noflas , deftacadas 
para tentar: o animo, dos inimigos, 
de modo fe empenháraô , que fizè- 
rað em ambas as Frótas o choque ge- 
ral. Todo elle foi de opiniaô por am- 
bas as partes ; mas fenfivel aos Por- 
tugúezes por hum acafo laftimofo , 
“em que perdeo a vida Ruy Pereira fa- 
zendo as vezes de foldado intrepido , 
e por tresnãos groflas,' que nos apri- 
fionira6. Já'os inimigos fe perfuadiaó, 
- que efte golpe nos abatêra o valor; 
: que todas as vantagens futuras feriað 
: fuas ; que a deíte combate cais 56 à 
E Ol- 


414 Historia GERAL 


Ere valg. fortuna ao feu foldo , efpecialmente. 


quando foraô reforçados depois delle 
or mais vinte e hum navios, e nos 
nofios fàltavað. tres. Segunda batalha, 
em que nenhuma das partes cantou 
a vitoria , lhes deímentio as idéas; 
mas elles ficárað em eftado „ que fe 
foraô para Reílelo reparar as ruinas, 
e nós bordáimos: a nofla praia junto 
aos muros da Cidade: para fullentar 
a defenfiva , que era o que entaô nos 
importava. 


“CAPITULO V 


ContinuaçaS do fitio de Lisboa com o 
“Mais que aconteceo até os Caftelha- 
nos o levantarem. 


Na Naçaô Portugueza o amor da 
Patria , que à Eltrangeiros bem inf- 
truidos ouvi já notar de (uperíticio- 
fo , he tað vehemente , que: Diogo 
Lopes Pacheco , já muito avançado 
em annos , e feus filhos Joad , Fer- 
nando , e Lopo, que eftavaô em Caf- 
tella muito reífpeitados : fabendo Q 
que 


o a ia aa Pt mito a e e 


DE PORTUGAL, LIV. XX. 218 


que o Meftre de Aviz obrava em Por- Eta vulg. 
tugal pela liberdade , marcháraô com 
trinta criados para fer participantes 
da honra da nofla refoluçaő , que em 
Caftella nem era para penfada. - Elles 
chegáraô ao T'éjo quando principia- 
va o fitio de Lisboa , e nað queren- 
do ayrifcar-fe na paflagem , foraô pa- 
ya Almada, Os (eus: efcrupulofos 
moradores ,. como. elles vinhad de 
Caftelia , nað. houve remedio a con- 
fentillos dentro dos muros, e apenas 
os deixáraO aquartelar nos arrabaldes. 
Entrou o Rei em viva cólera quando 
foube efta retirada de Diogo Lopes, 
que caracterilou pela ingratidaô mais 
indigna , fuppoftos..os. grandes benefi- 
cios, que Diogo Lopes recebêra del- 
Je, e de feu Pai D. Henrique. Sem 
mais penfar mandou hum grande def- 
tacamento aos Arrabaldes de Almada 
prender Diogo Lopes , que aviíado 
da paflagem dos Caftelhanos , com 
feus filhos, criados, e parte da guar- 
niçaô fahio aelles para dar próvas da 
fé no coraçaô, do valor em annos ve- 


lhos. 
Tað 


Eta vulg. ; 


416 - Historia GERAL ~ 
-= Tað rudo foi o ataque, que aos 


. primeiros repelões' cahfraô. mortos 40 


Caftelhanos ; mas como- o partido era 
muito .defigual ., e Diogo Lopes teve 
a infelicidade de ficar rprifioneiro , 
feus filhos ` e-atrópa cuidárad em 
retirar-fe com honra; À villa do ve: 
neravel Velho acabou deenfurecer o 
Rei, que refolveéo calligar a :hel Al- 
mada. Mandou elle fitiar o Caftello 
por Pedro Sarmiento ,. e Joaô Ro- 
drigues de Caftanheda 5 que por ef- 
paço de mez e meio encontrárað hu- 
ma réfiltencia inimitavel, e lograria 
os feus efleitos, fe fecca a: Cifterna, 
a fede extrema :,.e a impoflibilidade 
de: lhe introduyzir:a agua neceflaria nað 
obrigafle o Principe Regente ordenar 
aos: moradores , que fe entregaflem. 
Porém.os da Villa de Ourem repará- 
að efta’ perda: de Almada , entregan- 


“do-fé: ao Mefre: D. Lopo Dias de 


Soufa , que prendeo nella a dous filhos 


“do Conde: de Barcellos, antes amigo 


do Regente, agora declarado contra 
"à liberdade da Patria com a irmã Rai- 
nha preza em Caftella, ? 


DE PORTUGAL , LIV. XX. 217 


O -fitio de Almada -naô impedia Era wilg. 


o ardor do de Lisboa ., : nem o (eu 
rendimento esfriou o reféntimento da 
Rei , afim pelo deíprezo , que em 
Thomar fez D. Nuno Alvares Perei- 
za, quando voltava de Coimbra:, das 
vantajofas promeflas, com que o man- 
dou brindar para feguir o íeu parti- 
do ; como porque o-feu reconheci- 
mento a efta benevolencia Real foi 
vir com a fua gente , perecendo. de 
fome , atacar , vencer , e defpojar 


“junto a Santarem huma: grofla partida 


Caftelhana. para fupprir com o valor 
deíta preza os gaftos da jornada até 


- Evora. Crimes tað honrados eftimulá- 


rað tanto ao Rei D. Joa5, que man- 
dou a Joad Rodrigues de Caftanheda 
pafiafe logo a Badajóz , e caftigafie 
a D. Nuno, que com a:fua chegada 
-ao Alem-Téjo aggravára os delidtos:, 
tomando por huma furpreza cheia de 
confiança a. Villa de Monçaráz. En- 
tendeo o Caftanheda, que hum Mao- 
co de vinte e tres annos, como era 
„D. Nuno , refpeitafle hum Capitaô 
antigo , qual elle fe deixava vêr ; e 
ds o 


218 HNiSTORIA GERAL 


Era vulg. o perfuadio por hum trombeta + que: 


mandou a Elvas, reconhecefle o feu 
legitimo Rei, e nað quizeffe vello da 
outra parte do Caya com cara de en- 
fadado. | 

Reífpondeo-lhe D. Nuno , que 
para o feu Soberano fer Rei de Por- 
tugal , primeiro havia efperar , que 
a Rainha lhe defle hum filho para os 
Portuguezes o reconhecerem como 
tal, na fórma que elle jurou no ulti- 
mo Tratado : que lhe agradecia os 
feus confelhos , paixad dominante dos 
Velhos dallos aos rapazes, que lhos 
nað pedem : que elle o efperava no 
dia feguinte , eo convidava para a 
fua meza, aonde o acharia com cara 
de rilo, e femblante de féíta, Apenas 
D. Nuno defpedio o trombeta, orde- 


nou fetocafle a pegar; e ainda o Caf- | 


tanheda nað acabára de ouvir o reca- 
do, já elle eftava á vifta de Badajóz 
com 400 cavallos , e a infantaria de 
Elvas. Naô convinha 4 honra do Cal- 
telhano deixar de acceitar o convite, 
que lhe vinhaõ fazer na cafa propria, 
e fahio com todo o feu poder e 
ens 


a moto ae ás amema mm om 


DE PORTUGAL, LIV. XX. 219 


- fendo enveítido com huma refoluçaõ, Era vulg. 
que fenað. concebe, a furia do repe- 
Jaô o metteo a golpes pelas portas de 
Badajóz , aonde todos fobiraô á mu- 
Talha para verem o rofto. alegre , e o 
animo defenfadado: com que D. Nuno 
levou a reto do dia na frente della.. 
= Eftas. noticias no campo , e na 
Praça de Lisboa produziað os encon- 
trados efleitos , que fað faceis de 
penfar: O Rei de Caftella chamou a 
Pedro Sarmiento , e dando-lhe ordem, 
que ;com a gente do exercito , que 
quizefle levar; foffe ajuntar-fe com a 
que tinha: no Crato o Prior D. Pe- 
dro Alvares Pereira ; refolveo , que 
havia trazer.lhe alli a D. Nuno mor 
to, ou prezo. Vaidolo o Sarmiento 
por fer efcolhido para reparar a fra- 
queza do Caftanheda , efcreveo do 
Crato a D. Nuno, que fe achava em 
Evora , dizendo-lhe o efperaffe no 
campo, aonde elle hia para o agoitar 
á vita de todos , como a minino, 
D. Nuno nað quiz refponder por ef- 
crito : Seria reípeito, ou temor, mas 
nada o alterou, Dizei a meu Sa 
Ga 


226 Historia GERAL © 


Era vulg. Pedro Sarmiento ( foi a refpofta dé 
D. Nuno, ) e aos mais Capitães , qué 
o acompanha6 , a promptida5 com 
que -lhe obedego em buícallos : que 
prepare os inftrumentos ‘para -Os áçoi- 
tes , que eu levarei de boa vontade, 
fe elle vir, que lhe vira as coftas o 
minino , que faberá [er'cortez ás fuas 
cas. E a 

Ajuntou D.” Nuno a gente que 
pode, e marchou “duas ‘leguas de Evo- 
ra a efperar os inimigos , 'que appa- 
recêraô em grande número “com os 
muitos cabos reípeitaveis -na fua tefta. 
Ambos os córpos fizetaõ alto, quan- 

“do fe aviftáraS ; D. Nuno querendo 
fer acomettido , os Caftelhanos du- 
vidofos fe acometteriad. Antes de fe 
expôr á fortuna, tentáraS como pru- 
dentes a D. Nuno com huma menfa- 
“gem nova , reiterando as períuasões 
de mudar cafaca. Elle lhes fez refpon- 
der : Que nað viera ao campo gaf- 
- tar o tempo em cumprimentos , fe- 
nað a levar os açoites : que fe mo- 
“veffem a dailos , ou que pofeflem pé 
“em terra, como elle eftava Ear 
Us 


DE PORTUGAL; LIV. XX. 221 


duvidava fer o meímó que marchaffe Era vulg. 
g recebellos, fe condefcendeflem em 
pôr-fe na acçaô , que. lhes requeria. 
Dous dias os eíperou o valerofo He- 
róe fem elles fe moverem., nem mu- 
darem de poítura. No terceiro fere- 
folveo a atacallos , nað podendo de- 
morar mais tempo o defaggravo da 
injúria; mas quando amanheceo achou- 
fe fó no campo , porque os inimigos 
fe haviaô retirado para Lisboa com 
todas as apparencias de quem foge. 

Sentio o Rei em extremo efte: 
defar das fuas armas: . muito mais De 
Nuno , que fobejando-lhe o valor, 
nað eflimou a victoria , por lhe fal- 
tar o conflito. Naô foffreo aquellæ 
animo intrépido deixar de moftrar ao. 
mundo , que naô combatêra, porque 
os Caftelhanos lhe fugirad ; e arbi- 
trando comíigo a idéa façanhola , que 
havia emprehender; com a meíma 
trópa, que o acompanhava, foi feguin- 
do a marcha dos inimigos , e de re- . 
. pente fe lançou fobre a Villa de Al- 
mada. O Caftanheda , que já eftava 
nella, fugio fem acordo. Na pode 
o a fur- 


222 Historia GERAL. 


' Eravulg. furprender o Caftello, que achou con 


as pórtas fechadas ; mas faqueou a 
Villa, e com cólera jufta as cafas do 
Sarmiento , e Caftanheda ; paflou á 
efpada quantos Caftelhanos apparecê- 


raô; e formando a fua gente em hu- 


ma grande fileira com os Eftandartes 
foltos fobre -a rocha fronteira a Lis- 
boa, deo aos moradores, que difcor- 
rêrað quem era, huma viņa bem ale- 
gre. No mefmo dia fe recolheo a Pal- 
mela, aonde efteve até ao fim de Se- 
tembro , quando os Caftelhanos le- 
vantárað o fítio. 

Todas as noites mandava elle ac- 
cender muitos fogos nos altos da Vil- 
“Ja para dar final ao Regente, de que 
alli eftava o mais fiel dos feus fervi- 
dores , prompto a feguillo em todos 
os deflinos. Reparon o Rei de Caf- 
tella na continuacað deftas luminarias, 
e perguntou ao Sarmiento quem feria 
o author daquelles finaes, a que fe 
| vefpondia com outros femelhantes no 
Palacio Real de Lisboa. Dizendo Pedro 
Sarmiento, que entendia fer D. Nuno 
Alvares Pereira : O Rei, po 

o 


e A fm 


DE PORTUGAL, LIV. XX. 223 


do o fundo da fua afflicçaô , lhe tor- Era vulg. 
nou , que fe admirava , de que fen- 
do elle o Adiantado de Caftella con- 
fentile , que hum Commandante de 
cinco potros lhes eftivefle fazendo taes 
defprezos na fua face. O Sarmiento, 
que fe vio neceffitado a defculpar a 
covardia propria , encarecendo O va- 
lor alheio , refpondeo ao Rei : Que 
défle graças a Deos, ou ao Rio, que ' 
tinha na frente; que a nað fer elle, 
o Chéfe de cinco potros o viria vi- 
fitar dentro do feu pavilhaõ real. 
Muitos cuidados entráraô daqui 
em diante a opprimir o efpirito do 
Regente pela difficuldade do remedio. 
Hum delles foi a prifaô, de que de- 
fejava refgatar a Diogo Lopes Pache-: 
co, que viera de Caítella com os fi- 
lhos offerecer-fe no feu ferviço. Defte 
fe livrou elle pela troca, que fez com. 
D. Joaô Ramires de Arelhano , que ti. 
nha prifoneiro; e em recompenfa da 
fua fidelidade reítituio a Diogo Lopes: 
a honra, fama, e fazenda, de que o. 
privára o Rei D. Fernando, Outro. 
maior foi o da traiçaô intentada por 


224 Historia GERAL 


Era vale D. Pedro de Caftro , filho do Conde 
de Arrayolos , que guardava a pórta 
de Santo Agoftinho com huma trópa 
de Caftelhanos do partido antigo do 
meímo Rei D. Fernando , e ajuftou 
dar por ella entrada ao de Caftella, 
Joa Lourenço da Cunha , marido da 
Rainha D. Leonor , que foube efta 
conjuraçaô , quando eftava em artigo 
de morte , a revelou ao Regente, 
que ajuntou com a actividade de a 
difipar, a clemencia indifivel do per- 
dab , que deo a D. Pedro contra o 
clamor geral de todo o Povo. Sobre 
todos intoleravel era o cuidado de re- 
mediar a fome , que hia chegando a 
Cidade aos termos de fe perder. A 
efte perigo acodio Deos , que fendo 
fó quem da > € tira Imperios , neĝa 
occafiad nað quiz Portugal fugeito a 
dominio eftranho, e defendeo a nofla 
liberdade com os esforços do feu bra- 
ço, como fe hirá vendo no difcurfo 
defta narraçaô, ainda que contraida, 

Principiárad a picar no campo 
queixas contagiolas acceleradamente 
mortaes , que pozerad em confterna- 
| çaõ 


DE PORTUGAL, LIV. XX. 226 


“426 oRei, e os feus Generaes. Ellas Eta vulg; 


o obrigárad a tentar antes os meios 


“da negociaçaO , que os das armas, já 


prevendo que poderia reduzillo o mal 
a termos de levantar o fitio. O Re- 
gente nað querendo ter por indifferen- 
tes quaeíguer propoftas, fe difpôz pa- 
ra ouvir as que o Rei determinava 
mandar-lhe fazer. D, Pedro Fernandes 
de Velafco , Camareiro Mór, foi o 
nomeado pelo Rei de Caftella para efta 
commiflaô importante. Sahio o Re- 
gente da porta de Santa Catharina a 


“ouvillo ; e elle defenvolveo a perten- 


çaô do Rei feu Amo á nofla Coroa 
bem firmada no feu cafamento com a 
Rainha D. Brites. Propôzdhe, que fe 
quizefle abater as armas , ficaria com 
o governo do Reino aflociado de hum 
Fidalgo Caftelhano, que elle nomeaf- 
fe para effe efleito, Bem longe deftas 
idéas, o Principe refpondeo ao Depu- 
tado em termos vagos, e tad geraes, 
que nada fignificaflem. Derrotou a for- 
fa do calamento pela rotura , que O 
Rei fizera no feu Tratado ; de fórte 4 


“que Velafco teye de voltar come 


Ñ. P veio, 


Erá vulg. 


226 HISTORIA GERAL 


veio, fem negociaçaô , nem efperani 
a. | 
i Como nada refultou da conferen- 
cia, foi renovada a guerra ; e o Pin- 
cipe , que fe envergonhava , de que 
fe difefe no mundo , que elle nað 
fahia ao campo, e foffieffe os inful- 
tos dos Caftelhanos dentro dos mu- 
yos de Lisboa ; efcreveo a D. Nuno 
Alvares marchafle com a gente do feu 
partido fobre a reta-guarda dos inimi- 
gos, que elle ao meífmo tempo ata- 
caria pela vā-guarda , para em hum 
dia livrarem de tantas calamidades a 
Capital do Reino. Afim difcorriað os 
animos , quando o contagio tirando a 
vida aos Chéfes mais importantes do 
exercito , entre elles Velafco , Sar- 
miento , Caftanheda , o Conde de 
Mayorga, e o bravo Almirante Toar: 
o Principe de Navarra , cunhado do 


Rei de Caftella, lhe reprefentou nað 


tentafle a Deos, levantafle o fitio, é 
fe recolhefle a Caftella, antes que as 
fuas forças ficaflem fepultadas.nos cam- 
pos de Lisboa. A confutaô, ou a dor 
do Rei foi tað viva, que a defaflo- 
E -gou 


DE PORTUGAL, LIV. XX. 227 
gou em gemidos; o feu fentimento, 


ou a fua indignação rað grande, que 


a refpirou com o proteo de defejar 
vêr o aflento de Lisboa lavrado a fer» 
ros de arado. | 

A fua trifteza, e ofeu pejo tu- 
do o Rei quizera efconder em Santa» 
rem ; mas a efperança de dominar Por- 
tugal algum dia , o fez tirar a públie 
co por meio de muitas Cartas infi- 
nuantes , com que rogava aos Gover» 
nadores das Praças do feu partido fe 
mantiveflem nelle firmes, em quanto 
voltava a Caítella a reforçar-fe. Oc- 
cupado em fim do humor melancolico, 
que lhe agitavaô tantos efpeétaculos 
triftes , quantos encontrára em Portu» 
gal nað eíperados ; elle fe refolveo a 
fahir do Reino, aonde viera fer tefte- 
munha do deftroço das fuas armas ; 
fem confeguir nada digno de qualquer 
Capita6, quanto mais de hum Rei taô 
poderofo fobre hum Eftado tað fraco, 
ainda mais debil por dividido. Elle fe 
foi ; meditando , que já mais Princi- 
pe marchára tað abatido como elle 


Era vulg. 


nefta fahida de Portugal, A fua trifte- 


P ii za 


Era vulg. 


i 


228 Hisrortà GERAL | 


za defcoberta no rofto fe communis 
cava aos Grandes , que nað podiað 
efcufar-fe ao fentimento na perda dos 
parentes , e amigos :. fentimento dos 
brado pela companhia dos cadaveres, 
que levavaô embalfamados com fal 
para lhes darem fepultura nos jazigos 
dos feus Maiores. Nada fe via nefta 
retirada , fenað o ajuntamento nume- 
rofo de hum Reino grande, mais em 
tom de acompanhar hum enterro ce- 
remoniofo , que de conquiftar huma 
Coroa brilhante. 

Nefta figura chegou o Rei D. 
Joaô a Sevilha, aonde teve por con- 
veniente nað defabular a credulidade 
dos feus vafiallos com o ufo, que el- 
le dava ao titulo de Rei de Portugal. 
Para melhor os entreter foi provendo 
em Fidalgos Portuguezes os empre- 
gos , que do tempo do Rei D. Fer- 
nando eftavad vagos. Neftes exerci- 
cios , ainda que com mais de appa- 
rencia, que de entidade, D. Joaô de- 
faffogava o animo para o difpôr å 
continuaçaô dos feus projectos, quan- 
do fe lhe offereçefle occafiað mais opa 

ci Ee por- 


z$ 


DE PORTUGAL, LIv. Xx. 229 


portuna, Ora deixando nós do Rei de Eta wig. | 


Caftella luctando com as imaginações 
tries dos feus infortunios , levemos 
a memoria a lembrar-fẹ dos alvoro- 
gos plauíiveis de Lisboa. | 
Viaó os noflos dos muros, e nad 
entendiad os movimentos dos Cafte- 
lhanos no feu campo ao tempo , em 
que elles fe difpunhaõ para levantar o 
ftio. Na noite os ER sea o fo» 
go , que pozérad ao arrayal , e af- 
fuíftou a D.Nuno Alvares em Palme- 
la, entendendo que a Cidade fe abra- 
zava. Na manhã foi completo o gol- 
ta, quando os vimos pelas coftas em 
retirada vergonhofa, O Principe Re- 
gente traníportado de hum prazer res 
ligiofo , correo ao Templo feguido 
do Povo , para moftrar na acçaô de 
graças, que hia render ao Ceo , co- 
mo o levantamento do fitio era hum 
efleito menos da fya ambiçað. , e da 
fua gloria, que da fua piedade, e da 
fya efperança em Deos. Os Miniftros 
do Evangelho para nos perfuadirem a 
grande obrigaçaô , em que eftavamos 
ao Dominante Supremo dos ia 
| é- 


230 Historia GERAL 


Era vulg. déraó todo o tom de horribilidade ao 


riíco , em que eftivemos de fuppor- 
tar hum dominio eftranho : Delgra- 
ca , que elles reduzirad a eftado de 
muito mais odiofa , que nós naquelle 
tempo imaginavamos. O Povo con- 
fundia o gofto com os allaridos das 
feftas, e dos vivas, que entoavaô em 
igual ponto a clemencia do Regente, 
a fua fortuna , a fua gloria , o feu 
valor. 

O fidelifimo D. Nuno Alvares 
Pereira, impaciente por fe congratu- 
lar com o feu Principe , nað efperou 
que a Armada dos Caftelhanos fahiffe 
do rio para pafar a Lisboa. Elle fe 
embarcou em huma falva , e fe pôz 
furto na bocca do Montijo até horas 
de meia noite, donde partio a toda 
a força dos remos. Quando fe vio 
no meio da Efquadra inímiga man- 
dou aos feus trombetas , que tocaf- 
fem. Os Caftelhanos confufos fe pozé- 
rað em armas; e defcobrindo a falua, 
de todas as nãos fe perguntou quem 
paflava. Foi-lhe refpondido , que o 
Fronteiro do Alem-Téjo D, Nuno Al- 

Va- 


DE PORTUGAL , LIV. XX. 231 


vares Pereira. Como fe o éeco defte Era vulg. - 

nome fofle hum trovaô horrendo nos 

ouvidos dos Caftelhanos , todos de 

repente emudecêrad , e nað houve 

quem lhe impedifle a paffagem. Quan- 

do foi hora competente defembarcou , 

marchou em direitura. ao Paço , e 

dado avifo ao Principe , correo a re- 

cebello á falla , aonde lhe lançou os 

braços, e fe uniraô os corações, que > 

ligára o amor. | 
A vinda de D. Nuno foi acom- 

panhada das demonftrações da nota- 

vel inclinaçaô, que ao Regente mof- 

travad os Póvos na concurrencia de 

lhe oferecer cada qual quanto pofluia 

para os gaftos da guerra, fe ella con- 

tinuafle. Ea feliz difpofiçaõ a favor 

do Principe era hum caminho aberto 

para elle ir dando paflos á Coroa. D. 

