HISTORIA
“PORTUGAL,
TOMO QUINTO.
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HISTORIA
GERAL
PORTUGAL,
E SUAS CONQUISTAS;
OFFERECIDA
Á RAINHA NOSSA SENHORA
D. MARIA I.
POR
DAMIAÖ ANTONIO DE LEMOS
| FARIA E CASTRO.
TOMO V.
LISBOA,
Na TyroGRAFIA ROLLANDIANA.
17386.
Com Licença da Real Meza Cenfória,
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INDICE
DOS CAPITULOS.
LIVRO XVII.
Car. I. Principio do Reinado de D.
- Fernando o Gentil, IX. Rei de Por-
g è o o . 5
- - II. O Rei D. Fernando fe empe-
nha em huma guerra funella com o
fim de conquiftar o Reino de Caflel-
o "a
a. o. au . 19
-- III. Ajula-fe a paz com Caftella ,
e fegundo cafamento para D. Fernan-
do com a fua Infante D. Leonor «
defprazer da Leonor de Aragað , e
fetratad outros acontecimentos. 38
- - IV. Tratafe da fegunda guerra do
Rei D. Fernando com D. Henrique
de Caficlla. . o o so
-- V. Modos delicados com que fe con-
duz a Rainha D. Leonor , fucceffos
do Infante D. Joaô, Scifma do An-
ti-Papa Pedro de Luna , e nova
guerra com Caflella, . . E 9
pos CAPITULOS.
LIVRO XIX.
CAP. I. Da guerra do Rei D. Fernan-
do com D. Foa I. de Caftella , e ou-
e fuecelios , que della foraô 1 ai
qo H Va alimento - de Yoa aiai
Andeiro com a Rainha, e perfegui-
çaô contra D. Foað, Mefire de p
que 0 repróva.
e - II. Carađer do Rei D. Maus
Juamorte, efepultura. . 117
LIVRO XX.
CAP. 1. gg pesa de Portugal no
principio do Interregno , que fe feguio
á morte do Rei D. rd. j per
=- lI. O Mefre de Aviz , nomeado
Governador do Alem- Téjo volta do
caminho , mata ao Conde de Ourem
Foað Fernandes Andeiro , e be ac-
clamado Regente do Reino. 147
-- II O Rei D. Foað I. de Capella
entra em Portugal ; o que lhe fuc-
Cê-
ÍNDICE
cede nefta invafað , efpecialmente com
a Rainha, , é hi 168
- = IV. Intenta a Rainha D. Leonor
dar morte ao Rei de Caftella. Def-
cobre-fe a conjuraçad. Succeffos de-
pois della. . à . č . 182
-- V. Varios fuccef]os militares depois
da batalha dos AÁtoleiros , e os mais até
ao fitio da Corte de Lisboa. 199
- - VI. Continuaçaô do fitio de Lisboa
com o mais que aconteceo até os Caf-
ne o levantarem, o 214
- - VII. Das expedições que fe feguirad
depois do jea id do fitio de
Lisboa, e como foraô convocadas as
Cortes de Coimbra, ` . 236
Oraçaó do Doutor Joað das Regras
recitada na primeira Seflaô das Cor-
tes de Coimbra. o o 252
- - VII. Continuaçad das Cortes de
Coimbra até fer acclamado Rei o
Principe Regente D. Joaô, 261
Dos CAPITULOS
LIVRO XXI
CAP. I. Acclamaçaõ do Rei D.foaô I.
chamado de Boa Memoria, X. Rei
de Portugal. ; á . 274
-~ - II. Das mais acções, que obrou o
Rei D. Joaô I. nas Provincias do
Minho, e Beiras . ., 290
- - III. Do que fuccedeo depois da en-
trada do Rei de Caftella em Portu-
gal. o o o o 307
- - IV. Efcreve je a famofa Batalha
de Aljubarrota, que decidio o nego-
cio da liberdade de Portugal. 328
-- V. Do mais que fuccedeo no cam-
po da batalha , e depois della com a
juizo mais provavel a refpeito da
Formira de Aljubarrota, ` 346
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REOR e ee 2 2 RE RE RE RE Re elled
PEE DEANAR a
HISTORIA GERAL
DE
PORTUGAL.
LIVRO XVI.
Da Hliftoria Moderna de Portugal,
CAPITULO L
Principio do Reinado de D. Fernando
o Gentil, IX. Rei de Portugal,
Na idade de vinte e dous annog Era vulg.
fuccedeo D. Fernando o Formofo a 1367
feu Pai D. Pedro , e entrou no domi-
nio de hum Reino forte, e focegado,
com vaffallos ricos, e contentes, os
thefouros Reaes bem providos, e Eni
Q
6 Hisroria GERAL.
Era vulg. do na figura de huma felecidade conf
tante, Deimentira6 os fucceflos as beni
fundadas efperanças , porque a paz ef-
timavel , e as riquezas para aquelle
feculo portentofis , cahitad nas mãos de
hum genio, que comíigo meímo difpu-
tou os exceflos da demafia no aflavel, e
noprodigo; no refoluto; esrmroníderas
do, na inconftancia , e na defgraça,
Foi elle avifado da morte de feu Pai,
é veio a Eftremoz para acompanhar ©
cadaver a Alcobaça ç aonde fe fez O
acto da fua inauguração com'as cere-
mônias coftumadas. O Rei moço , bi-
zarro na prefença , agil nas acções,
filho de hum Pai muito amado do Po-
vo, entrou a receber cultos officiofos
dos corações , que fe promettiad iù-
deftectiveis as fortunas em tantas bellas
qualidades.
— À economi? domefica lhe levou
` ` gs primeiras attenções: Criando para
` feu Mordomo Mór a D. Joaô Affonfo
de Menezes , Conde de Barcellos : pa-
sa Monteiro Mór a Gonçalo Annes:
para Chanceller Mór a D. Nuno Ro-
drigues de Andrade, Meftre es
is i e
DE PorTUGAL, Liv. xvir. 9
de Chrifto: para Cevadeiro Mór a Era vulg: *
Gonçalo Efteves : para -Falcoeiro a
Joa6 Gonçalves: para Guarda Mór a
Affonfo Ribeiro : para Porteiro da
Camara a Domingos Efteves : para
Elcrivad da Puridade a Joa6 Gonçal-
ves Teixeira: para Veador a Francif-
co Efteves , e outros Officiaes , que
até entaô recebiab dos Reis etes em-
pregos fem a propriedade , que tem
hoje muitos delles. Depois abrio os
feus thefouros , e mandou reparar as
Praças, e Caítellos, fem poupar def-
pezas , com tal força, actividade , €
diligencia , como fe tivefle eminente
a mais vigoro(a guerra ; provendo tos
dos dos Alcaides, que entendeo capa-
zes de os (uftentar com honra.
Creíceo nos Póvos à complacen-
cia na fem demora , com que mandoa
vender os votos do filho obediente ao
Chéfe vifivel da Igreja , e com que
cumprio exactamente o tetamento de
feu Pai. Continuando a moltrar a ex-
tenfaô do feu animo verdadeiramen-
te Real, naô fo admittio no Reino
honradamente a- Diogo Lopes Pache-
ns co,
8 Hrsrorra GERAL >
Ersvolg. co, e lhe fez entrega de- tudo , quan-
to o Rei D., Pedro mandára na ho-
ra da morte ; mas ordenou , que
aos herdeiros de Pedro Coelho; €
de Alvaro Gonçalves Coutinho , tos
dos matadores de D. Ignez de Caftro,
fe lhes reftituífle a honra , que antes
tiveraS as fuas familias , e todos os
bens, que haviaô fido de feus pais.