Nuno aproveitou a occafiad para o 

perfuadir : Que fe os Portuguezes fe 

lhe uniaô por amor, que era jufto li- 

gallos mais com os vinculos da Reli- 

giaô no fagrado do juramento folem- 

ne de fidelidade, que eftimula os ho» 

mens a fazer-fe infeparaveis dos E 

O- 


232 Historia GERAL 


Kra vulg. Soberanos : Que em Lisboa eftavaĝ 
tantos honrados , que de neceflidade 


fe haviaô dividir pelos empregos do 
Reino ; outros ainda na muito fir- 
mes na confervaçaô do partido da li- 
berdade ; que a huns , e outros era 
jufto tellos afluítados com o temor 
de fer perjuros : que o meio de con- 
feguir efte projecto fem reparo, elle 
o entendia facil na propofta do mos 
do por que fe havia continuar a guer- 
ra; para o que convocafle a Nobre- 
za , e Povo , o Principe lha fizefle ; 
que elle entaS moveria o aflumpto do 


juramento , que fe lhe reprefentava. 


indifpenfavelmente neceflário. 

Sabia o Principe, que quanto D, 
Nuno fallava erað affeitos emanados 
de hum coraçaô candido; e convindo 
com elle, mandou convocar as gen- 
tes na Igreja de S. Domingos , aon- 
de lhes fez efta pathetica falla: Vós 
“Tabeis, Patricios amados , e compa- 
nheiros feis , que por morte do Rei 
D. Fernando Eu quiz deixar o campo 
livre aos pertendentes da Coroa , e 
embarcar«me para Inglaterra, até vêr 

i o 


DE PORTUGAL , Liv. XX. 233 


e eltado dos negocios do Reino : Vós Era wilg. 
mo impediftes temerofos de vos fu- 
geitar dominio eftranho: vós me vio- 
lentaftes a dar palavra de nað abando- 
nar a Patria : vós me rogaftes para 
acceitar o Governo até fe encherem 
as condições do contrato do cafamen- 
to do Rei de Caítella, com a Rainha 
D. Brites: Elle nað teve paciencia pas 
ra o efperar: Rompeo a fua ambiçaó 
no defacordo de faltar á fé de Sobe- 
rano na prifaôd de meus irmãos os Ín- - 
fantes D. Joaô , e D. Diniz , na de 
feu mefmo irmað o Conde de Gijon 
or fer cafado com huma filha do Rei 
- Fernando : Entrou no Reino ar- 
mado , e o tratou como inimigo: 
Vós o acabais de vêr no cerco, que 
pôz a efla Corte: Eu a defendi com 
a força do voflo braço : moftraftes , 
que fois Portuguezes: Elle deixou ene- 
tre nós partido grande , que nos deve . 
ter acautelados : Elle voltará no an- 
no futuro ao empenho , que forma na 
fua idéa fer o ponto mais eflencial da 
fua honra: Vós entendo eftares firmes 
em fuftentar o da liberdade, para a | 
N 





234 HISTORIA GERAL 


Era vulg. Eu offereço o fangue , e a vida: Chas 
mei-vos para vos dizer, que ha de con- 
tinuar a guerra, e que fó de vós de- 
pende arbitrar os meios para a fazer- 
mos vigorofa, 

D. Nuno Alvares Pereira tanto. 
que vio o paflo franco para avançar 
a fua idéa, foi o primeiro em fallar , 
e depois de tecer elogios correfpon- 
dentes ás boas intenções do Principe, 
accreífcentou : Que a primeira acçaã 
com precedencia a todas as outras , 
devia fer hum ado folemne feito no 
Senado da Camara, pelo qual jurafem 
fervir com fidelidade ao Principe tos 
dos os que o reconhecéraô Regente, 
e eftimavad Protetor : que para a 
refoluçaô dos mais negocios civis, e 
Militares , fe convocaffem Cortes pa- 
ya a Cidade de Coimbra no princi- 
pio da Primavera, aonde os Póvos do 
Reino tomariaô pelos feus Procura- 
dores as deliberações mais conformes 
à manutençad da liberdade. Applaufo 
univeríal mereceo a propofta de D. 
Nuno ; e deftinado o dia feis de Ou- 
tubro para o ado do juramento , é 


por 


DE PorTUGAL, LIV. XX. 235 


pafa lugar delle o Palacio da Alcace- Era vulg; 
va, com affiftencia de. muitos Prela- | 
dos , de muitos Fidalgos da Corte, 
e do Reino, e de hum concurfo nu- 
merofo , fe celebrou a ceremonia au- 
gufta, prefente o Principe debaixo de 
hum docel magnifico, que acceitou 
o juramento , e já com apparencias de 
Rei, todos lhe beijáraôd a mað. 
Coroou o Regente efle so com 
as avultadas, e copiofas mercês, que 
fez a todas as pefioas , que mais fe 
diftinguiraS na defenfa da Corte, pa- 
ra que os premios prefentes eftimu- 
laffem os efpiritos a obrar no futuro 
outras gentilezas , que os mereceflem. 
femelhantes. D. Nuno Alvares, que 
nað queria perder tempo , fe reco- 
lheo logo para Evora a difpôr os meios 
de fazer reípeitavel a fua Provincia. 
Elle deixou aconfelhado ao Principe, 
“que fahide de Lisboa em figura de 
quem hia picar a retaguarda dos Caf- 
telhanos, e perfeguillos na retirada, 
quando já elles iriaô chegando a Caf- 
tella ; porque de fe deixar ver afim 
às Praças contrarias , ou indifferen- 
tes» 


<- 


236 Historia GERAL 


Era vulg. tes, poderia trazer algumas à fua de- 


voçaô, como depois maftrárad os lucs 
cefios. | 


CAPITULO VII. 
“Das expedições que fe feguirad depois do 
“levantamento do fiia. de Lisboa, e - 


como foraô convocadas as Cor- 
tes de Coimbra, 


O PRINCIPE Regente na Eltremadus | 


ra, e D. Nuno Alvares Pereira no 
Alem-Téjo. nað. quizerað , que a Pa- 


tria os viffe ociofos.. Sahirað ambos | 


ao mefmo tempo a fugeitar algumas 
das Praças obedientes. a Caftella ; mas 
os primeiros paffos do Regente, que 
marchava huma noite a furprender 
Sintra com o Arcebifpo de Braga, © 
Conde de Neiva , foraô detidos por 
huma tormenta tað horrorofa , que O 
forçou a retirar fem profeguir na em- 
preza , que lhe era importante , por 
eftar Sintra tað vifinha de Lisboa, e 
a fultentar por Caftella o Conde de 
Cea D. Henrique Manoel. Q pezar 
que 


DE PORTUGAL, LIV. XX. 237 


que lhe caufou efte infortunio , bre- Era vulg. 
vemente o fuavilou com a reftaura- 
ção de Almada, que lhe abrio as por- 
tas , e moftrou o zelo , que tinha pe- 
= lo feu ferviço, agora preferido á con- 
fervaçaô de vinte refens honrados , 
que o Rei de Caftella levou da Villa 
por penhor da fua fidelidade. O Re- 
gente fez aos moradores as mercês s 
que merecia a delicadeza da que com 
elle uláraô no tempo do fitia, e nef- 
ta entrega; entað facrificando-fe a fi 
nos feus córpos ; agora offerecendo 
por vitima as almas nos refens dos 
filhos. 
- Elle fe fazia preítes para ir fobre 
Torres-Vedras , quando os paizanos 
de Alemquer o rogáraô quizefe em 
pefloa marchar áquella Villa, que el- 
les defejavad pôr na fua devoçaõ. Pa- 
ra nað ficar inutil a primeira re(olu- 
Gað , dividio a gente ; parte para O 
feguir a Alemquer ; outra parte para 
principiar o fitio de Torres ás ordens 
de Joað Fernandes Pacheco. Naó po- 
de Alemquer fer levada de furpreza 
com o favor da paizanage , porge 
| che- 


238 Historia GERAL 


Era vulg. chegáraó de dia os barcos, que cons 


duziaô a trópa do Regente, a que fe 
oppôz vigorofo o Alcaide Mór Vafco 
Pires de Camões. Fortificou-fe o Prin- 
cipe no campo , e mandou intimar 
a entrega ao Chéfe , que reípondeo 
com a defenfa gentil de leis femanas, 
em que fe deraô muitos , e viítofos 
combates. Em hum delles perdeo a 
vida com alentos generofos D. Af- 
fonfo Henriques , irmaô baflardo do 
Conde de Traftamara , que feu Pai 
o Infante D, Fradique tivéra da céle- 
bre Paloma , e naô deixou geraçaô, 
que pela honra de defcender de hum 
Infante , multiplicafle a vileza de tal 
Mai. i 
A força dos combates, e o aper- 
to da fede reduzírað o Camões a ca- 
pitular a entrega com os Artigos fe- 
guintes : Que lançaria do Caftello a 
guarniçaô Caftelhana , e elle o defen- 
deria pelo Regente em attençaõ a ter 
fido criatura do Rei D. Fernando , e 
eítar cafado com a filha de hum Fi- 
dalgo Portuguez: Que fe voltafle aa 
Reino a Rainha D. Leonor fem tras 
zer 


DE PORTUGAL, LIV. XX. 239 


zer Caftelhanos , poderia entregar- Era vulg. 
lhe a Villa, por fer pertencente aos 
feus Eftados : Que o Regente poria 
no Caftello guarniçao Portugueza , 
mas que o Alcaide Mór elegeria os 
Cabos. Com eftas clauífulas entregou 
entaô a Praça de Alemquer o Gallego 
Vafco Pires Camões forçado pela ne- 
ceflidade , com a intençaô perverti- 
da; mais facil a fer ingrato ao bene- 
ficio , que perder a conjuntura de fe 
moftrar officiofo a Caftella. 
De Alemquer marchou o Regens 
te para o fitio de Torres-Vedras , 
* que fe fez penofo pelo rigor do In- 
verno , que fobreveio. À Providencia 
que parece guardava no feu feio efta 
Reliquia do Santuario dos noflos Reis 
fidelifimos , a prefervou de hum fim 
defeftrado debaixo dos muros defta 
Praça. Ponderava o Rei de Caftella a 
pouca apparencia de lograr os feus 
defignios ; e como via a difficuldade 
de os confeguir por força das armas, 
refolveo-fe a tentallos por meio da 
perfidia , a todos os homens eftranha, 
em hum Rei abominavel. Para g ef- 
Eai ei- 


240 Historia GERAL 


Era vulg. feito, elle imagina o modo de arram- 
car do mundo o noffo Regente, que 
lhe formava o maior obítaculo ás fuas 
pertenções. Parecendo-lhe expediente 
feguro valer-fe do meímo traidor, 
que em Coimbra lhe quiz tirar a vi- 
da, e por fe falvar tomou o partido 
do Regente, agora o períuade a amon- 
toar as infamias, e que mate ao Pro- 
tector o homem refugiado , que quiz 
matar o feu mefmo Soberano. Efte 
era o Conde de Traítamara , entað af- 

“fiftente na Cidade do Porto, ao qual 
o Rei de Caítella efcreveo a Carta 
Seguinte: | | 
« Que elle devia lembrar-fe, que 
» além de vaflallo, era feu primo ir- 
» mað; duas razões, que o obrigavad 
» a fervillo contra os feus inimigos : 
» Que elle naô ignorava , como o 
» maior de todos era o Meftre de 
“à Aviz, que tinha a confiança de dif- 
» putar a fua mulher a pofle de Por- 
» tugal: Que fe efqueceria de tudo , 
» fe elle Conde quizefle matar o dito 
» Meftre, o que lhe feria facil por 
» elar eftimado confidente dos Por- 
» tu- 


DE PORTUGÁL, Liv. XX. 24T 


» tuguézes : Que. no múndo nað fe Era vulg. | 
» lhe podia fazer maior ferviço, que 
» executar efta morte, e por iffo os 
» premios feriad talhados pela medio 
» da da fua eftatura: Que fe aprefiafs 
» fe em abrir élta pórta para reenė 
$ trar na fua amizade , que lhe preb 
» parava: a maior fortuna, ; porque o 
s fublimaria ao primeiro homem de 
4 Hefpanha o Rei ; que nunca feriá 
%: ingrato para deixar 'de confefár ; 4 
» que ao Conde de Tratamara deviá 
» o Reino de Portugal, » Recebida ef- 
ta Carta; eiquecido “o Conde de quem 
era » arraftado das promeffas de hum 
Rei injufto ; lifongeado de 'vãs fpe» 
tanças, nað fe contenta fó comen? 
trar nas intenções do Rei de Caftetla; 
fenaS que aflegurando involver neltas 
aos feus amigos , e criaturas , o poem 
certo , em que nada mais falta que 
bufcar a occafiad pará executar o dez 
Henio.. 

+ - Sem perder tempo fahio ò` Cone 
de do Porto , è chegou ao campo cori 
femblante , de que vinha obfequiar o, 
Regente: ;. aflifindo-lhe ' no fitio de 

TOM. b. Q, Tor- 


+ 


942  Hisroria GERAL 


Era mig. . Torres. A alliança já contraida com Dr 
Brites de Caftro lhe facilitou commu- 
icar a feu irmaô D. Pedro de Catro, 
já traidor no fitio de Lisboa, e benis 
gnamente perdoado, como fica dito y 
as intenções com que feguia o Regen- 
te. Trouxe mais á fua facçaô a Joad 
Affonfo de Baeza , Gallego favorecido 
do Rei D. Fernando, e ao Afturiano 
Garcia Gonçalves de Baldez, que era 
alentado Cavalleiro , mui deftro no 
manejo dos cavallos. Eftes foraô og 
conjurados , que andavaó efperande 
conjuntura para a fua atrocidade, que 
fizeraô faber a Joað Duque , Alcaide 
Mór de Torres, por meio de efcritos 
mettidos nas fétas , que arrojavad à 
Praça, para eftar prevenido a recebel- 
los depois de a executarem. O Regen- 
te eftimava muito ao Baeza , que o. 
acompanhava , quando fahia ao campo 
a cavallo , e para moítrar deftreza , 
vinha de longe vibrando a lança até a 
apontar gos peitos do Principe, e en- 
tað com velocidade a, abatia, 
| Depois da conjuraçaõ praticava el. 
Ie eftas deftrezas com mais frequeo- 
E o CR 


Å. 


DE PORTUGAL, Liv. x$. 243 


tia., como enfaio , para`, quando ti- Ers: vulg? 
veffe occafia6 de eltar mais proximò 
da Praça , a metter-fe de véras, e fal- 
var-(e nella, O memoravel Fernando 
Alvares de Almeida , que depois: foi 
Ayo dos Infantes , fez-fe-lhe intolerás 
vel a repetencia deíte brinco do Bae» 
za, e-refoluto a impedilla na primeis 
ta conjunêtura , lhe cortou a carreii 
ra; com a fua lhe abateo a lança, dis 
gendo : Reportai-vos ; queiefte modo 
de infultar o meu Principe he inde- 
cente, e eu nað vo-lo-hei de confeno 
tir. Alvoroçou-fe a coníciencia culpa» 
da ; mas o Regente, que nada fabia 4 
os focegou.; e como aos traidores É 
fruftrou efla idéa , cuidáraS em inveno 
tar novos arbitrios. Elles: os tinha 
bem dilfpoRos ao tempo , que pelo 
cafo. fuccedido no Caftello de Gaya 3 
o Conde de Neiva, e Ayres Gonçal 
yes. de Figueiredo fe defgoflárað de 
modo, que p Regente fe neceflitou a 
mandallos prender por Vafco Martins 
de Mello , e remettellos para Evora, 
aonde eAiverad alguns annos. ` ` 
AD a o eae ad 


Qi A 


244 ' .Hisrokra GERAL TI 


ravus! i A, prifaG repentina de'taes -pefi 


oas: ,: ignorados os: motivos ; caufot 
tal: mede nos conjurados , que © Cone 
do de Traillamara fem acordo: fe: re> 
fúgiou-na Praça; o Baeza; e D. Pe. 
dno‘ de Caftro fugtraó para Santarem 3 
a:Baldez, que eftava na guarda: com 
Antad Vaíques :de Almada foi por. el- 
le. prefo ;-pofto a tormento, 'confef- 
fón , todas as:circunftancias da conju- 
raçaão e à vita da Praça fe lhe deo 
vivo: fogo: lenta:: O barbato: Alcaide 
Mór deipicou efte caftigo juíto ; rhana 
dando cortar as-mãos į, e os narizes à 
rd iprifioneiros , que tinha: noflos na 
ida. 5.. e: pendurados eftes ot 
da- impiedade ão pefcoço de hum:,. 
Mandou- ao campo com efte prefentes 
Os noflos o gratificárad, mettendo:os 
Caftelhanos: nos: inftrumentos de ara 
Fojar pedras , que qs'arrameçavaõ à mus 
ralha., aonde fe -e(magava6 : Brincosg 
em que fe. exercitava a cólera, quani 
do. fe devia dar lugar á. irai i- 
e nic Seguirad-fe a. eftes infortunios w 
grande invernada: _ que:fobreveio ,: & 
impedia as operações do fitio ; o def- 
A, A pras 


| 


DE PorTUGALs Lv. Six. eg 


prazer- de Vafco Pires: de Camões tor-: En'valgid 

nar a levantar-fe com:a Villa de Alem- 

quer: ; o ideígofto -de Affonlo : Lapes 

de Texeda x: Commandante. de Torresa 

Novas , com Diogo; Gomes Sarmieni 

to qug o era de Santarem., dorro» 

tarem huma partida nofla:, e: prendes 

yem o Meflre de Chrifto. D; Lopo 

Dias: de Soula , e. q Priat.do Grato 

Alvaro Gonçalves Camello : Motivos; 

que. obrigávad o Regente;a: levantar d 

fítio para ir ás Cortesde Goimbra.;' © 

preparar-(e para a ;jarnada , «em que a 

deixaremos occupado-;:-porque deves 

mos. referir os fucceflos de D. Nuno 

Alvares Pereyra no Alemi-Tejo., que 

principiando felices , pela inefma cons 

ginctyra. do tempo y: e «dos negocios 

foraó atalhados. ra O R 
Logo que D. Nuno chegou a Evos 

ra concebeo penfamentos de fé fazer 

fenhor dos Caítellos de Villa-Viçofa:s 

e. de Portel pelos terem por Caftella 

dous Fidalgos ingratos áo .Principe 

Regente .: na primeira Villa à Com- - 

mendador Mór Vaíco Porcalho ;:na 

fegunda Fernaó Gonçalves Pad = 

; å- 


toi. 


> t ' 
ivea (Oi 


246 Historia GERAL | 
Ersvulg. Havia em Portel hum Clerigo chaina- 

do Joaô Mattheus, que lofia impa- 
ciente a infidelidade da fua -Pátria ; e 
que a guarneceflem Caftelhanos. El- 
le fe refolveo a libertalla ; e tirando 
em cera o molde das chaves da porta 
principal, veio a Evora, é o offere- 
ceo à D.. Nuno para fe fazerem por 
elle nhvas chaves ; que levou, deixan- 
do -ajuítada 'a noite para a empreza. 
Foi grande:-o gofto do noflo Chéfe na 
offerta do meímo , que defejava ; e 
fahindo de Evora, foi efperar na Tor- 
ye dos Coelheiros a hora dê marchar 
occulto. Chegados ' a Portel, o Cle- 
rigo „que eftava á- lerta com Os feus 
amigos , abrio à porta, por onde en- 
trou D, Nuno com a fua gente; mas 
fendo fentido dos Caftelhanos , fe tra- 
vou hum difputado combate , que foi 
vencido, e ganhada a Villa. O Soufa 
entregou o Calello por ćapitulaçað 
falvas as vidas., e permittida a pafla- 
gem para Caftella. 

' Divulgou-fe efta noticia da fur- 
preza de Portel pela Provincia , e ella 
ez lembras em Villa-Viçofa o enga- 

no 


DE PORTUGAL, LIV. XX. . 247 


no de outra femelhante , traçada de Ers vulês 
modo, que nella infallivelmente hávia 
perecer D. Nuno, o objeto do odid 
éntranhavel de Porcalho, fe naquela 
noite o nað guardára a Providencia 
para depois lhe dar formofos dias. Fin- : 1% 
gio o perfido huma Cartá em nóme 
dė varios vifinhos , que pediaó a D, 
Nuno marchafle a tal horá á pórtá, 
da torre, aonde elles o efperávad pará . 
lhe dar entrada. Havia da torre à pórs 
ta hum pafladião com muitas fetei- 
rãs , por onde podiaô fer arrojadas 
grandes pedras , e aqui efperou Por- 
cálho os convidados bëm ptevenidu 
para os elmagar na entrada. Em quan: 
to a nofla gente fe apeava , adiantá: 
raó-le Fernaô Pereira , irmaô de D, | 
Nuno , com hum criado valetofo 4 & 
o célebre Alvaro Gonçalves Coitado 
para examinarem a entrada da'pórta, 
O Porcalho, que entendeo fer D. Nu- 
no, fez lançar tal tempeftade dé pés 
dras , que Ferùað Pereita , e o few 
criado ficárað logo mortos, e o Coi~¥ 
tado prifioneiro. Sentio D. Nuno à 
morte de feu irmaô, e como oi 

. n 


248 Historia GERAL! .. 


Ers valge nha forea para levar. a Praça. 4 efca- 


1385 


la vifa., contentou-fe com. mandar. 
pedir o cadaver de Fernad Pereira, 
ue veio enterrar no Convento de Sad 
Francifco de Eltremoz. | 
Em quanto no Alem-Téjo fucce- 
diaô eftas coulas , o r deter- 
minado a levantar o fitio de- Torres- 
Vedras , måndou antes, que O Arce- 
hþifpo , de Braga marchafie do. campo 
comi boa parte da gente a Coimbra 
para elle o feguir depois com o ref- 
A fem tanta oppreflaô dos Póvos. 
Tinha-fe feito. avifo, a D, Nuno Alva- 
yes para vir a Torres , e com a fya 
chegada fe determinou o dia quinze 
de Fevereiro para o da partida ás me- 
moraveis Cortes de Coimbra, aonde 
fe decidio o negocio, da noffa liberda-. 
de. Huma folemniffima procifaô com-. 
poíla do Cabido , Clero, e Religiões 
ahio a receber ao Principe em triun- 
fo, que fe fez mais plaufvel pela nu-- 
merofa multidad de meninos , que a 
precedia , fe indo os ares com eftas 
vozes fonóras : Portugal, Portugal 5: 


viva o noflo Rei D. Joaô + em boa 


ANDA hos 


DE PORTUGAL LIV. XX. 249 


hora venha o ngflo Rei. Como acon- Era vulg, 
tecimento. de: Evora: ao mefmo tem- 
po quiz Deos moftrar-nos , que: elle 
pozera eftas: palavras na boca das in- 
nocencias de Coimbra. Quando :ellus. 
afim davaô as:boas vindas ao futuro 
Ionarca , huma: menina; de pito me- 
zes » filha de Effevad Annes- Derrea-, 
do , que gftava:no feu berço em Evo-; 
ra + deitando .fára os bracinhos com, 
movimento: de alvoroço, diffe, em voz 
clara a todos perceptivel,: Portugal , 
Portugal por el: Rei D. Joa. E nað ' 
fallou mais. até ao- tempo habil da na- 
tureza, a que entað elevou a ordem. 
o feu Author Supremo. . 
- : Vieraô concorrendo a Coimbra 
os Tres Eítados . do Reino , que ha- 
viaô formar as Cortes , e fe achárað 
prefentes. pelo, Ecclefaftico dyze Pres 
lados ; grande quantidade de Nobreza, 
que todo, fe comprometieo em fetens 
ta e dous votos da'fua clafic; e pes 
la do Povo cincoenta., e hum Proca- 
radores, Antes de fe entrar nas Secs 
ções , todos -os Eltados conferi=::õ en- 
tre à, e uniformemente afientáras 


por 


250 Historia GERAL 


Era vulg. por baze a exclufiva total dos Reis dé 


Caftella á nofla Coroa. Depois fe de- 
terminou , que indifputavelmente fe 
havia proceder á eleiçaô de hum Prins 
cipe Portuguez , que reveítido da Di- 
nidade Real fe plantafle na téfta dø. 
feu Povo , lhe adminitraffe juflica, 
e o defendefle das invasões de feus: 
inimigos. Entráraô os partidarios a 
- defcobrir as fuas inclinações até enta6: 
rebuçadas no temor, ou na politica. 
D, Nooo Alvares Pereira, que fabia’ 
ufar da fegunda , e nað conhecia o 
primeiro, na frente dos Prelados , e 
da maior parte da Nobreza , fahio: 
por elles a campo, e abertamente fe: 


declarou pelo Meftre de Aviz. Mar-. 
tim Vaíques da Cunha, que pela fua’ 
qualidade fazia huma grande róda de’ 


parentes ; fuftentou com todos a voz 
do Infante D. Joað, prefo em Caftel- 
la, por fer filho legitimo do Rei D. 