' Dadas efas difpofições , que ne-
ceflariamente fe faziaó acceitaveis pa-
ra inclinar os animos ao feu author ;
D. Fernando feguio o exemplo dos
feus Maiores na vifta do Reino, que
entað nað incommodava as Povoações
pelo trem moderado com que os Reis
faziaO as fuas jornadas. Por toda a
parte foi a fua liberalidade difpenden-
do varios generos de beneficencias ,
que feriað nas idades recommenda-
veis fe o Rei as talhafle mais pelos
moldes da prudencia , que pelas me-
didas dogofto. .
Efe o tranfportou para pôr ao la-
do com figura de mulher propria a D.
Leonor Telles, que o era na realidade
de Joad Lourenço da Cunha, Rana
e
DE PORTUGAL: LIV. XVIII. 9
de Pombeiro. Aquelle homem, que Em vulg.
paflou a Caftella , trazia pendente do
chapeo a deviza da fua affronta em
duas pontas , que diz Manoel de Fa-
ria eraô cocar indigno para tremolar
na alta fantafia de hum Fidalgo Por-
tuguez. Della teve o Rei D. Fernando
filhos, que morréraô meninos, a dous
Infantes fem nome na Hiitoria ; e a
Infante D. Brites, que nafceo em
Coimbra no anno de 1372 : foi lua
herdeira , e cafou a 14 de Maio de.
1383 com D. Joaô I. Rei de Caftella,
para trazer a Portugal huma innundai
çað de embaraços, que corrêrað dilu-
-vios de fangue , como veremos a feu.
tempo.
Sendo folteiro teve D. Fernando.
` baftarda a D. Ifabel, que naíceo em
1364, e calou com D. Affonfo Hen-
riques , Conde de Gijon ; Senhor de
Noronha, filho baftardo de Henrique
II. de Caftalla. Efte Rei, que fe eftimu-
Jou da indiferença com que feu filho
D. Affonfo tratava a efpofa, que elle
lhe déra , o defpojou dos (eus Efta-
dos , e reduzio a tal extremidade , pi
c
yo > Historia GERAL |
Eravulg. fe queixou em Avinhad ao Papa Gre»
gorio XI. , e em Pariz a Carlos V.:
Ret de França. Nada aproveitárad ao:
Principe jnfeliz eftes recurfos ; porque
Carlos VI. qne os concluio, pronun-
ciou contra D. Affonfo huma fenten-
ça tað fevera , que o tratou de re-
belde ao feu Rei , e o mandou fahir
de França. Elle fe retirou para a Ro-
chella , aonde o veio encontrar fua
mulher , que com elle viveo a ex-
penfas da generofa Vifcondeça de
Thouars , que lhes deo a Villa de
Marans nas terras de Aunis.
Oito filhos ficára6 defte matri-
monio de Aflonfo, e Ifabel , que fo-
rað D. Pedro, D. Joað , D. Fernan»
do , D. Sancho, D. Henrique, D. Nu-
no, D. Martinho Henriques , e D.
Conftança, todos com o appellido de
Noronha. Alguns deftes filhos do Con-
de de Gijon vierað a Hefpanha, aonde
cafou o primogenito D. Pedro , que
he tronco de cafas grandes, e depois
de viuvo foi Arcebilfpo de Lisboa. D.
Joa6 morreo no fitio de Belaguer em
Catalunha; D. Fernando foi ag
WG lie
pm em A rr mr eme
/ DE PoarocAL, Liv.xvim. qr
Villa Real, origem dos Marquezes Era vulg. :
deke titulo , Duques de Caminha,
dos Condes de Monfanto, e de Linhã-
res; D. Sancho foi Conde de Mira;
D. Henrique calou com huma filha
de D. Pedro Vaíques de Mello , Con-
de de Atalaia; D. Nuno foi marido de
D. Mecia de Ribadaneira , e ambos
pais de D. Joanna, que cafou com D.
Jfoaô Mafcarenhas , de quem defcen-
diaô os Marquezes de MontalvaS; D.
Martinho Henriques fervio ao Rei de
França Carlos VII.; D. Conftança foi
fegunda mulher de D. Affonfo , pri-
meiro Duque de Bragança , fém fi-
lhos.
Foi D. Fernando o ultimo Rei
varað legitimo do tronco do Conde D,
Henrique , e tambem o ultimo dos
hoflos Soberanos , que maíceo em
Coimbra. As fuas qualidades brilhan-
tes faô notadas pelas guerras impru.
dentes , que emprehendeo ;- pelas li. .
beralidades profufas , que exercitou;
pela entrega total da vontade ás pel-
foas , de que goftou ; mas antes da
Hiftoria fe empregar na narraçaô da
+ z Te-
Era vulg. re(ulta deítes defeitos , he neceflário.
nella melma fazer-fe reflexaõ fobre as
1368
12 Hiısrorra GERAL |
No fim do Reinado precedente
deixei eu ao Rei D. Pedro o Cruel de
Caftella em Bayona de Inglaterra, fol-
licitando do Principe de Galles D.
Duarte foccorros para o reftabeleci-
mento no Reino vulurpado por feu ir-:
mað baftardo D. Henrique , Conde
de Traftamara. Aquelle Principe bel-.
licofo , que he hum dos ornatos ma-
gnificos da Hiftoria do feu tempo, e-
junto a feu Pai tinha a alta eftimaçao,
que mereciaôd as fuas virtudes fubli-
mes : Elle o fez conceber por hum
dos empenhos mais honrofos a pro-
tecçao favoravel ao períeguido D. Pe-
dro , até o fazer remontar o fea Thro-
no. Com exercito numero(o, a que a
prefença do Principe, todo efpiritos,
communicava muitas almas , marchá-
rað elle , e o Rei pelos terrenos de
Navarra, e entráraô por Caítella, Os
fucceflos defta expediçao , como per-
tencentes à Hiftoria daquella Monar-
quia , nós lhe nað daremos mais ex-.
ten-
DE PORTUGAL, LIV. XVIII. 18
tenfað , que a neceflária para ós pren- Era vulg..
dermos no fio da nofia. |
Atacárad-fe os dous exercitos nos
campos de Naxera; mas como o Prin-
cipe de Galles trazia a fortuna ao feu
foldo, e com a mefma que o acom-
panhava em França, veio a Hefpanha :
-fem embargo do valor deímedido das
trópas de D. Henrique, e das gentile-
zas » que obrou pelo feu braço , elle
foi derrotado, o Marifcal de Guefclin
prifioneiro, muitos os mórtos, € fe-
sidos. Succedeo efta batalha a 6 de
Abril no ânno antecedente de 1367,
D. Henrique depois de tudo perdido,
tornou a bufcar o refugio de França
para dever ao feu Rei fegundo ampa-
ro contra D. Pedro , que defenfreou
a crueldade com a viétoria, quando a
devia fazer hum eftimulo da brandura.
Os Fidalgos, que lhe cahíraó nas mãos;
mandou fem piedade degollalos, e
para executar o mefmo nos prifionei-
ros dos Inglezes, inftou com o Prin-
cipe ordenafle, que lhos entregafiem
por baixo reígate, com o pretexto de
que em feu poder os tinha: mais fe-
gu-
14 HISTORIA GERAL `
Era vulg. guros. O Principe generofo, que ens
tað acabou de lhe conhecer os fundos
do animo, lhe refpondeo com os mo-
dos graves » que lhe infpirava a cles
mencia : Agora que vos vejo vences
dor , vos contemplo chegado à con-
juntura de perder o Reino; como naĝ
attrahis corações, nað podeis fer So-
berano ; fe zombais da vida dos hos
mens, nem eu, nem o Rei meu Pai
poderemos ajudar-vos. de
De nada aproveitou efta adverten»
cia pathetica de tal Protector em con-
juntura tað critica. O Principe , que
com o Rei elava em Burgos , lhe
requereo o cumprimento do T'ratada
na paga dos foldos , na entrega. de
Bifcaia , e outras terras ; que pro-
mettera a Inglaterra pelo feu reftabes
Jecimento. Servindo-fe dete motivo y
com apparencias , de que para cum-
prir, tudo lhe era neceflario ir a To-
Jedo , e Carmona, deixa -ao Principe
em Burgos para a tudo lhe faltar. As
terras de Bifcaia mandou ordens aper,
tadas , para que aos Commiflarios Ine
glezes nada fe entregafle; e nað pos
den-
sye
i
DE PORTUGAL, Liv. XVIII. Ig
gendo conter-fe no exercicio da tyran- Ers vuige
pia , elle meímo andou huma noite -
por Carmona com as fuas patrulhas,
recreando-fe de paflar á efpada todas
as pefloas , que entendia faccionarias
de D. Henrique.
=- | Com o mefino femblante paflou
a Sevilha , levando na fua vã-guarda
o terror, que efpantava todas as claf-
fes de vaffallos. Daqui enviou a Por-
tugal o feu Chanceller Mór para ra:
tificar as pazes com o Rei D. Fer-
nando. O Principe de Galles , efcan-
dalifado. de hum proceder tað eftranho
a toda a confideraçaô , nað querendo
perder em Caftella mais tempo , e.
gente , que fe lhe diminuia com as
- moleflias da Eflaçaô, fem vêr, nem
fe defpedir do infeliz D. Pedro , fe
fez na volta de Guiena ; levando por,
fruto da' jornada, o arrependimento;
D. Henrique , que efperavá em Fran-
a o mefmo , que vio fucceder , e
Caftella defafombrada da corage do
Principe Inglez; em Setembro de 1367
com o foccorro dos Francezes veio
dar ás fuas pretenções , e aos feus
“o E ` ami-
16 Historia GERAL
Rea wilg.: amigos huma alma nova. Por varias
partes de Caíftella andou elle ganhan-
do terras, e vontades , até fe apre-
fentar fobre Toledo . que atemorifa-
da da crueldade de D. Pedro, naô fe
atreveo a recebello como defejava.
Soffreo Toledo hum íltio de dez
mezes com conftancia heroica, e re-
fiftencia incrivel a huma fome extre-
ma. Determinou D. Pedro foccorrel-
la a todo o rifco, e com o feu ex-
ercito chegou ao Caítello de Montiel;
D. Henrique quiz fiar a fua fortuna de
huma forpreza , e antes que feu ir-
mað o prevenifle, marchou a toda a
diligencia para o atacar na madruga-
da. Os primeiros inveítidos, e derro»
tados foraô os Mouros auxiliares, lo-
go as trópas do Rei , que temerolo
de perder a liberdade , ou a vida no
alcance , fe recolheo no Caítello de
Montiel. Diz o Padre Fr. Manoel dos
Santos no VIII. Tomo da Monarquia
Lufitana com huma politica, que der-
rota na verdade a alma da Hiftoria ,
que no Caftello de Montiel fora o Rei
D. Pedro morto por engano, Só a
c
a». o
pe PortudaL, Liv. vir. 2%
le` penfou efte acao, que foi revel- Eta Ei
tido de todas as cireunftancias preme-
ditadas, que eu vou a referir.
Afflião D. Pedro por fe ver cers-
cado , fem efperança alguma de foc-
corro, nem de refugio, negociou com
o Marifcal de Guefclin a fua liberda-
de por meio de comfideraveis promef»
fas. Guefclin fez a D. Henrique fabe-
dor da negociagað , e fe convencio-
náraô com o fegredo , que foi fó pa-
ra elles. O certo le , que D. Pedro
veio à tenda do Marifcal com a fe-
gurança de quem fiava a Pefloa da fua
fé : que eftando nella defarmado , com
o acafo prevenido chegou D. Henri:
que , e que travando-fe de razões,
pafláraõ ás mãos. D. Pedro, que era
muito forgofo, levou a Henrique de-
baixo. Dizem os Chroniftas Caftelha-
nos, que Guefclin nefte paflo , dizens
do: Nað tiro Rei, nem ponho Rei,
mas ajudo a meu Senhor : mudou à
poftura dos combates, e pôz com vans
tagem a D. Henrique. Outros que-
rem , que efta manobra foffe feita
por Fernaô Sanches de Toar. D. Hen-,
TOM, V. B ri-
-18 HisrorIA GERAL -
Em vulg. rique , vendo-fe com fuperiodade,
1369 por engano, tirou de hum punhal, e
fem lhe fazer horror o fagrado da Ma-
geflade abatida , matou a punhalladas.
o irmaô Rei , de quem naíceo vafl-
fallo.
Defta maneira , na idade de 34
annos , acabou a fua vida o Rei D.
Pedro ás mãos de hum fratricida: Ca- -
taftrophe, que encheo de horror aos
Principes defintereffados da Europa ,
eípecialmente os das Hefpanhas , que
logo fe alliára6 para vingar o fangue
Real, nað ficando de fora o Rei Mou-
ro de Granada , amigo de D. Pedro.
Que a ambiçaô teve huma grande par-
te nefte zelo, os effeitos o moltrárad ;
e o titulo de ufurpador em D. Hen-
rique era hum pretexto bem efpecio-
fo para muitas ufurpações. Os Reis
de Navarra, Aragaôd , e Granada nað
ia tempo em fe lançar fobre as
raças, que podiaô fazer mais reípei-
taveis as fuas fronteiras, e efte era o
unico direito da conquifta. O Duque
de Lancaftro, filho de Duarte de In-
glaterra., que cafou com D. Conftan-
ça,
— mem a ,
CN
ce ml a mm rm
DE PortTuGAL, Ltv. xviir. 19
£a , a mais velha dos filhos do Rei Eta volg
D. Pedro havidos em varias mulhe-
tes , pelo meímo tom com que exa-
gerava a dor da morte injuíla de feu
fogro , perfuadia a infallibilidade do
feu direito ao Throno vago. Portus
gal, como mais vilfinho, meditava a
conjuntura favoravel aos feus intere(s
fes, e fem medida talhou huma vaf-
ta extenfaô de idéas , que perdêrað o
proprio pelo defejo de haver o alheio,
como eu paflo a moftrar no Capitu-
“Jo feguinte,
CAPÍTULO IH.