Pedro , e de D. Ignez de Caftro ; o 


que fuppofto , nað fe devia entender 

o Throno vago. . | 
Outros entendiad , que a eleiçaã 

de Rei devia differir-fe , em razaô de 


+ 


e eae meo e dei apananta, 


DE PORTUGAL, LIV. XX.  2g1 


faltarem Procuradores das muitas Vil- Era wilg. - 
las , que eftavad por Catella : que 
entre tanto continuafle o Meftré na Re- 
gencia , até que os fucceflos podeflem 
melhor qualificar as refoluções. Po- 
rém efte partido , e o de D. Nuno 
Alvares nað toleravad, que fe propo- 
gefle para Rei em contrapofiçaô do 
de Caflella ao Infante D. Joa , que 
elle tinha prelo em feu poder. Elles 
diziaO , que por efte motivo valia 
` tanto a eleiçað de D. Joaô , como 
collocar no Throno huma fargada Ma- 
geftade : Que efte era o meio de fa- 
zer o Infante mais infeliz , ou pela 
perpetuidade da prifaô , ou pela vio- 
lencia de huma morte deshumana, 
que em. qualquer dos cafos deixava O 
Reino no mefmo , ou peior eftado. 
Os Procuradores de Lisboa defcarre- 
gavað hum golpe, que dava em que 
cuidar o reparo no protefto,. que fa- 
ziað , de que a fua Cidade , e Sena- 
do nað reconheceria outro Rei , fe- 
nað ao Meftre de Aviz. 
Efte Principe , por todas as fuas 
acções a titulo juto chamado de Boa 
me- 


252 Hisronia GERAL * -:: 


Era vulg. memoria , já mais quiz confentir ; 
que na fua prefença fe trataflem eftas: 
materias , para que o-reípeito della; 


nað perturbafle a liberdade dos que. 


tinhaô voto deliberativo. Elle fe fa. 


tisfez de compromettet todas as ra-: 
zões do feu direito á Eloquencia do. 
Doutor Joaô das Regras, Orador cé- 
lebre «. Jurifconfulto profundo., ho- 
mem excellente , dotado de arte, e. 


de força, bem vifto nas Leis,, de que. 


fe faberia valer para firmar na autho-; 


ridade dellas a precifaõ jufta de eleger. 


hum Rei, que defcendefle das Prin- 


cipes , que antes reináraô em Portu-, 


gal, Nós vamos a ouvir a fuftenta- 
çaô do Direito do Meftre de Aviz D. 
Joaô à Coroa de Portugal nefta ? 


.ORACAÖĞ 


Do Doutor Foað. das Regras” recita- 
da na primeira Secçaô das Cortes 
E de Coimbra. 


vp Fidalgos, honradas pef- 
foas , que infpiradas por Deos aqui 
vos 


DE PORTUGAL, Liv. XxX. 253 


vos ajuntaftes.; para com o feu foc- Em vulg.: 
corro tratarmos huma: -das materias 
mais importantes, que ‘tern fobre Nós 
attentos os olhos de todo o imundo : 
“Tratarínos: de huma guerra formida- 
vel , que nos ataca : refolvermos fe 
por morte do Rei D. Fernando , ul- 
timo. Varað. dos noflos Monaicis. pri- 
mitivos 4 ficou o Throno vago, fað 
os dous. pontos altos , que vós vin- 
des debater ; e fobre'que- eu efpero 
fagais a jaftiça de me ouvir. Eu nað 
rme contraivei fómente a elles para os 
feparar e difcorrer com 'divifað. Eu 
abraçarei em hum todo ; quanto vós 
defejareis advertir, e da producçaõ 
das minhas provas tirateis tað claras 
as deducções , que defterradas as dú- 
vidas » fique : facil conduzir-vos ao fim, 
para que vos congregaftes , fem o ef: 
crupulo de teres as decisões por mal 
penfadas pela falta de fer advertidos. 

:- A efes que entendem nað ferad 
válidas eftas Cortes, por nað afiftirem 
nellas. os: Procuradores: das Cidades, 
e Villas , que tomáraô o partido de 
Caflella : Eu devo fómente lembrar- 

{í ` lhes, 


2$4 . HISTORIA Gear 


Era vulg. lhes, que o Conclave he legitimo, è 
canonica a eleiçgað do Papa , ainda | 


que a ella nað eftejaô prefentes, nem 
votem todos os Cardeaes. | 

Que a Coroa efeja vaga , Nós 
© vemos , porque ninguem a poflue. 


' Por iflo a pertendem o Rei de Caf- . 


tella ; .fua mulher a Infante D. Bri- 
tes; os Infantes D. Joaô , e:D. Di- 


niz, pertendidos legitimos de el Rei, 


D. Pedro, e de D. Ignez de Caftro. 
Affecta o Rei de Caftella o fen direi- 
to por fer filho de D. Joana , e D. 
Fernando de D. Conftança, ambas fi- 
Jhas de D. Joað Manoel, Principe de 
Vilhena, e elles primos. com irmãos, 
Mas , Senhores, quem deu direito a 
D. Joað Manoel fobre a Coroa de 
Portugal ? Ainda que elle o tivefle, 
que juítiça confente , que a linha mu- 
lheril , na fucceflaó de hum Reino 5 
preceda á dos Varões;, que exitem 
-defcendentes dos que antes o pofluiad? 
Hum Reino tem a natureza de hum 
Morgado , e as Íucçelsões de ambos 
faô conformes. SE do à 


r + 


DE PORTUGAL, LIV. XX. 265 


o A Rainha D. Brites nos podia fa- Era vulg. 
ger efpecie , como filha do ultimo 
Rei D. Fernando. Mas vós nað def- 
* terrais todas. as imaginações , que ella 
vos póde caufar, pela conftante cer- 
teza de fer huma efpuria , nafcida de 
matrimonio nulo ? Vós ignorais , que 
a Rainha D. Leonor foi cafada com 
Joaô Lourenço da Cunha, de quem 
teve huma menina, que morreo logo, 
e a Alvaro da Cunha, que alli eftá 
prefente ? Vós nað fabeis , que ella 
enganou a el Rei D. Fernando ; dizen- 
do , que Alvaro da Cunha nað era feu 
filho ; mas da fua criada Elvira, e de 
Loupo Dias de Soufa: que Joa6 Lou- 
renço nunca a conhecêra , e que o 
Rei como enfeitiçado fe gabava , de 
que a achára virgem? Vós tendes al. 
guma dúvida ,. que Joad Lourenço da 
Cunha, outro dia morto em Lisboa , 
declarou á hora da morte, que Alva- 
ro da Cunha era feufilho, e que co« 
mo tal o deixou por herdeiro de to- 
dos os feus bens? Vós naó tendes hu- 
ma fciencia certa , que fem embargo 
de Joaô Lourenço fer parente 1 D. 

E eo- , 


256  HistoRIA'GERAL 

Era vulg.. Leonor em grão ri que elles 
foraô 'difpentados pela Sé Apoftolica * 
Difpenía y que teve em feu poder O 
Coide. velho tio de:D. Leonor, e que 
muitos dos que eftais prefentes a vik 

tes com os vefios'olhos? | 
* Nee cafo o, e confummado. k 
matrimonio ; nað podia: D. Leonof 
receber outro marido em vida do pris 
meiro ;:é por confeguencia he efpuria 
a Rainha D. Brites, filha de D. Fera 
nando. “Além difto , ella naõ póde her- 
dar: pela rotura: do “Tratado 'matrimos. 
nial. -qüe tem força de Lei. - Ella , e 
feu» márido: promettérad.., e jurárað 
nað- entrat armados:em Portugal, nem 
pertenderem a governo do: Reino, em 
quanto nað tiveílem filhos? que fazen 
do -o contrario perderiað:-o direito á 
herança; e fe: fugeitátağ a- taes penas. 
pecuniafias ., que. fe-houveffem de ap 
pagar , nad0 faria6:,: vendendo toda: 
Caitella duas vezes: Pois: qual he: de: 
vós o que:ignora, ''que.eltes Reis, 
antes de terem fuccefað , pertendérad» 
o: Governo: da nofi Monarquia ; ena 
tráraô nella cam. -maő armada ; e nos: 


Saca fia 


EE pi ci no OP y TS pas NI É 
- 


DE PORTUGAL, LIV. XX. 257 


fizeraô guerra tað cruel, como eftaõ Era vulg. 


mudamente publicando as mefmas pe- 
dras das noflas Praças? Depois deftas 
razões, ponderai fe priva, ou nað da 
fucceflaô de Portugal ferem os Reis 
de Caflella Scifmaticos, Fautores do 
Anti-Papa , e fentenciados como taes 
pela Santa Sé A poftolica. 

— Os Infantes D.Joad, e D. Diniz 
faô os voflous maiores obftaculos: vós 
por elles vos moftrais feníiveis; eu o 
creio , por que vejo em muitos de 
vós huma commoçad terna; mas ella 
nafce de huma preoccupaçao , que 
fendo defterrada , mudareis de fenti- 
mentos. Vós eflimais elles frutos pro- 
duzidos de hum matrimonio legitimo, 
He engano; que o Rei D. Pedro naô 
recebeo por mulher a D. Ignez de 
Caftro. Elle fim jurou o contrario; 
mas com providencia de quem tudo 
governa, que declarando o anno, dii- 
fe lhe naô lembrava o dia. Que fal- 
ta de memoria tað eftranha no nego- 
cio mais importante do homem! Qual 
de vós , os que vos ligalles com o 
matrimonio, fe efquece da dia do feu 


TOM. V. R IC- 


258 Historia GERAL 


Era vulg. recebimento ? Eltevad Lobato, que 


foi huma “das teftemunhas , que jurá- 
rað no Summario do Rei D, Pedro, 
dife , que elle fe recebêra no primei- 
to dia de Janeiro: O dia em que o 
anno principia : Dia de Felta taô fo- 
lemne , unida á do dia de voda , po- 
deria haver quem o rilcafle da me- 
moria? Em vida del Rei D. Affonfo, 
póde atteftar Diogo Lopes Pacheco, 
que me ouve , como mandando per- 
guntar por elle a feu filho fe eftava 
cafado com D. Ignez para a eftimar 
por fua nora ; e elle o negou conf- 
tantemente. 

Nem fe diga , que efta negaçaõS 
foi em D. Pedro temor reverencial; 
porque depois de lhe faltar o motivo 
para elle na morte de feu Pai ; de- 
pois de eflar reconhecido Rei, quan- 
do ninguem lhe podia obllar as fuas 
refoluções: Elle deixou pafiar mais de 
quatro annos fem fazer público o per- 
tendido recebimento de D. Ignez de 
Cafiro. Se o Reino ignora os moti- 
vos de el Rei D.Pedro dilatar tanto 
efta declaraçaô; eu vos faço faber a 


da ia 


— mm 


DE PORTUGAL, Liv. Xx. 259 


todos, que proveio delle applicar en- Era vulg. 


tað os officios mais fortes com o Pa- 
pa , para que lhe legitimafle os fi- > 
lhos; e porque o naô pode confeguir, 
rompeo a fua paixad em dar o annun- 
ciado juramento. 

Mas cafo negado, que D. Pedro 
recebefle a D. Ignez , o matrimonio 
era nullo por caufa do parenteíco dos 
contrahentes em grão prohibido. To- 
dos vós fabeis, que el Rei D. Pedro 
era neto de D. Sancho IV. de Caftel- 


“Ja, eD. Ignez. bifheta do mefmo Rei, 


filha de D. Pedro Fernandes de Caf- 
tro, primo em fegundo grão do Rei 
D. Pedro. Depois do parenteíco de 
confanguinidade , elles contrairaô o 
de affinidade , quando D. Ignez ele- 
vvu da pia bautifmal hum dos filhos 
do Infante. Efe acto pertende annular- 
fe com a razað frivola , de que D. 
Ignez nað fez tençað de fer Madri- 
nha. Efta efcufa ferá boa para o foro 
interno ; mas para o da Igreja, que 
he aquelle por onde fe deve julgar a 
validade do adto ; ella foi verdadeira 
Madrinha , e como tal deve fer jul. 

R ii ga- 


260 Hisroria GERAL 


Era vulg. gada. Neftes termos o noflo Throno 
eá vago , e os Principes, que tem 
direito a elle, todos faô baftardos. 

Os dous Infantes D. Joaô, e D. 
Diniz , ainda que foflem legitimados, 
“para nós feria duro confeflur-lhes a 
preferencia. Elles nað eftaô decahidos 
do direito à Coroa por fe terem re- 
fugiado em Caítella, e abandonado o 
Reino ? Elles nað tomárað as armas 
contra o feu Soberano , e nað fizerad 
hoflilidades fobre Nós , que confer- 
vamos a memoria bem freíca , vivo 
o refentimento, e a dor dos males , 
que elles caufárað à Patria? A que 
Portuguez naô he odiofo o Infante 
D. Joaô depois da morte barbara, 
que elle deo a fua primeira mulher 
D. Maria Telles de Menezes? Acçad 
indigna de hum Principe , que por 
dever manifeftar o caradter da Reli- 
giaô, e da honra, e conduzir-fe por 
modo contrario: ella fó baítava para 
dar a D. Joaô a exclufiva da Coroa. 
Acabou foaô das Regras de fallar a 
primeira vez, fem dizer palavra ref- 
peéiiva ao Principe Regente, ec o = 
| e 


DE PORTUGAL, LIV. XX. 261 


fé feguio à fua Oraçad, dará materia Era vulg, ` 
ao Capitulo feguinte. 


CAPITULO VIII. 


Continuaçaô das Cortes de Coimbra até 
. Jer acclamado Rei o Principe Rc- 
gente D. Joaô. 


Ev nað me metterei a decidir as 
vazões, por que hum efpirito tað illu- 
minado como o de Joaô das Regras, 
a quem nada do mais forte, e mais 
fubtil efcapou na fua Oraçaô vafa, 
que eu contrahi, deixou pallar huma 
prova de tanta importancia , como 
he a das Leis fundamentaes do Rei- 
no , promulgadas nas Cortes de La- 
mego , que o Rei Filippe II. tirou da 
Torre do Tombo, e levou para Caf- 
tella, nas quaes diz o Rei D. Affonio 
Henriques. « Se a Filha do Rei defpo- 
» far Principe , ou Senhor de huma 
» Naçaô eltrangeira, ella nað ferá re- 
» conhecida Rainha, porque Nós nað 
» querens, qu: os noflos Póvos fe- 
» jaô obrigados a obedecer a Rei, 

» que 


25% HISTORIA GERAL 


Era vulg: y que nað nafcer Portuguez. » Como 
quer que feja, a peroraçaô de Joad 
das Regras moveo a todos para darem 
huma exclufiva unanime às pertenções 
dos Reis de Caftella; julgarem a Joaõô 
Lourenço da Cunha por legitimo ma- 
rido de D. Leonor Telles, e ella por 
Amiga do Rei D. Fernando. | 

Mas os applaufos com que fe ce- 
lebrava a pureza , e força de razões , 
de que efle Orador eloquente fe fervi- 
ya, nað impediraô a Martim Vaíques 
da Cunha moftrar a fua impaciencia 
a reípeito da exclufad dos Infantes D. 
Joaô, e D. Diniz. A fua firmeza igua- 
lava a robuftez do feu genio , e a re- 
Gtidaô das fuas intenções. Elle fe le- 
vantou no meio da Aflembléa, e fa- 
zendo acçaô para fer ouvido , difle 
de hum tom forte: Nós devemos fa- 
zer a guerra a Caítella em nome do 
Infante prelo: o Regente, ainda que 

- illutre no fangue , diftinto pelo mere- 

cimento , relpeitavel pelo valor, nað 

hade fer preferido a feu irmaô , a 

quem a Coroa pertence: Nós nað po- 

demos paflar avante fem o ouvir, nem. 
to- 


DE PORTUGAL, LEIV. XX. 263 


tomar a fua fahida do Reino por hu- Era wilg. 
ma exclufiva do Throno. Que moti- 
vos, Senhores, o obrigáraõ a deixar 
å Patria? Aquelles que o direito con- 
cede a todos os homens; que foi el- 
capar-fe à cólera da Rainha D. Leo- 
nor. Bem inítruidos eftais , em que 
ella traçava a fua ruina , e que elle 
fem a retirada , nað podia efcufar a 
morte : Em fim , Senhores, vós po- 
dereis fazer o que quizeres; ele- 
ger Rei a quem vos parecer : Eu O 
fervirei : Eu o ajudarei a defender o 
Reino : Eu darei por elle a vida: 
Mas, que eu confinto, que o Regen- 
te feja Rei áface de feu irmað , ainda 
que prefo, eem Caftella , iflo nað di- 
rei eu nunca. | 

D. Nuno Alvares Pereira , que 
nað pode conter-fe fem atacar a Mar- 
tim Vafques com argumentos de fol- 
dado: Porque a Secçaô fe concluia fem 
ficar o Regente acclamado , veio ao 
Paço , e o achou fatisfeito pela boa 
intençaô de Martim Vafques para com 
o Infante D. Joað. D. Nuno , que 
nað podia tambem diflimular a fua 


pà- 


264 HISTORIA GERAL 


Era vulg. para com elle, lhe dife, que louva- 


va a dilataçaô do feu animo Real; 
mas que foubeffe, que nas Cortes nað 
havia outro contra elle para lhe emba- 
racar o fer Rei, fenað Martim Vaf- 
ques da Cunha: Que elle vinha pedir- 
lhe licença para o defpachar deprefla, 
antes que lhe fizefle mais ferviços. O 
Regente , que nas vozes, e no fem- 
blante eftava vendo o coraçaô de D. 
Nuno , com ternura amorofa , e ri- 
gorofo aperto lhe impedio fe embara- 
çafe com Martim Vaíques. Farei o 
que me mandais, refpondeo D. Nuno, 
fe elle nað fe moltrar foberbo ; que 
fe o fizer, como hei de eu acabar com 
o meu coraçao que o foffra ? 

Alguns diziaô, que Joaő das Re- 
gras nas fuas razões articulára coufas 
novas, que elles até entaô nað tinhaô 
ouvido, e dellas fe deviað dar próvas 
de convencer para elles fe deliberarem 
a votar. Por eila razaô tiverad com- 
miflaô do Corpo das Cortes os Bifpos 
de Evora, e do Porto para tirarem 
bum Summario de teftemunhas fobre 
aquelles factos , em que juráraô Dio- 

| go 


DE PORTUGAL, LIV. XX. 265 


go Lopes Pacheco, Vafco Martins Era volg. 
de Soufa , Vafco Pires Bocarro , e 
Gil Martins Cochofel, que ateftárað 
os cafos vulgarmente nað fabidos, que 
o Doutor Joaô das Regras articulára. 
Feita efta diligencia , fe procedeo a 
fegunda Aflembléa , aonde foi lido, 
e approvado o Summario, que tirárad 
os Bifpos , e depois tornou a orar 
Joað das Regras com ete fentido : 

| Senhores, naô ha homem algum 
no mundo, que deixe de fer obrigado 
a moftrar-fe parcialifta dos ditames in- 
“genuos da razaô. Efte movel univerfal 
foi o unico, que me compelio a pro- 
pôr-vos, quanto ella Aflembléa refpei- 
tavel já teve a bondade, e me fez a 
honra de ouvir. Naô baftou a minha 
verdade, a minha folidez, as próvas 
de convicçaõ para alguns de vós defter- 
rares as imaginações da legitimidade 
dos Infantes D. Joaô, e D. Diniz, que 
lhes confere o direito indifputavel á 
fucceffaô do Reino. Ora , Senhores, fa- 
bei, que em vida de feu Pai, o Infan- 
te D. Pedro ( Eu vos declaro o que 
nað quizera, mas eu devo fazello ) 

pero 


í 


266 Hisroria GERAL 


Era vulg. pertendeo difpenfa para calar com D. 
Ignez. Seu Pai o prevenio, efcrevendo 
com cautela ao Arcebiípo de Braga D. 
Gonçalo Pereira , que entaô ellava na 
Curia, para que divertifle o Papa de 
conceder ao Infante a graça , que pe- 
dia, que com efleito lhe foi negada. 

Depois de mortos o Rei D. Affon- 
fo, e D. Ignez de Caftro; D. Pedro, 
que fe entendia nað cafado, e baftardos 
feus filhos, defeiando habilitallos para 
herdarem a Coroa , mandou Giraldo 
Elteves á Curia follicitar do Papa Inno- 
cencio VI. a legitimaçaô dos Infantes, 
em que o Papa nað conveio. Pois fe 
o mefmo D. Pedro teve por invalido o 
feu cafamento com D. Ignez, e feus fi- 
lhos por illegitimos, a qual de Nós he 
licito negar tal verdade? Como os po- 
demos confiderar habeis para levarem 
a Coroa por herança? Como nað ha- 
vemos declarar o Throno vago, e ele- 
ger para elle hum Principe digno? 

Tambem devo defabufar aos que 
entendem, que ao cafamento de D. Pe- 
dro com D. Ignez precedeo difpenfa 
dos parenteícos, Nað houve mais dif- 

| pen- 


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DE PORTUGAL , LIV. XX. 267 


penfa, que aquella que impetrou D, Era vulg. 
Affonfo ao Papa Joaô XXII. para o In- 
fante D. Pedro cafar com alguma Se- 
nhora {fua parenta. Euvos corro o vea 
a ee myíterio. A tal difpenfa fervie 
para o cafamento do Infante com D. 
Branca. Quando depois em virtude da 
mefma recebeo a D. Conftança, foi taô 
picante o efcrupulo do Arcebiípo de 
Braga, que nað quiz afhiftir ás bençãos 
matrimoniaes. Do remorfo do Arcebif- 
po nafceo o da confciencia de D. Pe- 
dro para nað ter por válido o terceiro 
cafamento , para o qual nað tinha mais 
difpenfa que a primeira. Por iflo elle 
a pedio depois, enaô alogrou; inf- 
tou pela legitimaçao dos filhos, e 
nað a confeguio. Aqui tendes nefte 
pergaminho a inftrucçaô Real, que D. 
Pedro deo ao Embaixador, aflignada 
por Gomes Paes de Azevedo , e por 
Metftre Affonfo, ambos do feu Con- 
lho: Vede-a , examinai-a, conferi-a, 
e vos defenganareis, que D. Joaô, e 
D. Diniz faô dous baftardos. 

Com efte difcurfo intrépido , fa- 
canhofo , arrojado , Joaô das Regras 

der- 


268 Hisroria GERAL 


Era vulg. derrotou entaô a verdade conftante da 
legitimidade dos dous Infantes. Como 
fentio toda a Aflembléa aballada, es- 
forçou o punho , apertou a efpada , 
e com golpes de Eloquencia para to- 
dos os lados, fez valer fobre todos o 
merecimento do Meftre de Aviz Re- 
gente `; entendendo talvez lhe bafta- 
vað dous intrumentos ; a fua lingua 
lo lhe dar a Coroa; a efpada de D. 

uno Alvares Pereira para a fuftene 
tar. Esforçou-fe mais a fua dexteri- 
dade depois que toda a Aflembléa, 
entrando Martim Vaíques da Cunha 
com o feu partido, aflignou hum acto 
folemne de Cortes, em que fe declara- 
vas que o Throno eftava vago , e que 
"os Eftados do Reino podiaô livremente 
eleger hum Rei, que os governafle. Fir- 
mado , e lido ete Decreto de decifad 
fobre o ponto mais eflencial, o Dou- 
tor Joaô das Regras com efpirito conf- 
tante, e voz mais firme , afim con- 
tinuou o feu Difcurío. 