O Rei D. Fernandp fe empenha em
huma md bg com ofim
de conquiltar o Reino de
Caftella.
Cox femelhangas do grande Ale-
xandre de Macedonia , o- nofio Rei
D. Fernando principiou a guerra con-
tra Caítella , dando tudo, e refervan-
do para fi a efperança, Elle repartia
tanto por. cada Caftelhano defconten-
- B ii te
j
ao Historia GERAL
Era vulg. te de D. Henrique , que vinha offes
recer-fe ao feu ferviço , que fe def-
tribuifle a ametade por meia duzia de
Portuguezes , veria feis baluartes de
firmeza na face do inimigo. Elgueceo-
fe D. Fernando , de que feu Pai o
Rei D. Pedro, tio do cruel de Caf-
tellas, reconhecêra a D. Henrique, e
com elle celebrára hum Tratado de
paz, e alliança. Agora D. Fernando
o injuriava com os epithetos de ufur-
pador , fratricida , traidor , intruío 5
e abrio a porta aos defcontentes , que:
lhe roubárad a cafa propria com a in-
duftria das efperanças , que lhe fizerað
conceber do dominio de hum novo
Reino. Elle deo quinze Villas a D.
Fernando de Caftro Xerés , cunhado
do Rei Henrique : nove Villas, o
Condado de Arraiolos, e o emprego
de Condeftavel a D. Alvaro Peres,
irmaô do dito D. Fernando : dezafeis
Villas a D. Fernando Affonfo de Sa-
mora: cinco Villas a D. Mendo Ro-
drigues de Seabra : fete Villas a D.
Gonçalo Martins de Caceres : duas.
Villas a D. Affonfo Gonçalves : feis.
E dd “vil
+:
m a ——— +
trem
DE PORTUGAL, Liv. XVIII 21
“villas, que repartira6 entre fi D. Joa6 Eta volg
“Fernandes de Andeiro , e D. Affonfo
de Baeza: quatro villas a Vafco Pe-
-yes de Camões, progenitor do gran-
de Poeta defe apellido : feis villas pas:
ra amigavelmente pofluirem D. Pedro
Affonfo Giron , e D. Affonfo Peres :
duas Villas a D. Lopo Gomes, e ou-
tras duas a D. Affonfo Lopes : tres
villas repartidas por D. Lopo Rodri-
gues , por Gonçalo de Agujar , por
D. Affonfo Moxicá , e por D. Paio
Rodrigues : duas Vilas a D, Rodri-
go de Villegas : fete Villas a D. Af-
fonfo de La-Cerda, além de innume-
raveis gratificações pecuhiarias , com
que ficou Portugal em poder dos Caf-
telhanos antes de fazer a guerrá a Caf-
tella. | E
Efes grandes homens , que fe
viraô tað remunerados fem mais me-
recimento , que a liberalidade natural
de D. Fernando, nenhuma dúvida ti-
verað em preferir o ferviço , e refi-
dencia de Portugal ao amor, e com-
modidades da propria Patria, que nað
-era de mãos -taô rotas. Seguiraô o feu
a CXs
N
22 - HisrorIA GERAL E
Era volg. exemplo muitas Cidades, e Villas de
Caftella , que reconhecendo no mefe
mo Rei a legitimidade do fangue do
feu Santo D. Fernando , lhe efcrevê-
rað fubmettendo-fe ao feu dominio,
e pedindo as defendefle como Senhor
da tyrannia de hum intrufo. Galliza,
e as terras de Lead forað as mais em-
penhadas nos rógos, que encontrárad
a acceitaçaô tað facil , como os feus
paizanos achavaô a liberalidade fran-
ca. À eftas offertas do Reino, e das
pefloas fabia a politica de D. Fernan-
do occultar as intenções com a indif-
ferença , dizendo : Que Rei de Caf-
tella fofle quem Deos quizefle ; que
elle nað pretendia mais, que fazer os
ultimos esforços em vingança da mor-
te de feu primo o Rei D. Pedro. |
| Refoluto D. Fernando a romper,
mandou-fe juftificar, e expôr ao Pa-
pa, e Principes da Europa o direito,
que tinha á Coroa de Hefpanha ufur-
pada por hum baftardo. Ajuftou paz
por cincoenta annos com o Rei de
Granada, que nað a obfervou, com-
pondosfe pouco depois com D. Hen- |
ri-
— meee es a mi LD o -
DE PORTUGAL, Lrv. XVIII., 43
rigue. O Rei de Araga6 mandou Em- Era vulg
baixadores a Portugal com o meímo
fim, cajultáraô a divifa de Caftella
em forma, que ao Rei de Aragad fi-
earia o Reino de Murcia, o fenhorio
de Molina , e outras Praças.: a D.
Fernando o refiante de Caftella , e
Leaô com titulo de Reino , unido á
Coroa de Portugal: que efta pagaria
a Araga6 por tres annos 350v lanças
para a guerra: que a Infante D. Bri-
tes, irmã do Rei D. Fernando , cå-
faria com o Duque de Girona, Prins
cipe herdeiro de Aragad. Com eftas
diífpofições fe declarou a guerra, que
o Rei principiou no mez de Junho
com o rendimento de Tuy, Compof-
tella , e Corunha, que nos fez agora
prefente do feu natural Joaó Fernan-
des Andeiro , depois Conde de Ou-
rem, e elle entre nós a grande figu-
ra , que tem de fazer repre(entações
varias no noflo theatro até confum-
mar o ultimo auto da Tragedia.
A noticia das marchas forçadas
som que D. Henrique vinha acodir a
Galiiza , naó deixou mais ago r
c
24 . Historia GERAL
é 14 vulg.” Rei (que paflou áquelle Reino mais-
em tom de triunfante , que de guere’
reiro ) que o neceflario para fe em-
barcar em huma das fuas Galés , e res.
colher-fe ao Porto, deixando reforça-
da a guarniçaô da Corunha. D, Hen-
rique:, que com as fuas altas quali
dades adquirio a anthonomafia de Ma-,
gnifico. , nað lhe fazendo efpecie os.
outros inimigos , quiz moftrar o feu
re(entimento a Portugal, atacando as
Praças , que feguiraôd a fua voz , 6
efcolheo a de Samora para defcarre-
gar nella os primeiros golpes. O (eu
esforço encontrou a refiftencia dura 5
e ou fofle por nað arrifcar a reputa-
cad. e as forças, ou por acodir á in-
vafaô. de Galliza ; elle levantou o fi-
tio , e refolveo-fe a: decidir comnof-
co a fua fortuna em huma batalha.
Como D. Fernando fe havia retirado,
foi facil a D. Henrique focegar a per-
turbaçaô de Galliza ; entrar por Por-
tugal devaftando a Provincia do Mi-
nho , e fitiar aCidade de Braga, fem
os. Portuguezes apparecerem na campae
nha, nem fe opôr aos feus defignios.
sisi Con-
N
DE PORTUGAL , Liv. XVII. 24
«e Conta o nofo Agiologió, que SAUE
nefta occafiað as almas de D. Affonfo
Sanches , e de D. Therefa Martins,
Fundadores do Convento de Santa Cla=
ya de Villa de Conde , fallárað dos le~
pulchros dos feùs córpos á Prelada 5
advertindo-a fe retirafle com as fuas
Freiras para o Porto ; porque tia ma-
nhã feguinte os Caftelhanos faqueariaó
a Villa, nað fuccedefle profanar-lhes
o facrario da pureza, Rendeo-fe Braga
por falta de foccorro:;. e D. Fernan-
do, com a meíma facilidadé com que
rompeo a guerra , offereceo agorà a
paz ao Marifcal de Guefclin por meio
de hum Mercador eftrangeiro, que O
conhecia. Foi elle bem: recebido da
Rei , que o mandou com.o mefino
Marifcal tratar os ajuftes, que fe naĝ
effeituárað , com o Conde de Barcel-
los. Quando D. Henrique acabava de
render Bragança, e outros Lugares na
Provincia de Tras-os-Móntes , foi
avifado da perda , e deftruiçao da imr
portante Praça de Algezirá pelo Rei de
Granada, que fe fervia da fua aufencia
para avançar conhderaveis as conqui Fo
NE
Era vulg.
1370
26. . HISTORIA GERAL
Efta noticia defconcertou ás mes
didas de D. Henrique, que Houve de:
abandonar a empreza de Portugal para.
refitir á divería6 de Granada. O mo-
vimento nað efperado deíta retirada
fez lembrar ao Rei D. Fernando,
que as armas de Caftella nað. confen-
tiaô divifaô, e por ifilo devia elle con-
tinuar a guerra com vigor na fron-
teira, e fazer declarar a D. Pedro de
= Aragaô pela fua. Para o primeiro de-
fignio áugmentou o número dos Offi-
ciaes, e das trópas ; pedio foccorros
a Inglaterra , que lhe foraô manda-
dos com o Conde de Cambrix por
Commandante , mais a deftruir , que
a fer proveitofos a Portugal; e apref-
tou huma grofla armada de 30 nãos;
e 32 galés para atacar as coltas de
Andaluzia,
Para o fegundo projecto mandou
a Aragaô os. Bifpos D. Martinho de
Evora, D. Joað de Sylves, Fr. Marti-
nho, Abbade de Alcobaça, e o Con-
de de Barcellos D.Joaô Telo de Me-
nezes com huma efquadra de galés , e
prefentes, que tudo refpirava grande-
Zàs
o A a e regra rem PA — Ra ger mea NE
DE PORTUGAL, Liv. XVIII. 27
ga, e magnificencia , para ajuftarem o Era vulg.
cafamento com a Infante D. Leonor,
e a conduzirem a.Portugal. Foi efte
o primeiro malogrado ¢afamento de
D. Fernando, que jufto , e celebrado
com todo o prazer do Rei D. Pedros
Pai da Infante , fuppofta a difpenfa,
que para elle havia conceder o Papa ;
fem fe encher efta condiçaS , nad
conveio o Aragonez na partida de
fua filha pára Portugal , que anciofae
mente a defejava. .
Accendeo-fe a guerra por todas as
noflas Provincias para defaggravarem
com muitos golpes a hum tempo +
os que deixáraó de dar os braços ocio-
fos na campanha paflada. Pela do Alem-
Téjo entráraô os Infantes D. Joaô, e
D. Diniz, que arrazáraô todas as obras
exteriores de Badajoz. Pela meíma pat-
te penetrou a terra com goo homens
o bravo Gil Fernandes, fazendo huma
preza tað confideravel, que oecupava
huma legoa de terreno. Para disfarçar
O feu pouco poder , e falvar a preza
fem o perigo de o virem reconhecer ,
fingio-fe, ẹ fe fez tratar pelo un
28 Historia GERAL |
Eri vulg. D, Joab, efpalhando a voz das grans
des forças , que o feguiaõ. Eltratage»
ma: que conteve os Caftelhanos , e
que lhe fervia para introduzir no Rei-
no toda a preza fem algum fuf-
to. Os Senhores da Familia de Caflro
em Galliza (uftentavaó as nofias Pra-
ças naquelle Reino, e nað davað def-
canço às armas dos inimigos. Pela Bei-
ra comprio os (eus deveres o Frontei-
“yo Lourenço Gomes do: Avelar com
as conquiftas de Cerralvo , S. Felices,
e Inojofa. | é
No rio de Sevilha entrou a noffa
armada das galés , aonde efteve muito
tempo furta fem acçaô. Determinou O
Rei de Caftella furprendella pela fome,
que já principiava a fentir ; e man-
dou ao feu Almirante D. Ambrofio
Bocca-Negra com huma grafia efquadra
a impedir-lhe a fahida para render à
nofla fem peleija. Nós nos viamos em
eítado «de nað poder combater, nem
fubliftir , e esforçamos as induítrias
para nos falvar. Como a efquadra ini-
miga formava huma linha, que tomas
va toda a bocca do rio , epen mos
: U-
— — -1ml `. a aa
DE PORTUGAL, Liv. XVIII. 29
húma noite efcura: poftâmos as galés Era vulg..
em ala com a proa de cada huma fo-
bre a popa da outra: a chuíma com os
' remos promptos a efperar o final pas
ra a voga: accendemos o fogo em
dous navios carregados de azeite į al-
catra , e outras materias combufli-
veis : deitamollos ao tom da corrente
rápida , que deícia , e foraô as galés
em voga furda , feguindosos no mo-
vimento : hiað elles cahindo fobre a
armada Caftelhana , que temerofa do
perigo ; abrio pelo centro para dar
pafilo aos brulotes , que já eraô dous
incendios. Entaô os noflos , apertan-
do os punhos , a toda a força da vos
ga arrancada , em pouco efpaço fahi-
Tað pela abertura ao mar, e fe poze-
rað em falvo, |
Dous fitios defta campanha fo-
yað as acções mais gloriofas de toda
ella. Sobre Cidade Rodrigo veio o
Rei de Caftella em pefloa com exer-
cito poderofo , publicando que efta:
empreza era digna do feu caradter. Em.
dous mezes de ataque vigorofo achou
fempre. taô prompta a refiftencia, que,
E por
30 Historia GERAL
Era vulg. por nað arrifcar as forças, aonde amols
gava a opiniaó , teve de levantar o
útio , fervindo-lhe as incommodida-
des do Invemo de pretexto para es-
friar no conceito dos homens oardor
da nofla corage. Mollrára6 os fuccef-
fós ,. que nað os acafos , mas o es-
forço fuftentoe Cidade Rodrigo na
nofla obediencia até ao Tratado da
paz, em que por convençaô a cede-
mos. À retirada do Caftelhano defcon-
certou as medidas do Rei D. Fernan-
do , que fe fazia preftes para o invel-
tir no campo, Por nað kítarem ocio-
fas as armas , que tinha: juntas, divi-
dio o exercito em tres corpos para en-
trar em Caítella por partes difterentes.