Pois, Senhores, Nós temos a elei- 
çað livre; mas o Reino he heredita- 
rio, e a Coroa deve paflar a hum 

Prin- 


DE PORTUGAL, Liv. XX. 269 


Principe do fangue Real. Já Nós dé- Era vulg. 


mos a Regencia ao Meftre de Aviz. 
Agora quem nos impede a cingir-lhe a 
Coroa ? Além das vantagens do feu 
nafcimento auguíto , elle poflue as de 
grande Capitaô , de fábio Governador, 
de que elle tem dado tantas próvas 
inconteftaveis na defenfa, e na admi- 
niftraçaô do Reino depois da morte 
de D. Fernando até agora, Em vað fe 
nota a efte Principe nað fer legitimo : 
Defeito, que comprehende a todos 
os que fad pertendentes á nofia Co. 
yoa, Elle defeito elle nað o tem fe. 
Jizmente reparado na fua Pefloa por 
huma virtude verdadeiramente real ? 
Elle nað o faz brilhar por huma co. 
rage geralmente reconhecida por ine 
vencivel ? Elle nað o caragteriza lumi- 
nofo por hum grande número de qua. 
Jidades eminentes., de que Nós todos 
fomos teftemunhas irreprehenhveis ? 
Os ferviços que elle tem feito ao El- 
tado faô tað grandes , e tað conhde. 
raveis, que eu nað fei poflaô ter ou- 
tra recompenfa , fenað a Coroa. Elle 
he hum Principe taô digno de a levar, 

; ÇOs 


270 Historia GERAL 


Era vulg. como tem fido capaz de a defender. 
Efta fó razaô he baftante para nos de- 
terminar a todos a acclamallo. 

Senhores, Nós neceflitamos hum 
Rei para a guerra , que nos he ine- 
vitavel , e devemos fuftentar fe que- 
remos liberdade : Fium Rei do cara- 
Ger do Regente , que fabe governar 
em Principe prudente, féro ,, genero- 
fo, e magnanimo : Hum Rei como 
elle, forte na guerra , fabio na paz ; 
nað hum fraco , hum indeterminado 5 
como D. Sancho II., que o Povo de- 
tronou por caufa da fua infufciencia , 
e pôz a feu irmaô em feu lugar: 
Hum Rei incanfavel na applicaçaô 
como elle; nað outro , que imite os 
princípios do governo de D. Aflonfo 
IV., que fe nað fe moderára na pre- 
ferencia, que dava aos divertimentos 
da pefloa fobre os cuidados do Efta- 
do , elle teria o meímo deftino de 
D. Sancho. O Meftre Regente tem 
huma qualidade para reinar , que naô 
fe encontrará em outro Principe. Elle 
conhece a fundo o genio dos Portu- 
guezes, e fabe a lingua popular : Qpa 


DE PORTUGAL , Liv. XX. 271 


lidade neceflaria em hum Soberano, 
que ha de dar audiencia aos feus Pó- 
vos, e mandar os feus foldados. Que 
gloria para Nós a de elegermos hum 
Rei naícido entre nós ; da nofla Na- 
çaô; do noflo Paiz; que falla a nofla 
lingua; que more em Lisboa, donde a 
cada inftante faiað as ordens para o 
reto dos Eftados ! 

E quanto merece o noflo Prin- 
cipe pela fua modeflia incomparavel ! 
Aqui elað prefentes muitos, que di- 
gendo-lhe depois da abertura deftas 
Cortes , que elle poderia fer Rei, 
reífpondeo cheio daquella equidade 
natural, que já mais delmentio: Que 
tinha irmãos, aos quaes a Coroa per- 
tencia mais juftamente , que a elle, 
que era baftardo, e os Infantes legiti- 
mos : Que naô intentava aproveitar-(e 
da fua aufencia , e fazer-le juítiça da 
iniquidade com que o Rei de Caítel- 
la os detinha , para lhes tirar o Thro- 
no, que lhes tocava : Que bem lon- 
ge de fe fazer merecedor defta repre- 
henf:O, a troco da mefma vida, el- 
Je defejava contribuir para o benefie 

cio 


Era vulg: 


272 Historia GERAL 


Era vulg. cio da fua liberdade , e reconhecellos 
por feus Soberanos, e feus Senhores ; 
Que em quanto elles nað voltav:ô ao 
Reino, fe fazia hum merecimento fu- 
blime de o defender em feu nome, 
fem mais titulo, que o de Regente : 
Que a elle lhe faltavaô todas as qua- 
lidades neceflarias para reinar ; para 
refponder ao fino amor , que devia 
aos Portuguezes ; para fer grato ao 
reconhecimento da grande opiniaõ , 
que a Patria tinha concebido delle. 

Com tanto ardor, e modos tað 
infinuantes, com tal forca de termos, 
e nobreza de imagens proferia Joað 
das Regras efte Dilcurlo pathetico, 
que a commoçaô da Aflembléa já pa- 
recia , que nað tolerava a retardaçaôO 
de fer proclamado Rei de Portugal D. 
Joaô , Meftre de Aviz, como defcen- 
dente dos feus antigos Monarcas. Af- 
fim ficou determinado nefta Aflem- 
bléa feliz , fem dúvida, ou difcrepan- 
cia de hum fó voto. O Povo de Coim- 
bra , que o percebeo , antes que os 
Heraldos fizefem a ceremonia da pu- 
blicaçaô , elle fahia em viftofo tu- 

mul- 


paid On 


"Te a 


= NRO 2. w o a 


 DEPoRTUGAL, Liv. XX. 273 


multo a 'moftrar o feu prazer inex- 
licavel no clamor repetido : Viva D. 
Tous I. Rei de Portugal: ` Tudo effeitos 
da bondade com que o Principe ti- 
nha cativado o efpiritos, ainda osdo 
partido contrario , para que a naõ 
houvefle hum fó, que deixafle de fa- 
zer communs o goíto, e o applauío, 





TOMV. $ LI-` 


Era vulg. 


L 


HHHHHHHHH 


LIVRO XXI 
Da Hifloria Moderna de Portugal, 


CAPITULO I. 


Acclamaças do Rei D. Joad I. chama- 
do de Boa Memoria , X. Rei de 
Portugal, 


Era vulg. Fa geral a complacencła da Naçað 


Portugueza “pelo fim do, Interregno , 
que fe lhe fazia fenfivel : pelo defcof- 
tume, e uniterfal o solto por vêr na 
fua téfta hum Rei Portuguez. Tomá- 
rað as Cortes de Coimbra a refoluçaõd, 
que acabo de referir, de elegerem 
or Soberano de Portugal a D. Joað 
ere de Aviz. Era o dia de quinta 
feira feis de Abril do anno de 1385 
nos noflos Faftos fempre memoravel 
pela liberdade , e pela gloria, quan- 
do aquelle corpo veneravel veio ao Pa- 
ço de Coimbra , e deo parte ao Prin- 
E 3 — gi- 


y 
i 


DE PORTUGAL, LIV. XXI. 278 


cipe Regente , que Elle o havia no» Pra wig. 
meado , e eleito Rei. Sem alteraçaS de 
animo , e de rofto ouvio a nova da 
felicidade , que tanto defejað , e arral- 
ta os mortaes a tantos exceflos, pa- 
ra que o feu focego fofle a próva mais 
catholica da finceridade , com que rel- 
pondeo á congatulaçaô das Cortes ; 

` Que elle lhe agradecia as fuas 
boas intenções , de que em todo o 
tempo daria aos Eftados as eviden- 
cias mais fignificantes do feu reconhe- 
cimento ; mas que nað podia accei- 
tar o cargo, que lhe conferiad : Que 
elle nað ignorava o defeito com que 
naícéra, e que a todos era pública a 
prohflao , que feguia , e o inhabilitas 
va para deixar depois delle Succeflor 
á Coroa : Que na mefma guerra com 
Caftella , impoflivel de nað continuar 
vígorofa, encontrava elle humas taes 
delicadezas , que deviað obftar-lhe a 
condefcender com a vontade dos Ef- 
tados ; porque a fortuna das armas era 
jornaleira , e que fe elle yencefle, ou 
ficale vencido do Rei de Caftella ; 
Lendo vencido no eítado de Rei, o ti- 

Sii nha 


276 Historia GERAL 


Era vulg. nha por injuriofo ; fendo vencedor na 


condiçaô de Regente, o eftimaria pe- 
la maior gloria : Razaô , que o eki- 
-mulava a efperar a gloria, e evitar a 
injuria : Que fe refolvefem a cuidar 
nos meios para a guerra, e fufpendef- 
fem por entaô quaeíquer outras quali- 
dades de negocios. 

Suftentáraô-fe fortes: os Eftados 
em manter a eleiçaô, aque elle nad 
fe devia elcular , quando era credito 
da Patria oppor hum Rei a outro Rei, 
que vencedor, ou vencido fempre fi- 
cava gloriofo no motivo, que era O 
da liberdade : Que em quanto ao im- 
pedimento dos votos para cafar , fe 
pediriaô delles difpenfa, em que nað 
podia haver duvida, por fer a caufa 
tað juftificada. Em fim as inftancias 
dos Eftados, efpecialmente do popu- 
lar., foraô taô vivas, que o Principe 
teve de aceitar a Dignidade, e aMftir 
em publico com todas as Devifas de 
Rei ao Pontifical, que celebrou o Bif- 
po de Lamego na Sé de Coimbra. Na 
tarde do mefmo dia o Corpo das Cor- 
tes mandou lavrar em nome de todas. 

E as 





DE PORTUGAL, LIV. XXI. 277 


as pefloas congregadas, que as forma- Eta vulg; 
vað , huma Efcritura publica para me- 
moria delfta grande acçaôd, que livra- 
va a Patria do cativeiro, que temia, 
e que para a confervarem livre , de- 
terminavad expor-fe ao furor do Rei 
mais poderofo das Hefpanhas , coma 
zelofos Portuguezes , em todos os fe- 
culos fieis aos interefles publicos da 
Monarquia. po É & 
Quanto. até aqui fica referido nef- 
ta Hiftoria , moftra com evidencia, 
que os negocios de Portugal nað efta- 
vað em huma tal fituaçaô de tranquil- 
lidade , que fe houvefle de gafar o 
tempo nos feítejos públicos , que fe 
coftumaõd feguir a huma dominaçaS 
nova. Primeiro que eftas demonttra- 
ções externas do alvoroço dos ani- 
mos , eftava o cuidar na fegurança 
do Rei eleito no Throno pouco fir- 
me , e cobrillo ás pertenções injuftas 
dos feus inimigos , dos feus concur- 
rentes , de nað poucos invejoíos, Eli 
tes feriaô os. motivos porque o efpiri- 
to illuminado do novo Monarca impe- 
dio em Coimbra os excefios, em que 
roms . 


278 Hisroria GERAL 


Era wulg. rompe o gofto, eque com a fua pef-: 
foa fe ufaflem as ceremonias da inau- 
guraçaôd , que antes fe pradicavad š 
efperando ver o Reino vencedor para 
elle entaô fe eftimar Rei. À todos deo 
elle exemplo , nað perdendo inftan- 
tes, de que a fi mefmo fe podeffe ar- 
guir , fe dilatafle a nomeaçaô de Of- 
ficiaes para a fua cafa ; de comman- 
dantes para as trópas, e para as Pra- 
ças, que haviaô variado de fidelidade 
no tempo da fua Regencia. | 

Nað deixou o Rei paflar o dia da 
fua acclamaçaó, fem que os feus vaf- 
fallos ouviffem, que elle nomeára pa- 
ra Mordomo Mór da fua cafa, e Con- 
deftavel do Reino ao Grande D. Nu- 
no Alvares Pereira , que nos movi- 
mentos do Interregno já mais defmen- 
tira hum ponto da inclinaçaô aos feus 
intereíles , que acabára de qualificar 
nas prefentes Cortes. Nomeou para 
Camareiro Mór a [oaô Rodrigues de 
Sá ; para Repofteiro Mór a Pedro 
Lourenço de Tavora ; para Copeiro 
Mór a Joaô Gomes da Silva ; para 
Guarda Mór a Joaô Fernandes Pache- 

7 co; 


DE PORTUGAL , LIV. XXI. 2979 


có; para Veador a Fernando Alvares Era vulgi 
de Almeida, com o officio de Clavei- 
ro Mór de Aviz; para Monteiro Mór 
a Lopo Vaíques de Caftello-Branco ; 
para Falcoeiro Mór a Joaô Gongal- 
ves; para Porteiro Mór a Lourenço 
Annes; para Eftribeiro Mór a Garcia 
Aflonfo ; para Apofentador Mór a 
Payo Lourenço; para Efcrivað da Pu- 
ridade a Affonfo Martins ; para Ef- 
crivaô da fua Camara aGomes Lou- 
yenço de Gomide; para Meftre-Sala a 
Egas Coelho; para Paceiro a Affon- 
fo Gonçalves; para Saquiteiro a Joað 
Rodrigues; para Efcrivaô da Chancel- 
laria do Reino a Gonçalo Pires Mas 
lafaya ; para Meirinho Mór a Joaô 
Freire de Andrade; para Védores da: 
Fazenda a Joaó Aflonfo de Alemquery 
ea Alvaro Gonçalves de Freitas, com 
todos os mais empregos menores da 
Cafa Real. 

Q célebre Joaô das Regras foi 
criado Chanceller Mór do Reino : Car- 
g0, que mais era recompenfa devida 
á habilidade profunda defte Magiftra- 
do , que teftemunho grato do ve 

y nhe- 


280 HISTORIA GERAL 


Era vulg. nhecimento do Rei. De todas as Di~ 
gnidades , que elle tinha á fua difpo- 
fiçaô, para fi nað refervou mais, que 
a de Meltre da Ordem de Aviz. Para 
o Commandamento do exercito, de- 
pois do Condeftavel D. Nuno , no- 
meou para Marichal a Alvaro Perei- 
ra; para Alferes Mór a Gil Vafques 
da Cunha; para Capitað Mór do mar 
a Affonfo Furtado de Mendoça ; pa- 
ra -Almirante a Manoel Peçanha; pa- 
ra Anadel Mór dos béfteiros de caval- 
lo a Alvaro Annes de Cernache , e 
dos de pé a Eftevað Vafques Filippe. 
Depois deftas promoções feitas com 
confentimento dos Eftados, elles per- 
fuadiraô ao Rei criafle hum Confelho 
ambulante , que o acompanhafle nas 
fuas jornadas , do qual o Doutor Joað 
das Regras foi eleito Chéfe. Naô fe 
eífqueceo o Rei do fervor com que 
Martim Vafques da Cunha promovê- 
ra os interefles do Infante D. Joað , 
e o remunerou com a nomeaçaô de 
hum dos feus Confelheiros, para-mof- 
trar, que elle eftimava nos homens, 
nað as paixões fem difcernimento ; 

a. mas 


DE PORTUGAL, Liv. XXI. 281 


mas a equidade, e juítiça das fuas in- Era vulg. 


tenções. 

Grandes foraô as vantagens, que 
tirárad os Portuguezes de reconhece- 
rem efte Rei na fituaçaô mais critica 
dos feus negocios. Quando nað fe déf- 
fe outra , ballava ficarem os faccio- 
narios de Caítella , e as criaturas da 
Rainha D. Leonor fora de eftado de 
inquietar o Governo ; fem relações 
com a Corte, nem cabeças no Rei- 
no; que houveflem de fuftentar os el- 
piritos da revolta. Bem o moftrou, 
como eu o difcorro , a agitaçað dos 
Póvos, que depois de receberem com 
o maior alvoroço a noticia da accla- 
maçaô do novo Rei, todos pelos feus 
Emiflarios recorrêraôd a Coimbra, já 
como fonte da eftabilidade da fua for- 
tuna, para fó da peflvua do Soberano 
receberem as ordens, e as mercês. 

Foraô muitas as que o Rei fez 
aos Lugares , que fempre feguirad a 
fua voz. Lisboa, que fobre todos fe 
diftinguíra , e agora dava novas pró- 
vas do feu fervor nas bem ponderadas 
lembranças , que lhe propunha para a 

con- 


282 Historia GERAL 


Era vulg. confervaçaS futura : Elle a iltuftrou: 
com o titulo de Corte, e de Refiden-: 


cia ordinaria dos Soberanos ; que nel- 
la aMftifem os Tribunaes Supremos 
para prompta expediçaô dos negocios 
refpectivos às economias do Eítada. 
Entre outras graças concedidas aos 
mais Póvos, fez geral a que elles lhe 
pedíraô , na aboliçaô das Cartas de ca- 
famento , que antes coltumavaõ pal- 


far os Reis, efpecialmente D. Fernan- 


do , em virtude das quaes as filhas 
erað tiradas de cafa de feus Pais , e 
cafadas contra fua vontade , ordina- 
riamente com pefloas defiguaes : Idéa 
perniciofa , que abatia as familias, 
que já erað , para exaltar as que ha- 
viað fer. 

Confiderava-fe o Rei D. Joað na 
idade robufta de vinte e fete annos , 


apto para fopportar o trabalho de hum: 


Governo tað pefado, como era o do 
Reino , que os Póvos acabavaô de 
lhe conferir. Como as fuas primeiras 


acções já lhe tinhaó dado entrada até 


ao veítibulo do Templo da Honra ; 


elle queria fobir mais alto com paf- 


fos 


DE PORTUGAL, Liv. XXI. 283 


fos mais firmes. Para fe prevenir fem Era vulg. 
perder tempo, deípedio os Procura- 
dores, que vierad ás Cortes; e por- 
que antes de voltar de Coimbra a Lis- 
boa queria emprehender algumas ac- 
ções, que moftraflem naô eftava nel- 
le ociofa a Coroa: Difcorreo , que 
todas as Praças do Reino nað tinhad 
feguido o exemplo da Capital, e ha- 
via algumas, aonde os feus habitado- 
res fomentavad o efpirito de rebelliad 
entre fi. Elle eftimou por chéfe acçað 
digna da Mageftade nað differir a ef- 
tes revoltofos o fazer-lhes conhecer 
pela força, e pelas armas quaes erað 
os feus deveres, ou para lhes dar lu- 
gar de fe arrependerem, ou para el- 
le juítificar os motivos de os caftigar, 
já benigno, e já fevéro. 

Para efte effeito refolveo ir em 
peffoa á Cidade do Porto, e para dar 
calor 4 empreza de fubmetter as Vil- 
las de Entre-Douro e Minho, que ef- 
tavad por Caítella , e fazer conduzir 
mantimentos deftas Provincias para 
Lisboa, que em fi, e nos feus redo- 
yes padecia grande falta pelos eftra- 

6053 


cat 


284 Hisroria GERAL 


Era vulg. gos » que caufárad os inimigos nos 


eus campos na campanha paflada. El- 
le fe preparou para efta jornada com 
a mercê da aboliçaô das fizas por to- 
do o Reino : Declarando, que para 
os gaftos da guerra queria receber dos 
feus vaffallos os donativos gratuitos , 
com que fabia lhe nað haviaõ faltar , 
como elle acabava de experimentar 
no avultado , que lhe fornecêrad as 
Cortes de Coimbra. O noflo Fernað 
Lopes trata com extenfaô os applau- 
fos , as feítlas em mar, e terra, a 
magnificencia da pompa , o alvoroça 
dos corações , com que o Rei D, 
Joaõ foi recebido na fua fiel Cidade 
do Porto, que tinha dado tantas pró- 
vas de zelo no feu ferviço ; agora do- 
brado , porque já o via Rei. 

Nefta Cidade lhe beijou a mað 
D. Leonor de Alvim, mulher do 
Condeftavel D. Nuno Alvares Perei- 
ra, e o Rei para lhe moftrar a diflin- 
ça , que fazia de feu marido , lhe 
remunerou o obfequio com a mercê 
do fenhorio das terras de Barrofo , 
do Caftello de Monte-Alegre e 

[em 


co o "o tão Gm 


DE PORTUGAL, Liv. XXI. 285 


Reguengo de Bafto , dos Campos de Era vulg, 


Boilhe, e de Pena, com todas as fuas 
juriídicções , e direitos. Da fua parte 
o Condeftavel , tanto nað quiz de- 
morar o reconhecimento ao feu Prin- 
cipe , que como determinava ir pedir 
os foccorros do Ceo ao fepulchro de 
Sant-Iago em Galliza para entrar nos 
perigos da guerra, que efperava: Re- 
folveo fazer a jornada de modo, que 
della recolhefle fructos o real ferviço. 
Impediraó-lhe as correntes do Minho, 
e a falta de barcos a paflagem para a. 
fua gente ; e a entrada em Galliza; 
mas na Provincia fe lançou fobre o 
Caftello de Neiva, que eflava por 
Caftella, e levou de aflalto com mor- 
te do feu Alcaide Mór. Com a mefma 
felicidade tomou a Villa de Viana, 
que elle teve por comprada a preço 
caro, porque huma pedra arrojada do 


“muro lhe matou hum bravo aventu- 


reiro, a que a Hiftoria nað dá nome, 
nem tece outro elogio , que o de di- 
zer era o homem mais valente das 
Hefpanhas. O eftrondo deftas conquif- 
tas feitas fobre a marcha, lhe abrio 
as 


286 Hisroria GERAL 


Era vulg. as portas de Villa-Nova de Cerveira, 
MonçaS , Caminha, e outros Luga- 
res daquelles contornos. 

Ainda que eftes golpes devia6 in- 
timidar as outras Praças , que eftavaôd | 
na fugeiçaô de Caftella; Braga, Pon- 
te de Lima , e Guimarães os tiverad 
por paflageiros , e fe preveniaô para 
nos refiftir. 'A melma razaô das con- 

~ quiftas do Condeftavel na Provincia, 
` eda affiftencia do Rei na Cidade do 
Porto, foi a materia, de quê fe fer- 
vio Ayres Gomes da Silva , Alcaide 
Mór de Guimarães , para fazer huma 
defenfa vigorofa em obfequio ao Rei 
de Caftella. Viviað entao na Praça 
Affonfo Lourenço de Carvalho, Fidal- 
go rico, e feu cunhado Payo Rodri- 
gues, que nað podiaô occultar a fua 
inclinaçað ao novo Rei , e por ella 
defcahiraô tanto do Alcaide Mór, que 
naő lhes confentia o ufo das armas , 
nem fahirem de cafa acompanhados 
dos feus criados. Soube o Arcebifpo 
de Braga o defgofto deftes dous Fi- 
dalgos com o Commandante , e infi- 
puou a el Rei, que elcreveíle a ap 
o 


DE PORTUGAL , LIV. XXI. 287 


fo para lhe vir fallar fóta de Guima- Era vulg. 


sães em alguma das fuas quintas ; que 
lhe feria facil, hum homem de tan- 
to valor com feus parentes , dar-lhe 


“entrada em Guimarães. Aflim o fez 


el Rei , que fahio do Porto , como 
RR hia á caça, e ajutou com Af- 
onfo Lourenço o modo, a noite, e 
a hora de o fazer Senhor daquella im- 
portante Praça. | 

Como Aftonfo Lourenço tinha a 
liberdade de ir , e vir às fuas fazen- 
das , com tanto que andafle fó; na 
tarde do dia premeditado para a em- 
preza, difle ao guarda de huma das 
portas , que villa a indecencia com 
que o Alcaide Mór o tratava de lhe 
naô permittir o fervifle hum criado ; 
que o acompanhafle elle até fóra , e fi- 
cafle advertido para que na madruga- 
da feguinte , quando feu cunhado o 
avifafle , lhe abrifle a porta , porque 
lhe era necefiario recolher-fe cedo da 


quinta aonde hia. Nada defta propof- 


ta fe fez reparavel ao porteiro , que 
eftava bem cokumado a outras feme- 
Jhantes de Aflonfo Lourenço. Elle cg 
Mo el- 


288 Historia GERAL 


Era vulg. efperar aquella noite a el Rei, que 
marchava do Porto com a fua gente , 
e no maior filencio della o veio guian- 
do ás vilinhanças da Villa. Eltava á 
lerta Payo Rodrigues efperando a ho- 
ya ajuíftada, em que avifou o guarda 
abrifle a porta para entrar feu cunha- 
do, e hum carro, que elle mandava 
diante. Os do campo , que vigiavad 
com o feu Rei na frente; apenas foi | 
aberta a porta, Payo Rodrigues ma- 
tou o guarda; elles mettêraôd de galo- 
pe , eentráraô a Praça com grandes 
vozes de prazer, que fe fez commum 
a todo o Povo. 