Os eftragos furaô infeparaveis deltas
invasões; mas dellas nað fe recolhêrad
outros intereffes , que derramar o ter-
ror nas terras, que feguiað a voz de
D. Henrique. | |
Sua mulher a Rainha D. Joana
foi a authyra do fegundo fitio; e emu-
la da gloria do marido , a quiz adqui-
rir na conquifta de Carmona, que de-
pois de lhe dar a eftimaçaô de Herois
l na,
DE PORTUGAL, LIV. XVII. 31
na, ella julgava o meio mais efficag Efa wulg.
para o reftabelecimento dos negocios
do Reino, Na téfta das fuas trópas,
a que dobrava os alentos a façanho(fa
prelença mulberil , mandava ella ob-
fervar tantas formalidades militares, e
avançar combates tað vigoro(os , que
nað fe podiaô conceber o vigor, ea
dexteridade. Mas era Commandante
defta Praça por Portugal o bravo D,
Martim Lopes , Graô-Meftre da Or-
dem de Calatrava, chamado por ou-
tros D. Affonfo Lopes de Texeda ,
que na formofura da defenfa obrou gen-
tilezas tað cheias de heroicidade , que
a todas as memorias fizerad O feu no-
me refpeitavel. Na6 entendeo a vaida-
de da Rainha , que refiftencia feme-
lhante fe atrevefle á {ua face , fenað
macillenta pelo medo , já vermelha
pela colera , que lhe accendia a con-
fiança. Ella propoem a D. Martinho,
que fe renda, antes que o furor das
armas: o obriguem a hum arrependi-
mento a que ferá inexoravel a clemen-
cia O Heróe , que fabia dar lugar
á civilidade na maior fortaleza do ars
e dor,
32 Historia GERAL !
Era vulg. dor, lhe reípondeo: Que o reípeito;
nað os luftos , lhe movia os defejos
de obfervar as fuas ordens; mas que
hum embaraço taô confideravel , co-
mo era a honra da fidelidade promet-
tida ao Rei de Portugal , que elle
reconhecia legitimo -de Caítella , lhe
prendia o paflo para o dar em outro
ferviço, que nað foffe o daquelle Prin-
cipe: Que lhe concedefle tempo para
o avilar das fuas pretenções, na cer-
teza , de que nað faltaria á execuçad
das determinações, que recebefle.
Condeífcendeo a Rainha com &
propoíta de D. Martinho , pedindo.
dous de feus filhos em refens , que a
General politico nað duvidou entregar
á delicadeza da fé de huma Princeza ,
que fe intitulava Rainha. Immediata-
mente deípachou avifos a D. Fernan-
do do eftado de Carmona ; da refolu-
gaô das trópas em a defender até a
ultima extremidade ; mas que era nes
cefario Sua Alteza nað lhe demorar.
os foccorros , que fem elles, a conf-
tancia da fitiante renderia inuteis os
esforços dos fitiados. D. Fernando y
, que
DE PORTUGAL, Liv. Xv. 33
xue tinha o exercito prompto , e de- Età vulg;
via marchar fem demora a huma ace
çað tað importante , gaítou o tempo
em confelhos fem deliberaçaô ; con-
tentando-fe de mandar reforçar a Praça
com 7o homens. Se elle quiz afim
perfuadir aos inimigos, que os def-
prezava, a fua facilidade o enganou,
e de nada lhe valeo a conftancia pal-
mofa com que a politica de D, Martt-
nho prefumio remediar a mal adver-
tida do Rei D. Fernando. |
A Rainha, impaciente, por cone
cluir huma empreza, que olhava co-
mo obra toda fua, apenas efpirou o:
prazo concedido a D. Martinho lhe re-
querco a entrega de Carmona. O bras
vo Heróe, que media pela fua intre-
pidez a de toda a guarniçad ; que tinha
firmado na idéa deixar ao mundo
hum exemplo immortal de fidelidade,
reípondeo á Rainha, que elle já mais.
coneebêra penfamentos de fe render ,
fempre refoluto em fuftentar huma
defenfa com fuperioridade infinita ao
valor, com que fofle atacado, A fes
zeza defa reípoíla foi hum. eftrago da
TOM. V. G mo-
34 Historia GERAL 7
Era vulg. moderaçaS da Rainha, que fem outras
lembranças , fenaő as dete aggravo,
o concebeo em tal tom de injuriofo,
que lhe arraítou o animo inteiro para
a vingança a qualquer cufto. Ella man-
da conduzir á vifta de D. Martinho. os
dous filhos, que élle lhe mandára em
refens , bem longe de imaginar, que
huma mulher havia fer authora da
atrocidade , que vou a referir. Ella o
faz notificar , que eleja, ou a entre-
ga de Carmona, ou fer teftemunha da
morte , que a punhaladas manda dar
na fua face aos dous pedaços tenros
da fua natureza, Fludtuad em D, Mar-
tinho a fidelidade ao Rei, e o amor
dos filhos ; a reputaçaô, e. o fangue $
quanto ha de mais nobre , e mais fen-
fivel. Com poucos intervallos de ine
decifaô prevalece o generofo ao deli-
cado ; e diz D. Martinho lhe degolem
feus filhos, que elle eftá prompto pa-
ra ver a execuçad com a indifferença
de huma montanha. -
Efta refftencia mais fublime., que
a de quantas defenfas ha heroicas , fe
havia aballar o peito de D. Joana pa-.
». ra
pe PORTUGAL , Liv. xvit. 35
ga fe render piedofa ; ella a enfure- Èta wulg.
ceo para fe conduzir atroz ; ordenan-
do, que entre a Praça, e o exercito
os dous innocentes Fidalgos fofem
defpedaçados, Morte deshumana ;;
que tifna a gloria de huma Prince-
za com mancha inapagavel : Morte
barbara , que eftimula os efpiritos de
hum pai para vender cada pedra dos
muros de (Carmona pelo preço de
muitas vidas. He horror quanto da-
qui em diante obráraôd a cólera, ca
defefperaçaô , a corage , e o furor.
Mas o Heróe, que da fenfbilidade da
dor nað apartava a obfervancia das
maximas da prudencia, Vendo Car-
mona em eftado de naô poder mais
defender-fe , para poupar vidas im-
portantes de homens , que nað erað
feus filhos por natureza , ainda que até .
entað o foflem da difciplina , elle ca-
pitula, e fe entrega.
Já netes tempos parece que ti-
nha fequito no mundo a maxima per-
niciofa , e abominavel, que enfina :
Como os juramentos naô tem nada de
bom , fenað em quanto-fervem de
C ii meio
36 - HISTORIA GERAL
Era vulg. meio „para enganar os homens. Jurgi
rað os Reis de Cafítella, e promettê»
rað a D. Martinho Lopes , que elle,
e a fua guarniçaô fahidem de Carmo- :
na para onde quizeflem , falvas as vie
das, e as fazendas. A execuçaS def-
mentio a promeíla , e o juramento ;
menos eftimaveis aos Reis, que a
perda da liberdade de D. Martinho ,
e que a poffe dos muitos dinheiros ,
que (e guardavad em Carmona , cos
mo lugar de fegurança. Tudo foi ap-
prehendido, D. Martinho preío, por-
que o Rei D. Fernando afim o quiz;
e como a authoridade , e reputaçaô
defle grande homem fazias aos Reis
huma fombra , que lhes nað era to-
“leravel; D. Henrique, raras vezes exa-
&o , e fempre político, nað efcrupu-
lifou com o juramento , e promefla
para mandar tirar no carcere a vida
a D. Martinho Lopes.