Ayres Gomes, com os que pode 
do feu partido , fe recolheo ao Callel- 
lo , refoluto a deffendello até a ulti- 
ma extremidade. Ataques fortes , e 
promeflas de mercês nad movêraõ a 
conftancia delte Fidalgo para abando- 
nar o partido eftranho, que abraçára, 
Elle affegurou , que fem ordem de 
Caftella nað fe entregava, por fer ho- 
mem incapaz de romper o juramen- 
to de fidelidade , que lhe dera. Trin- 
ta dias fe lhe concedéraôd para avifar 

aquel- 


DE PORTUGAL , Liv. XXI. 4289 


aquelle Monarca, a quem Ayres Go- Era'vulg. 


mes mandou ‘feu genro Goncalo Ma- 
rinho , que o achou occupado em 
ajuntar ó formidável exercito , que 
deftinava para a nofla conguifta. De- 
pois de louvar a firmeza ide Ayres 
Gomes , lhe ordenou: entregafle o 
Caftello , que nað podia foccorrer fem 
deftacar gente do exercito, que havia 
marchar a maiores emptezas : que fu- 

ito Portugal 4: Guimarães feguiria ò 
méfmo defino : e que' ellecom a fua 
familia fe récolhefle a Caftella , aon- 
de acharia promptos os premios, què 
merecia hum Portuguez tað honrado, 
Recebidas eftas ordens, Ayres Gomes 
entregou o Caítello; retirou-fe da Pa- 
tria para morrer na jornada, e feu geni 
ro Gonçalo Marinho ; qué conduzio 
a familia a Toledo, perdeo a mulher, 
que era fobrinha do Arcébiípo D. Pes 
dro Tenorio , e a tirou ao marido 
com o pretexto, de que o matrimos 
nio- eftava nullo : Golpe , que Deos 
defcarregou no Marinho: pára o fazer 
fenfivel á infpiraçao de abandonar o 
mundo , tomar o habito na Religiad 


ZOM.V. r de 


290 Historia GERAL 


Era vulg. de S Francifco , aonde depois de vida 
proba, acabou com morte de Juíta. - 


CAPITULO IL 


Das mais acções, que obrou o Rei D. 
Foaô 1. nas Provincias do Mi- - | 
| -uho, e Beira. 


E REM de Guimarães <á 

meíma pefloa do Rei;:os Portugue- 

zes com elle na fua téfta., tanto ella | 
vita animava os fequazes da liberda- | 
de , quanto aquella tomada fez deçahir 

os efpiritos dos que. promoviaô con- | 
tra ella.. Todas as Praças do Minho | 
treméraô aos golpes , que de huma 
parte daya a eípada do Rei, e da on- 
tra delcarregava a do Condeftavel. Os 
de Braga, que dos principios da an- 
tiga Luhtania fempre fe tinhaô diftin- ) 
guido nas gentilezas do valor ,. e nas, 
elegancias , da fidelidade : fe até agora; 
foffriad violentos o jugo Caftelhano., 
baftou a vifinhanca do. feu, Rei natu-, 
ral em Guimarães para. deflerrarem | 
todas as hefitações , que impedem á 

a e . - DA- 


4 
Fá 


DE PORTUGAL, LIV. XXI. 2ọf 


magnaniinidade os feus Ofhicios. Elles Ers vulg 


tomárað as armas fem mais confelho, 
que aquelle que lhe inípirava o zelo, 
ou oardor; e atacando os Caftelhas 
nos da guarniçaô , lhes fizeraô vêr, 
que o termo da fua vida era o inf 
tante, em que fahifem da Cidadella. 
No eftado de prefos os dominantes, 
o Povo avifou ao Rei da fua refolu- 
çaô ; pedindo os foccorrefle a tempó 
də abater. o orgulho dos inimigos, 
antes que elles o tiveflem de fortifi- 
car-fe. O Condeftavel recebeo ás mare 
gens do Minho ' as ordens de vir in- 
corporar-fe. com Mem Rodrigues de 
Vafconcelos para ajudarem os moras 
dores de'Braga.a lançar do Caftello os 
inimigos. Depois de rudos combates; 
o Chéfe Caftelhano capitulou a en- 
trega , falvas as vidas, e liberdades. > 

Quizeraó feguir o exemplo dé 
Braga os'moradores de Ponte de Li- 
ma , que foffriad com impaciencia 


- & tenacidade com que fe fuftentava por 


Caftella o Alcaide Lopo Gomes de 
Lyra , Fidalgo Gallego, que o Rei 
D. Fernando tanto deftinguia:, e elle 
a Tii en- 


292 HISTORIA GERAL > 


Era vulg. entre nós fe naturalizára. Vivia na 
Villa hum Cavalheiro chamado Efte» 
vað. Rodrigues , que fez eítimulo pa- 
ta emprehender huma acçaô grande 
da indecencia com que o feu Rei - 
era tratado pelo partido oppoito da 
{fua Villa, Elle confultou fó com o 
feu coraçaô as idéas , que concebia : 
fez fabellas ao Rei , que as appro- 
vou, e quiz authorifar coma fua pef- 
foa, e a do Condeftavel a façanha do | 
feu vaflallo. Difpôz efte as coufas ar- | 
dilofo, e valente para facilitar ao Rei | 
huma porta , por onde entrou felizes 
mente com a gente elcolhida , que | 
criada na fua efcóla , já atroftava os | 
perigos denodada. A nofla vá-guarda 
dentro das ruas fe empenhou em hum | 

"combate de opiniaô ; mas fobrevin- 
do o Rei com a cavallaria , fó efcas | 
páraô de fer atropellados os que fe 
falvárad com o Commandante em hu- | 
ma Torre forte. o no 
Defejava o Rei poupar o fangue; 
e propôz o rendimento, em que nað 
quiz convir a teima para fe fugeitar 
depois a mais duro remedio. Foi a 
É | | Tor- 


a 


DE PORTUGAL , LIV. XXI. 293 


Torre atacada pelo Condeftavel , e Era vulg: 

morto Joaô Rodrigues Guarda , que 

a ferrava valerofo ; mas Martim Af- 

fonfo de Mello , pondo fogo á por- 

ta, que fe ateou em hum armazem 

de lenha , foi o intrumento princi- 

pal do bom fucceflo. Era voraz oin- 

cendio , que nað perdoaria a alguma 

de tantas vidas, que principiaya a con- 

fumir , fe a piedade do Rei nað as 

fizefle defcer por cordas em ceftões 

do alto das ameias , aonde fe abrigá- 

rað das chammas. Ficáraô prifioneiros 

todos os Caftelhanos , que forað re- 

mettidos ao Porto , e Eltevaô Rodri- 

gues recebeo por premio, da fua fide- 

lidade encarregar-lhe o Reia feguran- 

ga, e Governo da Praça. © -> 
O gofto deftes bons fuccefios , 

-ou a'grandeza do coraçaô do Rei nað 

o deixava perturbar com a noticia Va- 

ga do formidavel poder, que fe ajun> 

tava em CaRella para .vir.arrancar: dá 

fua cabeça a Coroa , que: queria. dar- 

lhe o Senhor ::dos Imperios.’ Outro 

coraçaô menos magnanimo fó 'temêra 

os enfaios ,. quanto mais os golpe? dos 
E cus 


a94 Historia GERAL 


Era vulg: feus inimigos, que no esforço , e no: 
poder dobravad os motivos , que fa- 
zem reípeitar, Entaô fe occupava el- 
le nas conquiftas , que acabamos de 
yêr , e em celebrar por prefagio fe- 
liz a entrada em Lisboa de duas nãos 
Inglezas com quatrocentos homens de 
foccorro, e muitos provimentos, que 
na Corte de Londres confeguiraôd os 
noflos Embaixadores D. Fernando Af- 
fo de Albuquerque , e Lourenço An- 
nes. Fogaça : as quaes fendo atacadas 
na entrada do Téjo por dez galés ini- | 
migas, que tinhaô vindo a Lisbua ; os 
Inglezes fe conduzíraô com tanto va- 
lor , que depois de matarem 250 Caf- 
telhanos , fem mais perda, que a de 
quatro homens, derað fundo junto aus 
muros da Cidade. 

Humas a outras fe feguiað as van- 
tagens , que hiaô preparando o thea- 
tro para huma das gentilezas mais fu- 
blimes da nofla corage. O choque de 
Trancofo por todas as fuas circunftan- 
cias , nað fó foi hum raígo bem fe- 
melhante ao golpe da gloriofa bata- | 
lha de Aljubarrota; mas huma: dasace 

ções | 


DE PORTUGAL , Liv. XXI. 295 


ções mais cheias de reputaçaõ nås nof- Era vulg. 


fas idades. Já a vá-guarda do exercito 
inimigo , que com muitos Fidalgos 
mandava Joaô Rodrigues de Caftanhe- 


da, eítava em Ciudad Rodrigo efpe- 


rando a chegada do feu Rei. Naô qui- 
zerað eftes Chéfes valéntes ter ocio- 
fas as armas, e para moftrarem, que 
nos defprezavaô , ou nað hos temiaó, 
com feis centos cavallos , é dous mil 
Infantes, entráraô pelas terras de Ri- 
ba-Coa; taláraô a Provincia da Beira, 
e fizeraô huma preza prodigiófa, co 
mo em Paiz fem defenfa. Martim Vaf- 
ques da Cunha, Alcaide Mór de Li- 
nhares , e Gonçalo Vafques Couti< 
nho , que mandava em Trantofo , 
erað os unicos Cabos, que fe podiad 
oppor ás correrias dos inimigos; mas 
a defconfiança 4 que havia entre elles, 
nað confentia em genios teimofos , 
que algum dos dous cedefle para fer 
o primeiro, que rogafle. 

Joaô Fernandes Pacheco , filho 
de Diogo Lopes Pacheco ; que do- 
tado de grande valor , defempenhava 
os brios do feu appellido ; nad podé 

vêr 


296  - Historia GERAL 


Era vulg. vêr callado efte eftrago da Patria. El- 
le bufca a Martim Vaíques, e o per- 
fuade a que fe ajunte com elle, e 
com Gonçalo Vaíques para caftigarem 
as atrocidades, que comettiaô os Caf- 
telhanos. Achando nefte Fidalgo todas. 
as difpofições á medida do feu dele-. 
jo; elle vai em pefloa reduzir o Cou- 
tinho a conformar-fe com os fentimen- 
tos do Cunha; mas elle refite a mili- 
tar debaixo da fua bandeira. Propoem 
Joa6 Fernandes a Martim Vaíques a 
duvida de Gonçalo Vaíques , que O 
bifarro Portuguez desfaz com efta 
reípofta cheia de generofidade : To- 
do Portugal fabe as vantagens, que a 
minha cafa leva á de Gonçalo Vaf- 
ques; mas eu cedo de tudo pelos in- 
terefles da Patria, e de tudo lhe fa- 
£ facrificio : Ide , dizei a Gonçalo 

alques , que eu quero fervir ás fuas 
ordens ; que lhe cedo a gloria deta 
empreza : que juro fervillo nella fiel- 
mente ; que eu, e meus irmãos va- 
mos jantar com elle a T'rançofo no 
dia, em que ajullarmos fahir a ver a 
cara dos inimigos. 

Jul 


DE PORTUGAL, Liv. Xx. 297 


- | Juftamente alvoroçado partio [oaõ tra vulg. 
Fernandes Pacheco prevenir a Gonça- 
lo Vafques Coutinho , que nað‘ me- 
nos fatisfeito , preparou as fuas gentes, 
e hum magnifico jantar para os hofpe- 
des honrados, que efperava. Na me- . 
za fe ajuftãáraS as medidas, que havia. 
tomar na campanha, e ficou refoluto 
efperallos a pé firme no plano de Tran- 
cofo; mas que para fazerem a (ua re- 
foluçaô mais plauíivel, mandafem hum 
Cavalleiro defafiar os Caftelhanos. Sa- 
hio de Trancofo ao campo a refpeita- 
vel tropa de 330 cavallos com hum 
magote de Lavradores no centro das 
allas , que fugírad ao primeiro repe- 
lað , para efperar em campanha raza 
o número oito vezes dobrado de Caf- 
telhanos. Elles nos vírað, e quizerad 
torcer a marcha a hum lado da plani- 
cie para os montes, que os defviafle 
do combate. Os noflos lhe bufcáraã 
a frente , e nað houve mais remedio , 
que enriliar as lanças, e tivar das ef- 
padas. A fubltancia do Paiz levada na 
preza, que era conduzida a falvar-fe 
noz altos , animou os noflos efpiritos 


298 HISTORIA GERAL 


Era vulg a empenhar os braços para os Patri- 
cios lhe deverem a reftituiçaô do feu 
cabedal. 

Obrárað-fe nefte encontro faça- 

nhas, que fe fazem incriveis. Defcar- 

regavað os Portuguezes golpes taô def- 
còompaffados , qué fe ouviaó em Tran- 
cofo a meia legoa de diftancia. Der- 
ramado o furor na tropa , nað foube- 
rað advertir os noflos, que coufa era 
dar quartel , nem fazer prifioneiros, 
Todos os Cabos , e foldados Cafte- 
lhanos ficaraô mortos no campo, ex- 
cepto hum, que os noflos Chéfes qui- 
zerað deixar vivo para levar a Caf- 
tella as noticias do cataítrofe da vã- 
guarda do grande exercito, que mar- 
chava á conquifta de Portugal. Dos 

Portuguezes nað houve hum Íó morto, 

où ferido, como conteítad as memo- 

rias daquelle tempo , que na fingele- 
za dad duas almas á verdade. Queria 

Deos defenganar o Rei de Caftella na 

injuílica da fua pretençaô; mas entaô 

foi o defengano taô difficultofo , como 

depois a credulidade para muitos fuc- 

ceflos da natureza do choque memo- 
ra- 


DE PORTUGAL, LIV. XXI. 299 


ravel, de Trancofo, As bandeiras; as Era wilg 
armas, os deípojos, a preza feita na. 
Provincia, tudo ficou nas mãos dos 
vencedores , que depois de fazerem 
geral a complacencia no Reino, com 
confciencia delicada re(lituirad o feu 
a feu dono. | | 

A gloria dos tres Fidalgos autho- 
res defta expediçaôd fe lhes fez mais 
plaufivel pela remuneraçaô prompta 
do feu Principe, que deo maior vul- 
to às mercês com a confiffað fincéra 
da enveja , que lhe caufava nað fer 
participante de hum feito tað cheio de 
honra até para a pefloa de hum Rei. 
As impreísões que elle caufou no de 
Caflella, moftráraô depois os efleitos, 
quando paflou pelo campo da batalha, 
Eftava nelle huma Hermida de Sad 
Marcos , que para nað parecer Padraô 
da victoria, o Rei colerico a mandou 
arrazar até aos fundamentos, vingando 
nas pedras infenfiveis a refiflencia , 
que encontrava nos peitos dos homens, 
Mas os grandes apreítos defte Monar- 
ca contra nós ; já na6 davaô lugar a 

| ou- 


300. HISTORIA GERAL 


Era vulg. outros -expedientes , que os de cuidar 


na defenfiva. 

= O Rei, que ainda eflava em Gui- 
marães, antes de.fe mover para os 
lugares , que fe entenderiad fer do 
maior perigo para lhes difpôr o re- 
medio: Elle quiz fondar o animo do 
Condeftavel D. Nuno , e o inítruio 
no poder formidavel com que o Rei 
de Caftella vinha reftaurar a québra, 
que tivéra fobre Lisboa : que elle efta- 
va irrefoluto na que devia fazer; fe 
bufcária os inimigos em campo aber- 
to para decidir a fua caufa em hum 
lance da fortuna , ou fe os efperaria 
em huma Praça forte, aonde os def- 
truifle por meio de huma defenfa pro- 
longada , fem fe expôr ás contingen- 
cias da batalha. O bravo Heróe, que 
do principio da guerra trazia conful- 
tadas com o feu coraçaô intrepido as 
occafiões de honra , que ao Rei, å 
Patria , ea fi mefmo podiaô fer glos 
riofas, com o efpirito cheio de con- 
fiança , refpondeo prompto : 
Nós, Senhoses, etamos rodea- 
dos de humas fituações taes , que qual- 

quer 


| 


DE PORTUGAL, Liv. XXI. “301 


quer-exceflo a que-nosarrojemos, nað Era vulg. 
merece. :o- nome de temeridade. Nós 
defendemos a liberdade, o Rei, a Pá- 
tria ,.e tambem a' ReligiaS contra a 
gente , que fegue. hum fcifma ;. que 
quer! conguiftar-nos.; que prefume aba- 
ter-vos:;. que vem 'a cativar-nos. Pois 
eftes objectos Íublimes fó nos' had de 
merecer acções vulgares ? Que occa- 
fiões mais importantes para até dos 
covardes fazer valentes ? E nellas. cor 
mo quereráô moftrar-fe os Portugue- 
zes que lhgs conbecem a gravidade? 
Se nós vencermos, de hum: golpe 
confeguimas:' todas: aquellas vantagens s 
fe: ficarmos: vencidos , tudo facrifica- 
mos. de hyma vez aos fimulacros da 
honra :a:quem devemos todos. effes fa- 
crificios: Antes mortos que fugeitos 
a hum dominio eftranho.: Entrarem 
os Caltelhanos em Portugal , e nós 
fahirmos ao feu encontro , deve fer 
huma .mefma acçaô. Se nos deixarmos 
fitiar;, que exercito:temos: , que nos 
foccorra .? «Para acabarmos em huma 
coya , como féras:; . vamos :marrer nå 
campanha - com. .a.. elpada: .na: mãôó , 
co- 


302 HISTORIA GERAL. 


Era wig. como homens. Eu bem fei}, que o 
partido he defigual; mas tambem naõ 
ignoro , que .os Portuguezes + quan- 
do fe empenha -a honra., nað. contaó 
número de inimigos. Quantos foraõ 
.os que vencêrad o choque de Tran- 
cofo è Pois o meímo Deos de entað, 
he o de fempre; o Reino, e a caufa 
tudo. be feu ; nelle devemos confiar 
para nað confentir eftes hoípedes na 
nofla cafa. . > : 
- - ‚Prohettendo-fe' fegredo inviola: 
vel, ajutáraðő entre fio Rei, eo Con- 
deftavel poftar-fe em campo , e eípe- 
rar occafiad para: a batalha. Como os 
inimigos principiavad a mover-[e : em 
Caftella .; elles dérað as providencias 
neceflarias no Minho :,. e na Beira: 
marcháraô, o Rei para Abrantes a ef» 
perar a. gente das Provincias; o Con- 
deftavel para o Alem-Téjo a cotdu» 
zir a daquelle partido.. Efperava-fe' a 
entrada dos Caftelhanos por Badajóz; 
movimento , que obrigou o Rei'a 
paffar o 'Féjo.; mas serrocedendo el- 
jes ʻa marcha para Cidade Rodrigo, o 

Rei tosmou-a. occupar Abrantes, ao 

aê de 


ed o. a RÈR ETC 


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em td GRE. A Sã TA a-— 


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a -~a Da as. 


DE PORTUGAL, LIV. XXL 303 


de efteve até Agofto. A caufa defte Era vulg. 


retrocélo da marcha do Rei de Caf- 


tella, e os movimentos, que prece- 


déraô á batalha de Aljubarrota , fa6 
dignos da attençab da Hiftoria., como 
fucceflos precedentes á acçaô glorio- 
fa , que decidio o negocio da nofia 
liberdade. º Er 
Antes que aquelle Principe fe mo- 
veffe de Cordova, mandou occupar o 
rio de Lisboa pela fua armada, com- 
pota de 40 nãos grofias , dez galés , 
e doze fragatas, que fahira6 dos por: 
tos de Andaluzia , e Bifcaya. : Indica- 
va efta manobra, que elle viria. outra 
vez tentar fortuna fobre Lisboa; ajun- 
tando a efta grande frota as forças da 
terra , que os:feus meímos Hiftoria- 
dores , e dos modernos Fr. Jolé Als 
vares de la Puente; fobem a trinta mil 
Infantes., e oito mil cavallos. Porém 
informado no caminho, que a Cida- 
de de Elvas padecia: grande falta de 
mantimentos ,. que lhe impoflibilitas 
vað a defenfa por mais de quinze dias : 
elle determina. fazer-fe Senhor: deita 
chave da nofla fronteira, e com vifta 
nc te- 


304 Historia GERAL 


Era vulg. temerofa aprefenta tantas trópas á fas 
ce da Praca. Era entaô fèu Governa- 
dor o bravo Gil Fernandes , que re- 
veílido de confiança heroica, determi- | 
nou moftrar nas obras ao Rei de Caf- | 
tella , que nað temia as fuas armas: 
Elle mandou, que as'portas fenað fe- 
chafem em quanto os inimigos efti: 
vefem no campo , para evitar O tra- 
balho de as abrir, e fechar ás entra- 
das , e fahidas das efcaramuças cone 
tinuas, que elle nað ceflaria de empre- 
hender, ' . TE | 

Humas a outras amontoava as fahi- 
das eíte efpirito impavido para ter o 
campo fempre em rebate. Defejofo . 
de huma facçaô , que fe fizefle mais 
fentivel ao Rei; a fortuna lhe metteo 
em cafa a conjuntura com a noticia, 
que lhe déraô do grande comboi de 
viveres , que- naquella. noite .(ahia de 
Badajóz para o exercito. Nas horas 
do maior filencio marchou a obfervar. 
a efcolta, que o'conduzia, e a achou 
em pequeno número pela vifinhança 
da Praça ao. campo „ e pela confian-= 
ça ; de. que o.reípeito do nao o | 
sd = 


DE PORTUGAL, LIV. XXI. 308' 


fegurava. Naô podéraô os Caftelha- Era vulg. 
nos foportar o primeiro pefo dos 
feus golpes., e poítos em fugida, re- 
colheo em Elvas o comboi , que for- 
neceo a Praça para muitos dias. Já 
erað paflados vinte e cinco fem os ini- 
migos ganharem hum palmo de ter- 
reno. Entaô recebêrað avifo do fuc- 
ceflo infeliz do choque de Trancofo , 
que quando os forçava a naô perder 
gente , e tempo no bloqueio de El- 
vas , lhes defenfreou a tyrannia para 
fe defpedirem da Praça com acções in- 
dignas da humanidade. 

Acafo viera a feu poder hum pai- 
zano de Elvas. O Rei lhe mandou 
cortar as mãos, e pendurallas ao pef- 
coço do innocente com huma Carta 
a Gil Fernandes ; em que o ameaça- 
va , como aquelle era o tratamento 
vulgar , que daria a todos os facciona- 
rios do Meftre de Aviz. Palavra tað 
mal dada foi exactamente cumprida em 
mais dezafete homens de Arronches, 
que lhe cahiraô nas mãos , e ficáraô 
fem ellas. Gil Fernandes, incapaz de 
fofirer efta atrocidade , que lhe pare- 

TOM. V. U ceo 


E mA RA ; 


306 Historia GERAL 


Era vulg ceo devia imitar fem efcrupulo , por 
lhe dar o exemplo hum Rei : de oi- 
tenta prifioneiros, que tinha na Pra- 
ca, cahio fórte femelhante em dous 
Fidalgos infelices, que foraô manda- 
dos ao Rei com as mãos , e huma 
Carta pendentes do peito, que dizia > 
O Governador de Elvas dará efte mef- 
mo trato a oitenta Caftelhanos, que: 
tem em feu poder; e os vafiallos de 
el Rei de Portugal D. Joaô I. teráő . 
cuidado de fazer o meímo a todos, 
fe efta impiedade continuar a ter ex- 
ercicio. Efta reípofta foi a vantagem, 
que os Caftelhanos tiráraô da empre- 
za de Elvas , a que o Rei acodia de 
Abrantes ; mas elle retrocedeo para - 
a mefma Villa com a noticia, de que 
os inimigos levantavad o campo , e | 
fe faziad na volta de Cidade Rodrigo 
a efperar o Principe D. Carlos de Na- 
varra , que vinha. com hum corpo de. 
trópas em foccorro do Rei de Caftel- 
Ja feu cunhado, ? 


DE PORTUGAL, Liv. XXI. 307 


CAPITULO IIL 


Do que fuccedeo depois da entrada do 
Rei de Cajtella em Portugal, 


to ES do mão fucceflo de Elvas; 
e tida por mais difficultofa a entrada 
em Portugal pelo Alem-Téjo; o Rei 
de Caflella tomou o caminho de Ci- 
dade Rodrigo para a fazer pela Beira, 
e feguir por Coimbra a jornada de 
Lisboa. Naquella Praça chamou a con- 
felho os feus Generaes para fe deter- 
minar, por que forma fe faria a expe- 
diçað , fuppoftos os avifos conformes, 
-de que o novo Rei fe aprefentava pa- 
ra a impedir por meio de huma bata- 
lha. Os pareceres fe dividírað á pro- 
porçaô das imagens, que fe figuravað 
os efpiritos , que os propunhaõ. Di- 
ziað os menos affoutos, ou mais cir- 
cunípeétos , que o Rei nað devia ir 
em pefloa arrifcar a reputaçaô no com- 
bate com homens delefperados , que 
nað obítante ferem poucos , eflavaô 
refolutos a bufcar a liberdade pélo 

Vii meio 


Era vulg. 


308 Historia GERAL | 


Era vulg, meio da morte , e dos perigos : que 
com a vi&oria de Trancofo ficárad 
taô foberbos , que rodeavad o feu 
Rei, pedindo-lhe a batalha, como ul- 
timo remedio da fegurança , ou da 
ruina : que elles faziad guerra de Re- 
ligiad a que era do Eltado, naõ dan-. 
do aos Caftelhanos outro nome, que 
o de Scifimaticos; e que com homens, 
que peleijavad pela Fé, e pela Patria, 
nað fe bufcavað encontros, de que el- 
les entendiad , que vencedores, ou 
vencidos , fempre ficavaô gloriofos: 
que, fobre tudo , a faude do Rei ef- 
tava muito debilitada ; erað grandes 
os calores da Eftaçað ; nað devia ex- 
pôr a fua vida ; mas dividir exercito 
tað numerofo em varios, que invadil- 
fem o Reino por differentes partes, 
em quanto da fua obrava a Armada fo- 
bre Lisboa , na fendo poflivel ao | 
Meftre de Aviz feparar as fuas forças ` 
para acodir a tantos lugares. 

— Os mais oufados, ou menos ad- 
‘vertidos ponderavaõ os juifos, que fa- 
ria o mundo do valor do Monarca de 
Caftella, que com quarenta mil hoe |. 
mens 


DE PORTUGAL, LIV. XXI. 309 


mens fe retirava de vêr a cara a hum Es vulg 
punhado de Portuguezes, inimigos por 
capricho : que todos o attribuiriad 
a medo ; affronta maior , que a perda 
de huma batalha, em que muitas ve- 
zes fe cede ao deítino fem injúria do 
valor: que fe os Portuguezes já efta- 
vað foberbos; vendo que o Rei fica- 
va em Caftella, lhes crefceria o or- 
gulho, e paflariad a intoleraveis: que 
o exercito dividido feria caufa de emu- 
laçaô entre os Commandantes , que 
botariad a perder os fucceflos com van- 
tagem dos contrarios , e froxidad dos 
Portuguezes fieis , que tomariad o 
partido do novo Rei, ou feria omil- 
fos nas occafiões de os fervir : que 
o Mefre de Aviz nað era poflivel ti- 
veffe corage para efperar em campo 
femelhante exercito , que devia mar- 
char a encontrar-fe com effe par de 
homens defefperados , fazellos em pof- 
tas, e ir delcançar do trabalho den- 
tro dos muros de Lisboa. Efe pare- 
cer, por mais briofo, teve-o el Rei 
por mais honrado : e refoluto a en- 
„trar por Portuga] em pefloa , mandou 


pã- 


310 Historia GERAL 


Era vulg. para Ávila a Rainha D. Brites encar- 
regada ao Arcebifpo de Toledo D. 
Pedro Tenorio. | | | 

' Entrou o Rei de Caftella em Por- 
tugal pela Provincia da Beira, e to- 
mou Cerolico, aonde fez o feu Tef- 
tamento para começar a guerra com 
demonftrações de Catholico , que de- 
generáraô em officios de tyranno. Aqui 
o vierad encontrar muitos dos feus 
antigos partidarios , que defculpárad 
a infidelidade com o temor da elei- 
çaô do novo Rei. Confolado com as 
boas efperanças , que lhe déraô eftes 
traidores., continuou a marcha para 
Csimbra:, levando na vã-guarda o ef- 
trago, eo terror, que deixavad crueis 
finaes em todos os Lugares da Provin- 
cia por onde paflava. Os Póvos aber- 
tos, as pefloas erað o entretenimen- 
to do furôr brutal deflas trópas. Tranf- 
portado até aos defatinos o Rei, por- 
que Portuguez algum do partido do 
chamado Meftre de Aviz nað vinha 
bufcar o abrigo das fuas bandeiras ; 

“elle nað perdoou a fexo , ou idade ; 
€ querendo proporcionar as fuas cruel- 
am | da- 


< 


DE PORTUGAL „Liv. XXI. 3IE 


dades com as pefloas em quem as Fra vulg. 
mandava executar ; ordenou , que a 
“ humas fe cortaflem as linguas, a qu- 

tras os pés , aos meninos os braços. 
Para ajuntar o facrilegio á inhumani- 
dade, o impio ao barbaro , fez def- 
truir a Igreja de T'rancoífo, como fe 
nella houvefle de devorar o incendio 
a memoria do eftrago vergonhofo , que 
alli padecêraS as fuas trópas , e. elle 
o anno paflado lobre Lisboa. O hor- 
ror deftas atrocidades animava mais os 
“Portuguezes para deícjarem antes a 
morte honrada na guerra , que aca- 
bar como infames ás mãos dos ver- 
dugos. Sempre eftes procederes eftras 
nhos forab caufa das perdas de Helpa- 
nha ; e quando nað houvérad outros 
exemplos + baftavad em Flandres os 
do Duque de Alva, que fazia vaidade 
de ter Íubmettido ao cutelo dos Al 
gozes milhões de cabeças, 

Nefa marcha dos Caftelhanos fe 
advertio ao Rei, que mandafle fazer 
cortaduras nos caminhos para a imr 
pedir. Mas aquelle animo fublime, 
para fazer os vaflallos par 

os 


312 ` HISTORIA GERAL 


Era vulg. dos feus fentimentos, lhes refpondia : 
Fraca defenfa; eíperemos, e comba- 
tamos, que brevemente nos veremos 
vingados dos noflos inimigos. Elles 
chegáraõ fem embaraço a Leiria, aon- 
de fe lhes ajuntárad os Commandantes 
das Praças da fua facçað para ajuda- 
yem a devorar a Patria, como cancros. 
O Rei avifou de Abrantes ao Condef- 
tavel , que chegou com a gente do 
Alem-Téjo , e intou com os Fidalgos 
vencedores no dia de Trancolo para 
virem ganhar nova honra em maior 
feito: mas elles , que viraô paflar o 
grande exercito de Caítella ,. mudárad 
de refoluçaô á vifta do inimigo, ex- 
cepto Joaô Fernandes Pacheco , e 
Egas Coelho , que fe portáraô , co- 
mo diremos a feu tempo, Naô deixa- 
vaô de affligir os cuidados aos gran- 
des corações; que he pençaô da hu- 
manidade trazer á memoria as ima- 
gens triftes das contingencias , quando 
a alma fe recreia na gloria de fubir 
triunfante ao Olympo. Por iflo o Rei, 
que fabia fe notava de temeraria a 
fua refoluçaðő de atacar o inimigo, fen- 

do 


= E e. 7] 


DE PORTUGAL , LIV. XXI. 313 


do.alguns dos que defejavad o com- Efa vulg. 
bate os mefmos , que o perfuadiad 
arrojado; elle fe determinou a convo- 
car o feu Confelho. no | 
` À prudencia humana nefte con- 
greflo fe oppôz aos deftinos , que a 
noflo favor tinha decretado a Provi- 
dencia, Queriaô muitos, que fe efpe- 
raffem os foccorros promettidos de In- 
glaterra; e que em quanto nað che- 
gavað , o Rei fofle para o Alem-Téjo, 
e invadife a Andaluzia até Sevilha, 
para obrigar o Rei de Caítella aaco- 
dir á 'defenfa da fua cafa: Projeão, 
que o divertia do fítio de Lisboa, e 
a nós nos deixava livre a retirada de 
Caftella , quando nos bulcafle , para 
virmos unir-nos aos Inglezes , que já 
entao (eriad chegados: que emprehen- 
der outra reloluçaô , era tentar a 
Deos , e querer forçallo a que défle 
victoria a (eis mil homens, que teme- 
Trariamente foflem inveftir fetenta mil, 
que tantos fe dizia ferem os Caftelhanos. 
Seguirad os mais efte parecer contrario 
ás intenções de el Rei; mas o Condef- 
tavel , que o via fufpenfo , fe levantou, 
e diffe : i Que 


A « 


314 HISTORIA GERAL | E 


Era vulg. S intentárað até ago- 
ya os Portuguezes , em que peleijaf- 
fem com forças iguais ? Fazei lem- 
brança de todas as Épocas , feja no ` 
tempo dos Carthaginezes , feja no dos | 
Romanos, feja no das Nações do Se- 
ptentriaô, è ultimamente no dos Mou- | 
ros , a nofia gente attendia á .juítiça Ê 
da caufa , nað contava o número dos | 
inimigos. À que nós temos entre mãos, 
he huma das mais juftificadas deíde as | 
idades remotas até agora; e nað ha- 
vemos nella feguir o exemplo dos nol- 
fos Maiores? Além dikto, quem fou- 
ber da guerra , nað dirá, que ajorna- 
da de Andaluzia he diverfad , mas 
huma fugida , que fe deívia do gol- 
pè, sefte temor quebrará os animos, 
que eta6 ao prefente refolutos. Ella 
facilitará o rendimento de Lisboa; e | 
perdida efta Capital , que mais nos 
yeta? Enta6 abateremos as armas, € 
teconheceremos Rei o de Caítella. Os 
Inglezes nað fabemos quando virãô , 
e o perigo já o vemos. Se lhe differi- 
-mos a cura , nað nos aproveitará O Tẹ7 
medio, quem vem fóra de tempo. No 
meu 


“a | 
DE PORTUGAL, LIV. XXI. 315 


meu conceito a batalha he indiípenfa- 
vel , e afim o aflentáâmos em Gui- 
marães el Rei, e eu, que naô mudo 
de parecer á vifta do inimigo. Ficai- 
vos, Senhores, em Abrantes ; tomai 
os pareceres, que julgares convenien- 
tes; perdei o tempo em conferencias ; 
que D. Nuno Alvares Pereira com a 
gente, que o fegue., fearroja á teme- 
ridade de ir atacar os Caftelhanos, e 
fenað poder falvar a Patria, morrerá 
por ella, e | 

Acabou de fallar o Condeflavel, 
e fem efperar reípofla, fahio do con- 
{felho ; veio ao quartel da gente: do 
Alem-Téjo , que recebeo cam alvo- 
roço afua refoluçað heroica; mandou 
tocar as caixas, e trombetas, erom- 
peo a matcha para Thomar, pór on- 
de fe dizia que vinhað os Caftelha- 
nos , com hama intrepidez fó digna 
do efpirito de D. Nuno Alvares Perei- 
xa. Fez a inveja os feus Officios nas 
meímas peffoas , que defejariað fer 


Era vulg. 


authoras defta chamada loucura , co- 


mo fe os animos fublimes houvefem 
de apertar os feus impulfos. dentro dos 
/ CUE- 





316  . HISTORIA GERAL 


Era vulg. curtos limites dos corações vulgares. 
O Rei que tudo ouvia, e callava, co- 
mo quem conhecia a fundo o ardor 
da fidelidade do Condeftavel; torna a 
ajuntar o confelho, é lhe propoem : 
Que os paflos de D. Nuno fað tað 
formofos como elle; merecedores de 
fer feguidos , nunca de (er notados : 
Que o feu efpirito magnanimo nað 
pode ouvir fem commoçad a noticia 
das ordens , que o Rei de Caftella 
mandou ' dar ao feu exercito, e diziað 5 
na marcha matem , cativem , quei- 
mem , roubem até chegar a Lisboa : | 
Que eftas barbaridades fe executavad | 
fem piedade ; e á vifta dellas , que 
fentimentos nos deve inípirar o amor 
da Pátria , a caridade pelos irmãos , 

a juítiça da nofla caufa? O Ceo ferá 
em noflo foccorro , e elle terá efco- o 
lhido ao fragil intrumento defte, que | 
© defprezo chama Rei de Aviz, para 
refgatar o feu Povo das opprefsões da 
tyrannia. Mandemos ehamar o Condef- 
tavel ; unamonos com elle ; imitemos o 
ardor do (eu zeld, e nað queiramos ap- 
plicar remedios communs a males extre- | 
mos. Co- | 


DE PORTUGAL, LIV. XXI. 317 


Como a voz do Principe cano- Era vulg. 


nifou a acçad do Condeftavel , ella 
foi unanimemente approvada, e deci- 
dida a batalha, como meio unico de 
impedir aos inimigos a expediçaô fo- 
bre Lisboa. Mandou-fe a Joaô Affon- 
fo de Santarem, hum dos do Confe- 
lho , que chamafle ao Condeftavel já 
poto em marcha ; mas elle ouvindo 
o recado , lhe refpondeo : Que depois 
do que ajuítára com el Rei em Gni- 
marães de nað confentir , que os 
Caftelhanos ftiafem Lisboa, nað ti- 
nha fobre que tomar mais Confelho : 
Que da fua parte lhe pedifle por mer- 
cé o deixafle vêr a cara dos inimigos, 
e que fe Sua Alteza tambem queria 
ir lhe mandafle logo avifo para o ef- 
perar em Thomar. O aperto em que 
entaô eítava o Reino , nað fó fazia 
defculpavel; mas louvavel a generofi- 
dade de D. Nuno. El Rei a engran- 
deceo com o elogio , de que tinha 
hum vaflallo mais zelofo da fua Di- 
gnidade Real, que elle meímo; eor- 
denou ao feu Veador Fernando Al- 
vares de Almeida fole ao ca in- 

| Ola 


318 Historia GERAL 


Era vig. formar o Condeftavel da refoluçao do 
Conielho ; ordenar-lhe retrocedefe a 
Abrantes para marcharem juntos a buf- 

“car os inimigos. | 
O Condeftavel, que hia atroando | 
a campanha com a marcha batida para 
a fazer pública; entrou no efcrupulo, | 
de que retrocedella., e faberem-no os ` 
inimigos, elles o tomariaô por mudan- 
Ga de refoluçaô , ou covardia, e con- 
tentou ao Veador com lhe pedir diflef- 
fe a el. Rei, que no outro dia o efpe- 
Tava em. Thomar; e continuou a jor- | 
nada para efta Villa. Aflim'o executou 
o Rei, que com orefto das tropas fe 
foi ajuntar com o Condeftavel para fe 
determinar o lugar, a fórma, e plan- 
ta da-batalha. Daqui foi mandado Gon- 
çalo Annes Peyxoto. examinar o cam- 
po dos inimigos , disfarçado com o 
caracter de Enviado para reprefentar 
ao Rei de Caílella da parte do de Por- 
tugal fe retirafle do Reino, que nad 
era feu, e que fe repugnafle fazello, 
o defafiafle para a batalha, Exadtamen- 
te cumprio Gonçalo Annes a fua com- 
miflaô em Leiria, aonde notou as for- | 
ças | 


DE PORTUGAL, Liv, XXI. 319 


ças de Caftella; fondou o animo do Era vulg. 
Rei, e fentido do defprezo manifefto 

com que elle tratava ao feu Sobera- 

no ; da fua parte lhe intimou a bata- 

lha-no lugar , e dia, que elle quizefle 

eleger. 

Da fua fez o mefmo o Condef- 
tavel, que mandou hum Trombeta ao 
campo inimigo requerer ao Rei naõ 
moleftafle a fua Patria ; que fahifle do 
Reino, que reconhecia por (eu Sobe- 
rano ao Meftre de Aviz; e que fe nað 
o quizefle fazer , elle tomaria a licen- 
ça para o obrigar com as armas. Ref- 
pondeo-lhe o Rei de Caftella , que el- 
le vinha cobrar a herança , que lhe 
tocava por fua mulher : que olhafle 
por fi ,. abandonando o partido do 
 Metftre ; que fobre elle derramaria a 
profufaô da fua liberalidade. Á vifta 
deíftas repoltas, o Rei, e o feu Con- 
deftavel aflentáraô , que as armas de- 
viað decidir a quetad., e movêraõ no 
dia onze a fua gente, que no feguin- 
te paflou a Porto de Móz, aonde ef- 
tiverad até quatorze de Agofto , diá 
fempre memoravel nos Faftos brilhan- 

tes 





320 Historia GERAL 


Era vulg. tes de Portugal. Como nelle fe efpe- 
rava a batalha, os noílos paflárao a 
noite em exercicios catholicos ; os 
mais recebêrad os Sacramentos de ex- 
piaçaô , e da mað do Arcebifpo de 
Braga a Cruz, e Indulgencia da Cru- 
zada, que o Papa concedêra a noffo i 
favor contra os fautores do fcifma. 

Com eftes confortos fahírað os 
Portuguezes do Porto de Móz na ma- | 
drugada a cortar a eftrada , que haviad | 
levar os Caftelhanos de Leiria para 
Lisboa. O Condeflavel, que marcha- | 
va na vá-guarda , marcou O terreno 
para: o combate em huma campina ra- 
za, fem montes, rios, ou roturas da 
terra, que nos deflem fuperioridade 5 
ou alguma vantagem dos inimigos, 
que tinhaô fobre os Portuguezes a de 
fete homens contra cada hum delles. 
Nefte plano formárad o Rei, e o Con- 
deflavel feis mil e quinhentos folda- 
dos , em que entravaô mil e fetecen- 
tos de cavallo e tres mil e quinhen- 
tos entre criados , e gente de ferviço 
das bagagens, que faziaO ao todo dez 
mil homens. O exercito inimigo, con- 

tal- 


DE PORTUGAL, LIV. XXI. 321 


tando tambem eftas praças deftinadas Bra vulg. 


aos miniíterios do campo , chegava 
ao número de fetenta mil. Na vã- 
guarda fe poítou o Condeftavel com 
feifcentos cavallos defmontados , co- 
mo fizera na batalha dos Átoleiros, 
para quebrar nas lanças a primeira fu- 
ria dos inimigos : o lado direito era 
a célebre ala dos Namorados , moços 
folteiros, que efcolhêraô a devifa do 
amor por marca da fua corage , e os 
mandava Ruy Mendes de Vafconcel- 
los com feu irmaô Mem Rodrigues , 
e o Alferes Alvaro Annes de Serna- 
che: a maior parte do lado efquerdo 
era compofta dos Inglezes auxiliares, 
que cobriad Antaô Vaíques de Alma- 


| da , Joa de Monferrara , e Martim 


Paulo. - 

El Rei eftava na reta-guarda com 
a bandeira Real , que arvorava Gil | 
Vaz da Cunha, e fe formava do ref- 


“to do exercito, que tinha na referva 


as bagagens com huma guarda em cir- 
culo da gente menos apta para a pe- 
leija. Faltáraô no campo muitos Fi- 
dalgos de alta confideraçad , que ti- 


TOM. V. X — vé- 


322 HISTORIA GERAL 


Era vulg. véraó ao Rei , e Reino por perdidos 


nee encontro tað defproporcionado; 
mas os que eftavad preítes para elle, 
o eftimárad materia de entretenimens- 
to, como iremos vendo nas circunf- 
tancias , que lhe precedêrad. Como 
formado o exercito , ainda nað pa- 
reciaô os Caftelhanos , os Portugue- 
zes pozerad armas em terra, e fe en- 
tretiverad em tantas danças, e folias , 
que nað poderiaó fer mais jucundas fe 
elles efperaffem por huma grande féfta, 
Efa manobra jovial afombrou os ini- 
migos, quando nos aviftárað , ea ti. 
verað por prefagio da fua infelicida- 
de. À ella fe ajuntavad os votos, que 
chamavad denodados , que contrape- 
fáraô os pios do Rei, e do Condefta- 
vel. O Rei votou ir daquelle fitio a pé 
á Igreja de Santa Maria de Guima- 
rães, que fað 4o leguas , pefar.fe a 
prata armado , como eftava, e fundar 
nelle hum Convento. © Condeftavel 
prometteo o meímo a Santa Maria de 
Ceiça em Ourem, e edificar em hon- 
ra fua outro Convento. 


Eu- 





benem ota meme 


DE PORTUGAL, LIV. XXI. 323 


Entre ' os denodados forað céle- Bra vulg. 
bres os votos de Martim Affonfo de 
Soula , que prometteo , fe efcapafle 
da batalha, ir paflar huma quarente- 
na com a Abbadeça de Rio Tinto; mas 
feu irma6 Joaô Rodrigues de Sá lhe 
reípondeo , que fe tal fizeffe , elle pro- 
mettia de lhe dar com hum pão , e 
diz certo Elcritor noflo, que ambos 
cumprirad o voto: o de Vaíco Mar- 
tins de Mello o moço, que jurou 
prender , ou ao menos pôr as mãos 
em el Rei de Caftella , e por que- 
rer cumprir o voto , perdeo a vida: ' 
o de Gonçalo Annes de Caftello de 
Vide, que prometteo , e guardou O 
de fer o primeiro, que enfopafle a 
lança nos Caftelhanos ; com outros 
femelhantes , que indicava o desaf- 
fogo militar dos noflos aventureiros , 
libertadores gloriofos da Pátria na fi- 
tuaçaô mais trife a qué a reduzira O 
poder ,. e tyrannia. 
~ Quando aflim fe entretinhaó ós 
noflos foldados , quafi a horas de meio 
dia appareceo o exercito Caftelhano 
em multidaô horrivel, que cobria o8 

Xii pla- 


324 Historia GERAL 


Era valg: planos, e coroava os montes, Como 


nos viraô na eftrada plantados em ba- 
talha , entendéraô o defignio de lhe 
difputarmos a paflagem, e fizeraô alto 
os noflos inimigos , que fó com a fa- 


ma do número pretendia atemorifar= ` 


nos. El Rei perguntou aos Chéfes, 
que faria á vifta da refoluçaô dos Por- 
tuguezes. Muitos feguiraô o parecer 
de Joaôd de Ria, Embaixador do Rei 
de França , que ponderou razões for- 
tes para impedirem a batalha , que 
fe fofle ganhada por tað poucos, mas 
deflemidos , a injúria das armas de 
Caftella em todas as idades ficaria ir- 
reparavel. Os pareceres contrarios tive- 
rað por maior a de voltar as caras ao 
Metftre de Aviz , que vinha (acrificar 
á fua defefperaçaô hum punhado de 
homens loucos , que feriað degolla- 
dos fobre a marcha; e com efte voto 
fe acommodou o Rei. 