Entendeo D. Fernando, que co-
mo elle nað teve a gloria de dar a D;
Henrique a batalha para que o defa-
fiou, quando efteve fobre Cidade Ro-
drigo, que ficára difpenfado para focs
| ra * Cor-
= DE PORTUGAL, Liv. xvin. 47
correr Carmona, aonde os eccos def- Eta vulg: >
ta reputaçaô imaginaria baítaria para.
derrotar as ideas dos inimigos. Ago-
ra que os fucceflos moftrárað o erro
dos difcurfos , para faldar a québra
da inacçaó, mandou ao Almirante Lan-
carote Peçanha com a elquadra Por-
tugueza atacar a Caftelhana ; mas co-
mo efta tinha ordem para fe defviar
do combate , reduzio-fe a expediça6
a fazer varios defembarques fem fru-
&o na cóta de Cadiz, e voltar aar-
mada para os portos donde fahira,
- O clamor defta guerra ferio os
ouvidos do Papa Gregorio XI. que
temia fe approveitaflem della os Mou.
ros de África , para , amparados á
fombra do Rei de Granada, entrarem
no projeto da reconquiíta de Hefpa-
nha. Receio tað bem fundado o obri-
gou a empenhar em offícios promptos,
e efficazes os principaes Prelados de
Caftella , e Portugal para difporem
os animos dos feus Principes a ajuítes
yazoaveis ą que elle mandaria con-
eluir pelo Cardeal Agapeto Colona,
já nomeado para vir aos dous Reinos
in-
Era vulg.
SA
38 . Hisroria GERAL
“indicar as fuas boas intenções, de que:
logo veremos os efteitos.
CAPITULO IL
Ajuha-fe a paz com Cafella , e fegun-
do cafamento para D. Fernando com
a fua Infante D. Leonor a defpra-
ser da Leonor de Aragað , efe tra-
tağ outros acontecimentos.
A CHEGADA dos Legados Pontifi-
cios á Hefpanha fez mudar o fem-
blante á tantos fucceffos trites: Fa-
ceis em admittirem as propoftas de
paz , D. Henrique pela necefidade ,
que della tinha para fe fuftentar no
Throno , e domar a ferocidade de
vaflallos teimofos ; D. Fernando pela
volubilidade natural, que lhe fazia dif-
ficultofa a permanencia, D. Henrique
nomeou Plenipotenciario a D. Affon-
fo Peres de Gufmað , Alcaide Mór de
Sevilha , e D. Fernando ao Conde de
Barcellos D. Joað Affonfo de Mene-
zes , que já fe havia recolhido de Ara-
gað a Portugal fem a Infante D. Leo-
nOr a
DE PorTUGAL, Liv. XVIII. 39
hor, quê fora conduzir. Deftinou-lé. a Eta volg. `
Villa de Alcoutim no Algarve, fron-. |
teira a S. Lucar do Guadiana , para
lugar das conferencias, que principiás
rað em Dezembro do anno paflado de
1370. Reduziraõ-fe eftes ajuítes á mu-
tua entrega das Praças conquiftadas :
á liberdade plena dos Caftelhanos, que
quizeffem ficar em Portugal, e os Por-
tuguezes em Caftella : á promefla de
cafamento de D. Femando com a In-
fante D. Leonor, filha do Rei D. Hen-
tique com os dotes arbitrados , que
fe efcula5 nomear como circunftan-
cias de hum matrimonio , que nað fe
chegou a concluir, | F
O Rei de Aragað , que nað foi
incluido nete Tratado , fe queixou
altamente de D. Fernando , aílim pe-
Ja paz com Caftella , como pelo ajuf+
te do cafamento com a fua Infante ,
fem attençaô aos efponfaes antes con-
traidos com fua filha. A dificuldade
de impedir huma , e outra negocia-
cad, eflimulou os defejos de algum
refentimento , que honeftamente fe
pudefle pretextar. Os primeiros S
| pul-
40o - Historia GERAL |
Ecg vulgo: pullos forab de prender os Embaixas
dores , que na fua Corte deixára o
Conde de Barcellos , efperando a dif-
penfa do Papa; mas como appoderar-
fe de 2151 marcos de ouro , que O
Rei de Portugal tinha promptos em
Barcelona para as deípezas do cafa-
mento , era lance mais conveniente :
Publicando os muitos gaftos, que D.
Fernando o obrigára a fazer, e que
de alguma forte os havia refarcir, ef-
ta perfuafað córou o pouco efcrupulo
de fe utilifar do alheio. |
Como tanta profufad , mercês ,
e gratificações, que o Rei fez na oc-
cafiaô defta guerra inconíiderada , di~
minufraô huma grande parte das Ren-
das Reaes; elle fe quiz compenfar au-
gmentando o valor dos generos: Idéa
fatal aos- Eftados , que fobre provo-
car a murmuraçaO , a impaciencia dos
Póvos; obriga os Eftrangeiros a que
levem no cambio dos contratos o dis
nheiro corrente em lugar das efpecies
do Paiz , que no avance dos preços
lhes derrota6 o Commercio. Clamou
o Reino com a câreflia dos viveres į
com
DE PORTUGAL, Liv. XVII. 41
tom o augmento do valor da moeda, Eta vulg.
e os Ecclefiafticos , que -pelas Leis
precedentes eftavað impedidos para
pofluirem bens de raiz, e as contravi-
nhaó por meio das Doações, que eu
deixo dito : Agora acompanhiraô o
Povo no defprazer , quando vírað ,
que o Rei lhes atalhava o pafo com
a obrigaçaôd impofta aos T'aballiães de
nað fazerem as Cartas de Doaçaõ ; e
que para os Ecclefiaíticos , que dalli
em diante compraflem com licença
fua , ou dos Reis futuros , houvefle
hum livro de Chancellaria , em que
fe refiftaflem as licenças; que á cele-
braçaô da venda aftiffem o Almoxa-
rife Real, e o Efcrivaô da terra para
impedirem , que o valor da compra
nað excedefle a quantia concedida na
licença. Efta providencia foi derroga-
da pelo Rei D. Affonfo V. que con-
cedeo faculdade aos córpos de Maô
morta para pofluirem bens de raiz com
as formalidades, e reftricções, que fe
contem nas fuas Leis. |
Já tinhaô efpirado os cinco me-
zes taixados na paz de Alcoutim para
l o
42 Historia GERAL
Era vulg. o Rei celebrar o feu cafamento conb
1372 a Infante D. Leonor de Caftella : Al-
liança , que entranhavelmente defeja-
vað ambos os Reinos, como meio de
fazerem firme a concordia. D. Fernan-
do, porém, com a mefma facilidade
que teve em lançar dos feus interefles
a D. Pedro de Aragaô , com a meíma
muda de fentimentos, e arroja delles
a D. Henrique de Caftella: Havia na
fua Corte outra Leonor , nome para
efte Rei terrivel, por nafcimento fua
vaflalla; mas com dotes da natureza ,
que lhe “dera a preferencia no cons
curfo com duas. Infantes , filhas dos
maiores Soberanos de Hefpanha. Era
Dama da Infante D. Brites, irmã do
Rei, D. Maria Telles de Menezes,
viuva de Alvaro Dias de Soufa, e fi- -
lha de Martim Affonfo Tello de Me-
nezes. Ella tinha outra irmã calada na
“Beira com Joaô Lourenço da Cunha,
chamada D. Leonor Telles, que veio
vifitar D. Maria ao Paço, aonde ficou
hofpeda, e entrou Cometa, que arraf-
tou, e efcureceo o primeiro Aftro.