Nefta fufpenfaô eftavaS os dous 
exercitos , quando Joaô Fernandes Pa- 


checo, e Egas Coelho , que vinhad 


da Beira com hum pequeno corpo de 
gente ə deraô na frente do lado ef- 
quer- 





| 
| 


DE PORTUGAL , Črv. XXI. 426 


querdo dos inimigos. Sem os affuftar Era vulg 


o repente defte encontro, fizerad to- 
car as fuas trombetas , e rompendo 
por entre os dous campos , bulcárad 
a vi-guarda do noflo. Sahio o Rei a 
efte lugar para os receber, e com el- 
le Diogo Lopes Pacheco , que leva- 
va a fua velhice veneravel carregada 
do ferro dasarmas, e nað podia con- 
ter o gofto à vita do zelo de feu fi- 
lho. Joad Fernandes depois de beijar 
as mãos ao Rei, e ao Pai, difle ao 


* primeiro em voz alta, que todos ou- 


viflem : Esforçai-vos, Senhor , contra 
elles inimigos; nað os temais por mui- 
tos, que os voflos fað melhores: Eu 
já os conheço; ha pouco que lavei as 
minhas mãos no feu fangue, hoje me 
fartareí - delle : f6 vos finto o traba- 
lho, que haveis ter em matar a tan- 
tos : eftes lað os que reftáraô dos que 
vós degolaftes no fitio de Lisboa : ` 
Deos torna a vo-los pôr diante, pae- 
ra que lhes façais o mefmo. Por to» 
do o exercito fe paflou elta palavra 
de [oaô Fernandes, e infundio tal co- 
rage nos noflos, que já o furor fazia 

ran- 





Ra vulg. ranger Os dentes pela tardança dos 


È ld 


yE 


326 |. Historia GERAL 


Caftelhanos .em envetltir. 


Eflando. os campos na fituaçaôd , 


que fica dita, ainda elles faziaô con- 
fultas , e novamente mandárad tentar 
o noflo Condeftavel por feu irmað Dio- 
go Alvares Pereira , pelo famofo Pe- 
dro Lopes de Ayala, e pelo Marichal 
Diogo Fernandes. Chegáraôd -os tres 
á frente do exercito , aonde Diogo Al- 
vares defatou 'os diques á ternura, 
ás promeflas, á quanto havia de tocan- 
te para perfuadir ao Condeftavel ofe- 
guie , e a feu irmaô o Prior , que 
afim lho rogava. O que vós, e o 
Prior pretendem de mim ( refpondeo 


, D. Nuno ) defejo eu, que elle, e vós 


fagais para obrares com juítiça : Ao 
Rei de Caftella dizei, que ao Condef= 
tavel de Portugal fe enveíte com ar- 
mas, e nað fe ataca com baixezas : 
Que fe prefume vencer-nos, fe defens 

ne , que em quanto a minha efpa- 
da cortar , nað ha de ter aflento no 
Reino, que tyranniza cruel: À meu 


* irmaô direis , que cuide menos da mi- 
nha pefloa , que da fua mettida no 


pss 


pnu 


DE PORTUGAL, LIV. XXI. 327 


perigo , que elle mal penfa , e hoje Eta vulg 


lhe moftrará o fucceflo : fe efte era 
o negocio a que vieítes, retirai-vos, 
e fe mais me fallares nelle , efta ef- 
pada vos dará a refpofta.. Ouvido tal 
defembaraço , o Marichal Caftelhano 
fe defpedio com efta elegancia enca- 
minhada ao Condeftavel : Vós fe ven- 
ceis , o mundo vos eftimará pelos ven- 
cedores de maior honra: fe vos fuce 
ceder o contrario, fereis os mais hon- 
rados vencidos : em qualquer das fór- 
tes fempre ficais felices. 

Pedro Lopes de Ayala foi ao feu 
Rei, e lhe Aife fe deixafle de bata- 
lha, e como os Portuguezes nað ti- 
nhað mantimentos , naquella noite dei- 
xariað o campo, e lhe ficaria o paf- 
fo livre para Santarem , fem fe exe 
pôr ao perigo de vir ás mãos com 
huns homens, querem fe lhes fällan- 
do em liberdade, rugiaô como féras, 
Muitos foraô delte parecer, entre el. 
les o Conde de Barcellos; mas elle.o, 


mudou quando ouvio O deíprezo com. ~ 
: que fe fallava no valor dos Portugue- - 
Zes , e com todo o esforço da Tua: ~ 

| . — Melos" 


º 

+ e 
a a 
. œ g ; 


+ 
% 


328 Historia GERAL 


Era vulg. eloquencia perfuadio ao Rei de Caf- 
tella o combate , aonde elle com os 
mais Portuguezes, que fe declaráraõ 
contra a Patria, tinha de perder fem 
honra as vidas, que podiaôd confervar 
reputadas, ou arrifcallas com memos 
ria mais illuíftre em melhor caufa. 


CAPITULO IV. 


Efcreve-fe a famofa Batalha de Alju- 
barrota , que decidio o negocio da 
liberdade de Portugal. 


Á declinava o Sol do feu ponto 

vertical no dia 14 de Agofto , o 
mais formofo , e brilhante para Por- 
tugal , que depois de dous feculos por 
caufa femelhante o vio renovado nas 
jornadas das Linhas de Elvas, do 
Ameixial, e de Montes-Claros: Quan- 
do o exercito Caftelhano principiou a 
mover-fe contra nós a fom de caixas, 
trombetas, e grito de guerra Caftella, 
Sant Igo. Entaô andava o Arcebiípo 
de Braga pela frente das fileiras ani- 
maudo os foldados, e advyertindo-os, 
| que 


DE PORTUGAL, LIV. XXI. 329 


que entrados na acçaô , repetiflem Era vulg. 
muitas vezes: Verbum caro factum efl : 
Perguntavaô os maviofos, que era o 
que dizia o Arcebifpo ? Refpondiaô 
os denodados conftruindo : Que a fun- 
ça6 aos Caftelhanos tinha de cuftar 
caro. Aflim ha de fer querendo Deos, 
repetia outros, que nós havemos 
dar-lhe hum bom mercado. Com eftes 
“apophtegmas de galhofa efperavaôd os 
noffos hum dos repelões mais horren- 
dos , para depois fazerem verdadeiro 
o erudito Colmografo de Carlos V. que 
diffe nas fuas Relações Univeríaes do 
mundo : Que Naçaô alguma do Uni- 
verfo era comparavel no valor com a 
Portugueza , que fazia dos combates 
materia de entretenimento. 

Quando o grande Condeftavel 
vio, que os inimigos fe moviað, vol- 
tou-fe para os. feus, e lhes fallou af- 
fim: Eia, Amigos, he hora de levan- 
tarmos as cabeças , que nos chega a 
redempçaô : movamo-nos , mas tað 
vagarofos , que a cada paflo firme- 
o O pé, eapertemos o punho: pa- 

çaô as voflãs lanças, que faô pega- 
- | das 


. 


Di 


330 Historia GERAL | 


Era vulg. das aos braços; vós, e as armas hum 
corpo indivifo : naô vos efpantem 
aquelles gritos, que fað ar, que leva , 
o vento : Eu eftou lendo a vitoria | 
nos vofos femblantes: o dia he nof- | 
fo, Veípera do Triunfo de Maria |, 
nofla Protectora: A elles; e em quan- 
to houver mãos para matar, Ninguem ' 
as occupe em prender. No feu poto | 
o Rei clamava em tom de feguran- | 
ça » que fuperiormente fe lhe infpi. ` 
rava : Já vem a multidaô encontrar o 
feu deítroço nas noflas eípadas : Ani- 
mo , Portuguezes , que hoje triunfa a 
Igreja Santa; hoje fe rime o noflo 
Reino; hoje he o dia da nofla liberda- 
de : o triunfo he certo., que Deos 
eftá comnofco ; o Deos, que aqui 
hos trouxe fem temor , nos ha de dar 
a viétoria com prazer: Íegui o voflo | 
Rei, que vos ha de acompanhar no | 
perigo para fazer a gloria commua, 

À efte tempo os Portuguezes fac- 
cionarios de Caítella na vi-guarda nos 
enveítiaô. Em defempenho do feu vo- 
to fahio a enfopar nelles a lança o 
bravo Gonçalo Annes de Caítello de 


~ 


Vi- | 


DE PORTUGAL, Liv. XXI. 331 


Vide , que opprimido da multidað , Era vulg. 
foi a tetra; mas foccorrido com tem- 
po, foi defempenhando a promefia 
com tal defembaraço, que caufava ef- 
panto. A vá-guarda do Condeftavel 
enveítida por muitos dos mais valero- 
fos Caftelhanos, depois de huma re- 
filtencia incrivel, era obrigada a re- 
cuar até ao corpo da batalha, que fe 
abrio para ateceber. O Rei fahio en- 
tað do feu pofto para acodir ao peri- 
go da gente do Condeftavel, e ti-: 
rando da eípada , foi ferindo os ini- 
migos, e clamando : Adiante, Senho-. 
res, que ao voflo lado vai peleijando 
o voflo Rei. O valerofo Alvaro Gon- 
calves de Sandoval, que o ouvio, lhe 
efperou .o golpe , e lançando-fe a el. 
le , O fez ajoelhar , e arrancou das 
mãos as armas. O Rei com impul(o 
vehemente foi fobre elle, recobrou a 
efpada, e foccorrido por Martim Gon- 
çalves de Macedo, matáraô o bravo 
Sandoval. Rar 

Nefte lance , vendo el Rei a pé 
peleijando como o foldado mais ordi> 
nario , o nofio valor obrou heroicida- 

. des, 


332 HISTORIA GERAL 


Era vulg. des , que excedem todo o encareci- 


mento , dignas de mudar a Hiftoria 
em Panegyrico. Os golpes erað tað 
efpantofos , que faziaô eltremecer os 
valles. O Condeftavel enfurecido pa- 
recia fera indomita , que para ambos 
os lados defpedaçava a preza. Os bra- 
vos vencedores da de Trancofo com 
Joað Fernandes Pacheco na fua téfta, 
ainda agora fe moftravad maiores ho- 
mens, que entað. No ardor defa re- 
frega vio o Condeftavel ir pelo ar hue 
ma lança, que até hoje nað fe fabe quem 
a deípedio , e entrando pelo campo 
dos Caftelhanos , derribou a feu ir- 
maô o Prior do Crato , de cujo cada- 
ver já mais houve noticia a pezar de 
todas as diligencias.. Morto o Alferes 
Mór de Caftella , abatemos o Eftan- 
dante Real , e a efta vita os noflos 
 clamáraő : vidtoria, que os Caftelha- 
nos fogem. Como fe eta voz fora 
hum trovad horrorofo, paflado pou- 
co mais de meia hora de combate, 
os inimigos começaô a perder o campo, 
os noflos a matar fem piedade, acaban- 
do vingança a que principiou = 


EE RE 


| 


DE PORTUGAL, LIV. XXI. 333 


, O Rei de Caítella fem paciencia Era vulg: 
para fer mais tempo teftemunha das 
noflas gentilezas, da fua ruina, e do 
deíprezo da fua Infignia Real, a to- 
do o correr levou as nove leguas , que 
eraô do campo da batalha a Santa- 
rem, Vafco Martins de Mello o mo- 
“co, que ovio fugir, fem mais com- 
panhia , que a fua temeridade , foi 
em feu alcance para cumprir o voto 
de o prender, ou pôr as mãos; mas 
os Caftelhanos da guarda, que o co- 
nhecêrad, e viraô fó, carregárad Ío- 
bre elle, e o abriraô a golpes, Afim 
acabou efte gentil Fidalgo , que fe 
confultafle o valor com a prudencia , 
afim como o fez com a indifcriçaô, 
poderia o cumprimento da fua pro- 
mefla ter hum exito mais feliz. O Rei, 
que combatia, fe aproveitou da con- 
fufaô , e-defordem do campo pela re- 
tirada do feu Monarca : os foldados 
redobrárad o ardor, e a furia : a car- 
nagem era efpantofa , e os inimigos 
{ó fe tinhã6 por felices fe lhes davaõ 
tempo de fugir ; já fem alentos para 
a defen(a deíde o ponto, em que ne 
i Ca- 





334 Historia GERAL 


Era vulg. dêra6 a jactancia de vencedores , e 


entráraô a fentir a realidade de ven- 

cidos. - | 
Fatal foi o deítino da fua infan- 
taria em huma terra defconhecida , 
donde , além do exercito , deíceo a 
chufma dos homens do campo , que 
apanhando-a errante , e difperfa , fez 
nella hum eftrago horrivel. Até da cé- 
lebre Forneira de Aljubarrota , que 
era mulher de efpiritos formidaveis 
deíde a fua mininice, chamada a Pif- 
queira, fe conta fahíra a campo com 
a fua pá, que mé parece fe guarda 
até hoje, e que com ella matára fete 
inimigos. O número total deítes infe- 
lices paflou de doze mil, que muitos 
annos com os feus oflos defcarnados 
branqueárad o campo da batalha. Os 
cativos forad tantos , e fe davað taő 
baratos , que o preço de muitos ho- 
mens nada deípertava a cubiça de qual- 
quer foldado. Em Aljubarrota ficou 
banhada no feu fangue a flor da No- 
breza de Caítella : Aljubarrota foi a 
Sepultura do Povo de Hefpanha , af- 
fim como o campo de Canas a do Po- 
vo 


DE PORTUGAL, LIV. XXI. 335 


vo de Roma. Todo o trem importan- Era vulg. 
tifimo, com que qo Rei, tantos Fi- 

dalgos , e exercito taô numerofo fa- 

hio das {uas terras , ficou em nofio 
poder ; os foldados , e paizanos bem 
remunerados das perdas precedentes, 

que tinhaô padecido, 

Dos Portuguezes rebeldes , que 
voltárad o rofto á Patria para fegui- 
rem o partido de Caftella, morrêrad 
o Prior do Crato D. Pedro Alvares 
Pereira , e Diogo Alvares, irmãos do 
Condeftavel ; Gonçalo Vaíques de 
Azevedo, e feu filho Alvaro Gonçal- 
ves ; o Conde de Barcellos D. Joaô 
Aflonfo de Menezes , irma6 da def- 
graçada D. Leonor, caufa de tantos, 
e tað diuturnos eftragos em Portugal, 
que Deos ainda confervava com vida 
para teffemunha da derrota das fuas 
idéas. O meímo deftino tivera6 os Al. 
caides Móres de Leiria , Obidos, e 
Alemquer , que por devoçaô fe achá- 
rað na batalha, Dos noflos faltára6 
cento e vinte homens ; mas de pef- 
foas de confideraçaô fó Vafco Martins 
de Mello, Mendo Aflonfo de Béja, 

e 


336 Historia GERAL 


Era vulg. e os Eftrangeiros Joað de Monferras 


ra , e Bernardim Sola. Da nobreza de 
Caftella foi paflada á efpada huma gran- 
de quantidade , que cobrio de luto 
todas as cafas illuítres daquelle Rei- 
no, que na vida da Rainha D. Brites 
quiz defaftogar o feu fentimento , co- 
mo caufa de tantas ruinas , fe a au- 
thoridade do Arcebiípo de Toledo nað 
a amparára. - 

Em quanto o Rei triunfante cele- 
brava no campo a vidoria, o de Caf- 
tella chegou a Santarem pela.meia noi- 
te, reprefentando no interior as mef- 
mas imagens do anno paflado, quan- 
do levantou o fitio de Lisboa. Duvi- 
davaô os da Villa abrir-lhe a porta, 
- nað crendo chegafle a ella em tal ef- 
tado o Chéfe do exercito eftimado iu- 
vencivel , mas defenganados que era 
o feu Rei, o recebérad em filencio, 
“e elle entrou fem dizer palavra; o 

Rei de aflito , os vafiallos de lafi- 
mados. Afim efteve largo elpago re- 
coftado , e levantando-fe depois como 
frenetico , fe dizia a fi meímo : Ah 

Deos ; que Rei fou taô'defgraçado! 
a | Åra 





DE PORTUGAL, LIV. XXI. 337 


Arrancai-me efta vida , já que naó Era vulg. 
foube perdella entre os meus, Quize- l 
rað confolallo os afliftentes com a lem- 
brança , de que elle nað era o pri- 
meiro Rei vencido , e entre outros 
lhe nomeárað a feu Pai D. Henrique , 
que perdéra a batalha de Naxera , fem 
que por hum lance da fortuna contra- 
ria a fua reputaçaô ficafle ofendida, 
Afim he , replicou elle , mas effes 
Reis, e meu Pai foraô vencidos por 
quem era capaz de vencer : porém 
Eu , derrotado pelo Meftre de Aviz, 
que jå mais obrou acçaô de honra, 
e por huns poucos de Portuguezes 
deípreziveis, toíquiados, e fem bar- 
ba, que gloria alguma Eu teria fe ma- 
tafle a todos; vio o mundo até ago- 
ra exemplar femelhante dedeshonra, 
e de deígraça? | 

Preoccupado. defte temor , fem 
alentos para refazer a fraqueza com 
o alimento , mandou lhe efquipaffem 
huma barca , nað fuccedefle feguillo 
o Meftre de Aviz, e na meíma noite 
paflou para Lisboa á furdina , aonde 
efteve dous dias occulto na não que 


TOM. V,. Y q 


en 


| 


338 Historia GERAL 


Era vulg. o traníportou a Sevilha. A 17 de Agof. 


to fahio da barra, ordenando á arma- 
da que o feguifle , e chegou áquel. 
la Capital de Aridaluzia, fem encon- 
trar na fua entrada mais que corações 
abatidos , e femblantes confternados : 
Imagens da fortuna contraria , que 
vellem os trages dos que ella defcom- 
poem. Os applaufos , as congratula- 
ções , que.elle havia receber te vieffe 
vencedor, conveitérad-fe em queixas, 
em laflimas de quem vinha vencido : 
Murmurações , que elle mefino autho- 
rifava com o luto , que nað deípio o 
yeo da vida, com a conhfiaô de fer 
o Rei mais delgraçado , nað pela ba- 


“talha que perdéra ; mas pela ganhar 


quem elle naô penfava. Enta5 fucce- 
deo em Sevilha , que hum Portuguez 
ordinario foffe maltratado por hum dos 
Officiaes de Palacio. ORei, que vio a 
acçaô, etevea vingança por muito de- 
{igual á injúria de Aljubarrota , diffe ao 
Ofhcial : Nað o trateis afim 5 porque os 
da fua Naçaô, que me feguirad, per- 
dêraô a vida na minha prefença obran- 
do façanhas portentofas , € os que 3 
ra 


DE PORTUGAL , LIV. XXI. 339 


ta6 contra mim me vencêraó : Ref- Eta vulg. 
. pofta , que prova bem os fentimentos 
Íublimes defte Principe no abatimen- 
to da fua fórte. ? 
No mefmo ponto que no campo 
fe declarou a vitoria a fez pública 
em Lisboa huma voz , que ninguem 
foube donde fahíra. Os moradores le- 
vados nas azas do alvoroço , corria6 
de tropel aos Templos para pedir o 
auxilio do Deos dos Exercitos. Quan- 
do fe verificou a noticia do lugar, 
“hora, e circunftaneias do triunfo con- 
forme com a primeira, que fe temia 
“vaga, e incerta; nað cabiaô no peito 
os corações, que fahiað pela bocca a 
offerecer-le vitimas de agradecimen- 
“to ao Ceo. As Pragas qué fe tinhaô 
fubmettido á protecgað de Caftelia, 
pela retirada do feu Rei o abandoná- 
-raô , e obrigadas a fubmetter-fe ao 
Vencedor , ellas quizeraô prevenir o 
feu refentimento , implorando a cle- 
mencia , que encontráraô benigna ás 
-promefias conftantes da fua fidelidade, 
| Rei, que fe a refiftencia o irrita- 
va, à Íubmiflas o abatia , a todos 96 
Y ii que 


F 
a 


340 Historia GERAL 


Era vulg. que vinha6 humilhar-fe affegurava o 
efquecimento do paflado, tað modef- 
to no triunfo, como fe elle eftivefte 
na fituaçaô de vencido. 

- Os noflos prifioneiros, que efta- 
vað em Santarem, entre elles o Mef- 
tre de Chrifto D. Lopo Dias de Sou- |, 
fa, o Prior do Crato Alvaro Gonçal- | 
ves Camelo , e D. Rodrigo Alvares | 
Pereira , irmaô do Condeftavel , pe- | 
los movimentos , que obferváraS na . 
Praça a noite da chegada do Rei , af- 
fentáraô , que elle perdêra a batalha. | 
No dia feguinte já certos da victoria, 

e que todos os Caítelhanos principaes 
tinhaô partido da Villa a embarcar-fe 
na armada ; elles arrombárad os care , 
ceres, convocárad o Povo, e levan- 
do a bandeira do Senado acclamárad 
pelas ruas o feu Rei. À eftas vozes os 
Caftelhanos acabárad de perder o 
animo , muitos fe refugiárað nas Igre- 
jas, os mais foraô prefos. Ainda o 
Rei fe detinha em dar graças a Deos 
no Mofteiro de Alcobaça , e em man- 
dar fazer fuffragios pelas almas dos 
que morréraó na batalha, quando foi 
avi- 


- „ere e e it oae 


DE PORTUGAL, Liv. XXI. 341 


avifado da reducçaS de Santarem. De- Era vulg, 
pois teve o da fugida dos Comman- 
dantes de varias Praças para Caftella, 
a faber : Gonçalo Tenreiro de Alem- 
quer ; Affonfo Lopes de Texeda de 
Torres-Novas ; de D. Henrique Ma- 
noel de Sintra; de Joað Rodrigues 
Portocarreiro de Villa-Real; de Vaf- 
co Porcalho de Villa-Vicofa ; de Mar- 
tim Annes de Barbuda de Monforte ; 
e de Garcia Pires de Mouraõ. 
Veio el Rei de Alcobaça a Santa- 
rem receber as congratulações do feu 
Povo , e as homenagens das Villas 
irmmediatas ; fubmiísões , que aflegu- 
ravaô a fua firmeza no Throno ; e 
cuidou em recompenfar aquelles, que 
fielmente o ferviraô no tempo da re- 
volta, e confulad. Os primeiros que 
experimentáraô os efeitos da piedade 
do Rei , foraô mais de mil prefos 
Caftelhanos , que eftavað em Santa- 
rem , e gratuitamente pôz em liber- 
dade ; ordenando ao famofo Gonçalo 
Annes de Caíftello de Vide, e a ou- 
tros Cabos do Alem-Téjo , que fe re- 
colhiaô para a Provincia, os aii 
at 


342 Hisroria GERAL 


Era volg. até a fronteira com fegurança, A mef- 


ma graça concedeo a outros muitos, 
que diflimulava foflem embarcar-fe no 
reto da fua armada , que ainda efta- 
va em Lisboa. Nað participou della 
o célebre Pedro Lopes de Ayala, que 
no disfarce de pobre, hia todos os 
dias receber a fua efmóla a cafa da 
Condeça, viuva de Barcellos , aonde 
o conheceo hum criado. Homem tað 
importante, e tað rico, foi defcober- 
to ao Rei, que o mandou fegurar em 
Leiria, e pagou pelo feu refgate trin- 
ta mil dobras, e trinta cavallos. 

O Grande Condeftavel, como fe 
diflinguira entre todos no ferviço, 
tambem o devia fer nos premios. El. 
le foi criado Conde de Ourem, com 
promefla de nað nomear o Rei outro 
em fua vida : Titulo, que vivendo 
ainda Joaô Fernandes Andeiro , lhe 
prognofticou hum Efpadeiro de Santa- 
rem , que concertando-lhe huma ef- 
pada, e querendo D. Nuno pagar-lhe, 
dife que o faria, quanda foffe Con- 
de de Ourem , como agora exacta- 
- mente cumprio , pagando-lhe se a 
le 





DE PORTUGAL, LIV. XXI. 343 


liberdade , que tinha perdido por (e Era vulg, 
haver incorporado com os Caftelhanos. 
Efa mercê feita ao Condeftavel foi o 
primeiro golpe, que principiou a abrir 
os fundamentos para a fua grande Ca- 
fa, que enlaçada na de Bragança. le- 
vou o feu-fangue a todas as Téllas 
Coroadas da Europa : mas na fua pel- 
foa ella foi huma confequencia das 
muitas com que os Reis Predeceflores 
haviaô honrado os feus Maiores. Os 
grandes homens de quem elle defcen- 
dia, a antiguidade do feu Appellido, 
a nobreza da fua Cafa, tudo concor- 
ria para fazer a D. Nuno Alvares Pe- 
reira hum Heróe completo. Baltava-lhe 
a memoria de feu Pai o Prior do Cra- 
to D. Alvaro Gonçalves Pereira , que 
tanto fe aflignalou na gloriofa batalha 
do Salado, em tempo do Rei D. Affon- 
fo IV. como eu deixo efcrito na vi- 
da defte Principe, para D. Nuno mes 
recer as attenções do feu Soberano y 
que tinha de fer Avô dos feus mef- 
mos netos. 

Hum mez depois deo ao mefmo 
Condeftavel. o Condado de Barcellos, 

| e 


344 Historia GERAL . 


Era vulg. e fez outras muitas mercês , entre el- 


las as rendas de Guimarães, Ponte de 
Lima, Valença, Villa-Real, Chaves, 
Atouguia, e Bragança. A Diogo [oe 
pes Pacheco mandou el Rei reftituir 
os Paços de Bellas com as fuas quin- 
tas, e a feu filho o valerofo Joað Fer- 
nandes Pacheco deo a Villa de Oli- 
veira de Conde , e outras terras. À 
Egas Coelho , que com elle viera da 
Beira, e depois com elle fugio para 
Cafítella , ambos infieis, e ingratos , 
fez mercê dos Lugares de Vella , e 
Germelho. A Martim Gonçalves de 
Macedo, que na batalha o ajudára a 
livrar-fe. de Alvaro Gonçalves de San- 
doval , deo as Aldeias de Algozelo, 
e Pinelo , com os bens de Martim 
Affonfo de Seixas, parcial de Caftella. 
A Martim Gonçalves do Carvalhal, 
tio do Condeftavel , fez mercê das 
rendas , terras, e almargem da Cida- 
de de Tavira, que forað de feu fo- 
brinho Fernaô Pereira ; e naquella 
Cidade veio viver feu filho Fernaô 
Martins do Carvalhal; deixando nel- 
la defcendencia , de que ainda hoje 

Al- 


— n ea ri ie om - 


DE PORTUGAL, LIV. XXI. 345 


Algarve fe confervad familias com os Eta vulg. 
appellidos de Pereiras , Berredos, Val- 
concellos , e outros em que fe enla- 
çáraô por cafamentos , dos quaes eu 
dei noticia na minha Aula da Nobre- 
za , quando elcrevi as Memorias dos 
Vereadores de Tavira. Todos os mais 
Fidalgos foraô remunerados á propor- 
ção ; e eftas acções tanto de .juítiça , 
ferviraô depois para dous lifongeiros 
fazerem arrepender o Rei, e tirar q 
melmo que tinha dado a vaflallos tað 
diftinctos ; defgoftar o Condeftavel, e 
perder os teia + que fe 
lançáraô do lado dos inimigos , como 
eu direi em feu lugar. Feita efta bre- 
ve digreflaô , voltarei ao Campo de 
Aljubarrota para continuar no Capitu- 
lo feguinte com a narraçaô das noti- 
cias curiolas , que fe feguiraô a efta 
milagrofa victoria, que aflegurou a li- 
“berdade da Patria , joia fobre todas 


a mais eftimada da altiva Naçaô Por-. 
tugueza. 


CA- 


Era vulg. 


346 Historia GerAL 


CAPITULO V. 


Do mais que fuccedeo no campo da ba- 
talha , e depois della , com o juizo 
mais provavel a refpeito da Forncie 
ra de Aljubarrota, 


Amii el Rei pelo campo depois 
da vitoria, e paflindo por Diogo Al- 
vares Pereira, irmaô do Condeftavel, 
pegando-lhe , e chamando pelo fea 
nome , lhe dife com mais benigni- 
dade do que pedia a occafiaô , e as 
offenfas. Diogo Alvares , aqui eftais 
vós? Eu vos moftrarei hoje, que fou 
voflo melhor amiga, do que vós me 
tendes fido fervidor. Ao mefmo tem- 
po faou a voz vaga, e falfa, que ma- 
tavað o Condeftavel. Correo el Rei a 
foccorrello , e encarregou a Egas Coe- 
lho a guarda de Diogo Alvares ; mas 
os foldados , que ighoravad a pefloa, 
e o conheciad Caftelhano , fem que 
Egas Coelho os podeffe deter , o fi- 
zeraô em pedaços. Quando el Rei vol- 
tou, e o vio morto, fentio a fua def- 

; gra- 


DE PORTUGAL, LIV. XXI. 347 


“graça, e por iflo recebeo com me- Era vulg. 
nos alvoroço a alegria com que vinha 
faltando o bravo Antaô Vaíques de. 
Almada enrolado no Eftandarte Real 
de Caftella, que pôz aos feus pés, e 
lhe diffe: Tomai , Senhor, effa Ban- 
deira do maior inimigo , que tinheis 
no mundo. 
Depois veio com os feus folda- 
dos o capitaô Gonçalo Rodrigues na- 
-tural da Certã, elhe prefentou a gran- 
de caldeira, que fe guarda no Mof- 
teiro de Alcobaça, e deo á fua fami- 
lia o appellido de caldeiras em me- 
moria do valor deímedido com que 
efte feu afcendente a ganhára aos ini- 
migos. A fua grandeza he tað def- 
marcada , que dizem fe coziað nella 
quatro bois ; outros , que as rações 
para todos os criados do Rei de Caf- 
tella , que erað trezentos. Quando 
Filippe II.a vio no Clauftro daquelle 
Mofteiro , houve hum Cafelhano ze- 
lofo, que lhe dife mandaffe tirar da~ 
quelle lugar o defpertador de huma 
memoria á fua Naçaô injuriofa , e 
fundir della hum fino. Certo Fidalgo 
; pru- 


348 Historia GERAL 


Era vulg. prudente , que hia mais chegado ao 


Rei, reífpondeo : No Señor , Je quede 
aqui; porque fiella fiendo caldera fue- 
na tanto, que fera fi fuere campana ? 

Os deípojos da Tenda Real , e 
de tantos Fidalgos , que feguiað o feu 
Rei , foraô tað preciofos , e tantos , 
como de huma Monarquia podero(a, 
que mandava grande parte do feu Po- 
vo a eftabelecer-fe em novo Reino, 
que-indifputavelmente reputava pro- 
prio. Tomarað-fe as defafeis peças de 
artelharia com todo o feu trem, toda 
a bagagem, os cavallos, e carruagens 
do campo. Na Tenda del Rei, entre 
tantas preciolidades , fe fez mais ef- 
timavel a Reliquia do Santo Lenho , 
que elle tirára da Sé de Burgos , e 
depois fe deo ao Condeftavel para a 
collocar no Convento do Carmo de 
Lisboa , aonde fe guarda com culto 
religiofo. 

No mefmo Convento eftá o Sce- 
ptro de ouro, que fe achou entre os 
mais deípojos , e fe diz fora fabrica- 
do das arêas do Téjo, que cria grãos 
defte metal preciofo. O Rei, com o 

del. 


a mo om em e a cp ami è 


DE PORTUGAL, LIV. XXI. 349 


defprezo de Cefar no dia de Farfalia , Era vulg- 
abandonou tantas riquezas aos folda- 
dos , que as haviaô ganhado, fem re- 
fervar para fi mais, que os cavallos, 
as armas , a artelharia, € o feu trem, 
que foi o primeiro defte genero, que 
fe vio em campo nas Hefpanhas. 
Quiz moftrar o Ceo , que fe in- 
tereflava no noflo triunfo ; porque no 
maior ardor da batalha , quando el 
Rei invocava o patrocinio de S. Ber- 
nardo para lhe acodir no perigo, em 
que o pôz Alvaro Gonçalves de Sando- 
val, que lhe tirou das mãos a facha, 
e o fez ajoelhar: Elle meímo confefe 
fou depois em Alcobaça, que víra fo- 
bre a Tenda do Rei inimigo hum Bac- 
culo Abbacial, que empunhava huma 
maô , e braço com manga como de 
Monge, e que do Bacculo pendia hu- 
ma Clamide militar, como tinta em 
fangue ; vifta, que lhe fervio de con- 
forto efpecial para recobrar alentos 
com a certeza, de que tinha em feu 
favor a protecçad do Santo Abbade. | 
Tambem obfervárad muitas pefloas, 
que em quanto durou o emp. 
Qa 


350 Historia GERAL 


Era vulg. fobre o noflo Eftandarte Real volita- 


vað varias pombas brancas , que os 
-interpretes entendéraO annuncios da 
futura victoria. Naô he menos fingular 
o modo da morte do Prior do Crato 
D. Pedro Alvares Pereira , abonado 

ela grande authoridade de feu irmað 
o Condeftavel, que depôz, como eu 
deixo dito, vira fahir do noffo cam- 
po huma lança defpedida fem impul- 
fo humano , que entrando pelo dos 
Caftelhanos , bufcára o Prior , e atra- 
veflando-o pelos peitos dera com elle 
morto em terra. 

As noflas gentilezas , que entað, 
eraô igualmente vulgares , e monf- 
truofas, Manoel de Faria e Soufa as 
quiz marcar na fua Hiftoria com os 
Epitafios arrogantes, e graciofos , que 
foraô defcobertos na Villa de Chaves 
de dous bravos Capitães Portuguezes, 


que quizeraô deixar á pofteridade ef-. 


tas memorias do feu efpirito façanho- 
fo. Diz o primeiro: 


Aqui 


DE PORTUGAL, LIV. XXI. 351 


Aqui JAZ Simon AntOM, — Etavilg. 
Que MATOU MUITO CasTELAD, 

E DEBAIXO DESTE COVOM 

DeEsaria A QUANTOS SAÔ. 


Dizia o fegundo em Latim macarronico, 


Hic jacer ANTONIUS Peris, 
VassaLLUS Domini REGIS, 
ContTRA CASTELLANOS MISSO, 
OCCIDIT OMNESQUE QUISO}; 
QUANTOS VIVOS RAPUIT 
OMNES ESBARRIGAVIT 5 
PER ISTAS LADEIRAS 
TULIT TRES BANDEIRAS; 

E FEBRE CORREPTUS 
Hic JACET SEPULTUS ; 
FAacianT CASTELLANI FESTE, 
QUIA MORTUA EST SUA PESTE. 


Por tantas circunftancias fe fez efta 
batalha a mais célebre daquellas ida- 
des , ou ella fe contemple pela grande 
defigualdade do poder de ambos os 
exercitos , ou pela pouca experiencia 
dos noflos Officiaes contra tantos Ca- 
pitães aguerridos , fem que da nofia 
parte houveflem as vantagens de ter- 

Te- 


262 Historia GERAL | 

Ere vulg. reno, e outras de foccorros imagina- 
rios , que inventáraô os Authores Caf- 
telhanos para desfigurarem a Portugal 
a gloria de dia taô formofo :..Dia bri- 
lhante, em que fe decidio o negocio 
mais grave de huma Naçaô , que he 
a (ua liberdade; que firmou a Coroa 
na cabeça do noflo Rei natural , e 
que encheo de aflombro a expectaçaõ 
de toda a Europa, até entaô fuípen- 
fa fobre o arrojo da nofla chamada 
temeridade. 

Já diffemos , que depois de ven- 
cida a batalha, el Rei veio ao Mof- 
teiro de Alcobaça dar graças a Deos, 

e fazer- fuffragios pelos feus mórtos. 
Era entað Abbade D. Fr. Joað de Or- 
“nellas, generofo, e magnanimo, que 

fuftentou o noflo exercito depois que | 

entrou nas fuas terras, até que fahio | 

dellas, e foccorreo el Rei com gente, | 
que enviou commandada por feu ir- 
mað Martim Ornellas , e obrou no 
conflito acções magnificas em ferviço 
da Pátria. O meímo D. Abbade, de- 
pois de defpedir feu irmaô para o 
campo , fe poítou na ponte de Cha- 
que- 


DE PORTUGAL , Liv. XXI. 353 


queda com tres companhias , e muita Efa vulg: 


paifanage a eíperar os Caftelhanos fu- 
gidos da batalha, aonde matou innu- 
meraveis: Serviço, que o Rei lhe re- 
munerou com lhe deixar duas dasdi- 
tas companhias para guarda da fua 
Pefloa, diftinçaô da fua Dignidade, e 
com outras muitas mercês, que conf- 
tað das Cartas de Doações feitas ao 
Motfteiro. 

Hum dos inimigos mortos ás mãos 
da gente do Abbade,. foi Ruy Dias de 
Roxas, marido de D. Maria de Gue- 
vara, Cubicularia do Rei de Caítella, 
que aos Fidalgos , que entravaõ na 


fua Tenda, coftumava perfumar , di- | 


zendo , que o fazia para lhes tirar o 
mão cheiro , que traziad das cafas, 
e trato com os Portuguezes Chamor- 
ros ; nome com que nos affrontavad 
os Caftelhanos , porque entaô princi- 
piavamos a cortar as barbas. Diogo 
Lopes Lobo fez prifioneira a efta Da- 
ma afcarofa , e paflando acafo pelo 
lugar, aonde eftava o cadaver de feu 
marido , fe lançou (obre elle a incen- 
fallo -com os aromas das fuas lagri- 


TOM. V. Z mas. 


354 Historia GERAL 


Era wilg. mas. Hum foldado » que a acompas 


nhava , e fabia o que ella em nofio 
deíprezo practicava na Tenda do feu 
Rei, lhe diffe com ar militar : Que 
he ifo , bella Dona? Porque nað guare 
daftes para agora os vofios perfumes ? 
Por certo vos eraô elles agora bem 
neceflarios para embalfamar efie ca- 
daver , que deita peior fedor, que o 
mão cheiro dos chamorros , que vos 
nauzeava, | 

Todos os mortos Portuguezes 
mandou o Rei conduzir para o Mof- 
teiro de Alcobaça , aonde forað fe- 
pultados. A mefma piedade fe ufou 
“com o corpo do Conde D. Joaô Af- 
fonfo Tello, e com ella lhe quiz el 
Rei pagar o confentimento , que de- 
ra para a morte de Joað Fernandes An- 
deiro , e depois della hofpedallo em 
fua cafa , ou talvez porque agora o 
feu voto fizera refolver o Rei de Caf- 
tella a dar-lhe a batalha, que foi an- 
tecedente de tað gloriofa vi&toria. Aos 
mórtos inimigos, he opiniað vulgar, 
fe negára a fepultura : falta de pie- 
dade apparente , que permittiriao Ceo, 


oO dm ted um a ee -A ei oa.. 
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DE PORTUGAL, LIV. XXI. 356 


“como fe entendeo pelo fucceflo nad Era vulg. 
ordinario , que fez eftimar por indi- 
gnos de gaflar a terra , e que até 
perdoafle a voracidade dos brutos a 
huns cadaveres , que foraôd depofita- 
rios de almas feparadas da communhaS 
- da Igreja, Sedarias do Scifma , eco- 
mo taes incurfas nas cenfuras fulmina- 
das pela fua verdadeira cabeça o Pa- 
pa Urbano VI. Efta paffagem he de 

ernað Lopes , que trata com mais 
extenfaO os effeitos da que pareceo 
inhumanidade na falta da fepultura dos 
mórtos. 

A memoria que fica tocada da 
forneira de Aljubarrota , que fe diz 
matára com a pá do feu forno fete 
Caflelhanos , que fe retiravad da ba- 
talha, he hum ponto de tradiçaô, de . 
que eu devo dar noticia mais indívia 
dual, ainda que naô a refiraô os nof- 
fos melhores Efcritores. Efta mulher 
fe chamava Brites de Almeida , de - 
alcunha a Pifgueira , e ha quem di- 
ga , que ella era natural do Algarve 
nafcida na Villa de Albofeira, dota- 
da de forças tað pouco vulgares no 

| Gii feu 


356 Historia GERAL 


Era vulg. feu fexo , que nað fó difputava va- 
Jentias com hum ; mas com alguns 
dos homens mais robuftos daquellas 
idades. He tradiçaô conftante, que ef- 
ta Amazona Lufitana com huma pá 
de ferro encabada em huma vara de 
pão matára fete Caftelhanos , que vi- 
nhaô fugindo da batalha de Aljubarro- 
ta. Entendem huns , que ella achára 
dentro no forno dormindo eftes fete 
infelices fatigados do feu trabalho, e 
que lhes fizera o fomno perpetuo : 
Outros , que efgremindo no campo 
aquella nova clava, á força de golpes 
deitára em terra mórtos os fete Caf- 
telhanos. 

O certo he, que a pá com a fi- 
ra, que eu digo, fe guardava nos 
Paco: do Confelho , e o forno efta- 
va na rua direita da Villa, Fregue- 
fia de S. Vicente , junto ao celleiro 
dos Monges de Alcobaça. Exifte ain- 
da hoje a dita pá , e os moradores à 
tinhaô em tanta eltimaçaô, que nað 
fó a levavaô na Prociflaô, que fe faz 
todos os annos a 14 de Agofto, dia 
da batalha ; mas quando efte poa 
: dir AA P - 


o qe dm ame 


DE PORTUGAL, LIV. XXI. 367 


paffou ao dominio de Caftella , te- Era vulg, 
mendo elles, que Filippe II. quizeffe 
derrotar a fua tradiçad com a ruina 
do inítrumento della, que era a pá: 
Hum dos mais honrados , chamado 
Manoel Pereira de Moura, a metteo 
dentro de huma parede dos ditos Pa- 
ços , aonde fe . guardou até ao tempo 
da feliz Acclamaçaô de D. Joaó IV. 
em que a clava da forneira tornou a 
fahir a público. Os effeitos moftrárad 
o acerto dos moradores de Aljubar- 
rota, que por muitas vezes foraô no- 
tificados de ordem dos Reis de Caf- 
tella para remetterem á Corte . de 
Madrid o inftrumento á fua Naçad 
injuriofo ; mas elles fempre fe defcul- 
páraô, com que a pá nað apparecia. 
Eu naô decidirei fe o combate 
foi no forno , ou no campo -, ainda 
-que me inclino á fegunda parte. Pa- 
rece que no forno dentro de huma 
Villa inimiga , nað viriað os Cafte- 
Jhanos refazer com o fomno as fuas 
forças laflas, expoftos ao perigo evi- 
dente de mais facilmente ferem mór- 
tos , ou preíos , e que antes poe 
| | sia 


368 -© Historia GERAL 


Era vulg. riaó recobrar-fe com o defcanço em 
algum efcondrigio pelos matos vifi- 
nhos , donde fe podeffem falvar em 
Santarem com o favor da noite. Eu 
tenho por mais provavel, que a for- 
neira , levada da grandeza do feu co- 
raçað , e fiada nas muitas forças, de 
que diffe era dotada , fahio com a 
paifanage , que de todas as partes def- 
cia a perfeguir os fugitivos , e que 
travando com os mais os combates 
contra os miferaveis mal armados, 
opprimidos da fadiga , medrofos , € 
cortados do temor , 4 fua parte ma- 
tou os fete, que aflegura a tradiçaô. 

— Tambem he fem queftaô , que 
muitos homens de Aljubarrota para 
levantarem hum padra6 impio á me- 
moria da façanha da fua forneira , fo- 
7aô ao campo da batalha , e trouxe- 
-Yaô huma quantidade de offos dos que 
nella morrêrað , e com elles fizerað 
huma calcada , que hia da cafa da 
forneira até ao forno. Efte efpscos, 
que era hum paffeio da deshumanida- 
de, moftravað elles aos Caftelhanos, 
“que por alii paflavaô , como Fi 
Es 


DE PORTUGAL, LIV. xxr. $59 


defafrontava a injúria recebida dos vi- Era vulgi 
vos com efte monumento injuriofo dos 
mórtos. Durou tantos annos a calça- 
da do forno, que nos noflos dias ha- 
via homens, que della fe lembravaô, 
e o Author da Chroúica dos Eremi- 
tas de Santo Agoflinho diz, que ain- 
da exiftia no feu tempo. | 
A Camara de Lisboa por hum 
aflento ; que nella fe tomou , refol. 
veo , que todos os annos no dia da 
batalha fe fizefe huma Prociflaõ fo- 
lemne, em que fe repetifem acções 
de graças a Deos , e a Marra Sans 
tilima por tantos beneficios , que a 
" {fua piedade derramára fobre a NaçaS 
Portugueza , ameaçada de hum duro 
cativeiro. O mefmo fe ordenou em 
louvor dos Santos Vicente, e Jorge, 
o primeiro Patrono da Corte, o fe- 
gundo o grito da guerra de Portugal, 
Advogado das fuas armas : Collume 
pio , que teve obfervancia pontual 
até ao tempo da intrufaô dos Filipe . 
pes de Caftella, que o tiverad 60 an- 
nos abolido; mas refufcitando o Reis 
no na peflua de D.Joað IV. em pa 
o Cio 


360 Historia GERAL 


Era vulg. elle tornou a reviver, e continua com 
o fervor primitivo. 

Eu concluo ete Tomo , nað fó 
com moftrar fegura a fucceflaô de 
Portugal eni Reis naturaes na Pefloa 
de D. Joaô I. Meftre de Aviz , que 
derrotou todas as pertenções de Caf- 
tella , para continuar no feguinte com 
as outras memorias importantes da 
fua vida depois do Interregno : Mas 
com a lembrança da exactidaS com 
que elle , e o Condeftavel cumprirad 
os feus votos edificantes. Determinou 
el Rei a fua romaria a Nofla Senho- 
ya da Oliveira de Guimarães, e fem 
embargo de huma diftancia tað gran- 
de como a de 40 leguas., fahio a cum- 
prilla a pé , acompanhado dos Of- 
ficiaes da Cafa, e da guarda de cem 
Béfteiros , começando-a do campo da 
batalha depois de ouvir Mifla , e fa- 
zer a Deos huma oraçad larga , efer- 
vorofa. Chegado a Guimarães , foi 
levado em prociflãô por todo o Cle- 
ro å Cafa da Senhora , aonde fe vef- 
tio nas mefmas armas, que trouxera 
na batalha , e mandando-fe pezar a 
ig pra- 


DE PORTUGAL, Liv. XXI. 361 


ptata, deo toda para a fabrica do re- Eta vulg. 
tabolo, que tem o Prefepe do Minino 
Deos , ainda que ha quem diga que ef- 
te retabolo o trazia na fua Capella o 
Rei inimigo, e que achado nos del- 
pojos, D. Joaô o dera à Senhora da 
Oliveira. Depois fez fundar o Moftei- 
ro da Senhora da Victoria, que nós 
dizemos da Batalha, e o deo aos Pa- 
dres Prégadores da Ordem de S. Do- 
mingos. O Condeftavel cumprio a fua 
promeffa na mefma fórma a Santa 
Marra de Ceiça em Ourem, e edifi- 
cou o Convento de Nofla Senhora do 
Carmo de Lisboa : Dous Padrões ma- 
gnificos , que confervad immortal a 
memoria da gloriofa batdlha de Alju- 
barrota, e dos dous Heróes, Autho- 
yes da nofia liberdade, o Rei D.Joaõ 
J., e o feu Condeftavel D. Nuno Al- 
vares Pereira. . 


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