D. Fernando a vio, e perdeo-fe : che-
gou
DE PORTUGAL , LIV. XVIII 43
gou o tempo della voltar para feu ma- Praias
rido, o amor a prende, o poder lhe
detem o pafio. 7 nm É
Declarou-fe o Rei com D. Maria,
e logo lhe períuadio , que o feu ardor
nað era lavareda de amante ; mas in-
tençaô de eípofo : que como tal fazia
a D. Leonor a fineza de abandonar a
Infante de Hefpanha para ella fó ter
lugar no thalamo, e no Throno: que
o feu matrimonio com Joaô Louren-
go eftava nullo por ferem parentes nað
difpenfados : que elle tomava á fua
conta romper todos os laços , tirar
todos os tropeços., que a elle lhe po-
diaô impedir é gofto, a D. Leonor a
fortuna. Soube D. Maria fingir lances
de honra, affe&tar difficuldades no ef-
candalo, propôr receios dos vaffallos ;
` mas de tudo cedeo facilmente ; que
promeflas de huma Coroa fað tað atra-
“éivas, que mal lhe podia refiflir hum
peito fragil , quando ellas fazem ba-
quear os mais conftantes. Ver huma
irmã vaffalla Rainha de golpe era bata-
ria » que nað havia deixar de abrir
brecha. D. Leonor fe rendeo ao pri»
KA i Mel»
Era vulg.
44 Hisrorta Gerar
meiro tiro, e já fem lembrança de:
Joaó Lourenço da Cunha, entra a ef-
timar-fe mulher do Rei D. Fernando.
de Portugal,
Para fe effeituar o cafamento ,
era neceflario que Roma declarafle a
nullidade do primeiro, como fez pela
proximidade do parentefco, que nað
tinha fido difpenfado. Elta acçaô em
fi meíma odiofa, caufou no Reino in-
felicidades, nos Póvos revoluções, efe.
pecialmente no de Lisboa , que fe
'fubleyou contra o Rei, e tomou as
armas. Elle pôz na fua tefta a FernaS
Vaíques, hum homem da plebe de-
fembaraçado , e fallador , para repre-
fentar por todos o efcandalo, que re-
cebiaô em huma defordem digna de
fe atalhar a todo o cuíto. Nas adver-
tencias que elle fez ao Rei, mas com
as armas na mað , lhe rogou olhafle
mais pela fua reputaçaô , que pelo
feu amor; mais pelo interefle dos feus
vafallos, que pela paixað a huma mu- `
lher alheia, que elle naő podia fazer
propria, nem os feus vaflallos haviad
confentir. A política do Rei negou
tos
me o ea anamaria Te mt
-DE PORTUGAL, Liv. XVIII. 4$
toda a verdade das fuas intenções , e Era vulg,
para focegar a inquietaçað , ordenou
ao Povo, que na manhã feguinte fe
achafle na Igreja de S. Domingos,
aonde elle fem referva lhe declararia
tudo em pefloa. Acreditou Fernaõ
Vaíques a palavra Real, como deve-
ra , e fez que todos fe recolheflem
para no outro dia ouvirem no lugar
deíftinado a refoluçaô do Rei.
Elle fe aproveitou da noite para
fe. retirar com D. Leonor, paflarem a
Santarem „dahi á Provincia do Mi-
nho, aonde arecebeo por mulher no
Molteiro de Leça. Daqui emanára6
pelo Reino ordens bem eftranhas á
eíperança da credulidade do Povo de
Lisboa, que vio convertidas em amea-
ças as primeiras doçuras ; as promef-
fas benignas em execuções rigorofas.
Julgou o Rei delinquentes a todos os.
que fe opunhaó ao feu gofto, ouno-
tavaô de ligeira a fua refoluçaô. En-
tað o zelo, o amor, a fidelidade fen-
tiraS as penas de inconfidentes na con-
fifcaçaô dos bens , nas mãos , € pés
cortados , como entaô (e ulaya , < íe.
| ez
gó - Historiá GeraL
Esa vulg. fez o ufo mais vulgar por hum crime
novo. Eítas execuções rigorofas , que
tinhaô origem em hum amor tenro ,
aflombráraõ os mais intrépidos , igual»
mente fenfiveis ao feu terror, e á ma»
goa de: verem andar o feu Rei pelo
Reino, de terra em terra, moftrando
ao lado como Rainha a fenhora, que
elles fó reconheciaô mulher de Joaő
Lourenço da Cunha. ?
| Diogo Lopes Pacheco , o mata-
dor de D. Inez de Caftro, e parente
muito chegado daquelle Fidalgo , nað
teve valor para ver duas acções, que
julgava indignidades; huma no Rei,
que a fazia , outra no feu parente,
que a fopportava; e fem matar a D.
Leonor , como matou -a D. Inez,
tornou a fugir para Caítella , naô fuc-
cedefle pagar na vida de huma a mor-
te da outra. Elle era muito obrigado
ao Rei D. Henrique , que o amparou
em França ; fervioeo nas batalhas de
Naxera, e Montiel, e neta occafiaó
bufcou o refugio da fua Corte, don-
de pouco depois o acompanhou ar-
mado contra a Patria. Joað Lourens
` ço
ma am
DE PORTUGAL, LIV.XVIIL 47
ço da Cunha lhe feguio os paflos, e Eta valg.
"conforme a opiniad de Manoel de Fa-
tia , fe elle fentio. o calo foi no in-
terior, que quanto nas demonftrações
públicas, elle o fez materia de hum
entremez na Devifa , que pendurou
no chapeo para fe dar a conhecer pe-
lo que era. ; |
A nobreza , que via ao feu Rei
conduzir a Dama como em triunfo,
fentia que a paixaô vehemente lhe en-
cheffe todas as medidas , que fe de-
viaS occupar da razaô , e da gloria,
Ella acabou de ficar atonita, quando
no Lugar do Eixo lhe mandou o Rei
beijafle a maô a D. Leonor como Rai-
nha. Entaô lembrou o facrifício, que
o feu amor para com ella fazia das
Infantes de Caítella , e Aragad; o
Sceptro , que lhe offerecia; o coraçaô,
que lhe cativava; os Eftados confide-
raveis, que lhe conferia: tudo próvas
de exceílos, que chamava6 por outros
muitos. Efte temor fez dobrar o joe-
lho ao Infante D. Joaó, e a feu ir-
mað o Meftre de Aviz , que tomá-
xað a mada D. Leonor , a beijárad
| co-
48 HistoRiA GERAL *
Era vulg. como vaflallos, e ellá os recebeo Rafs
nha. O Infante D. Diniz nað fe quiz
moftrar imedrofo , nem politico , e
refpondeo refoluto: Que elle nað bei-
java a mað de pefloa , que devia beie
jar-lhe a fua. Defprezo tuô declarado
moveo tal defefperaçaôd no Rei , que
o atraveflára com hum punhal , fe
Ayres Gomes da Silva naó defviára o
golpe. O Infante fugio, e paflou pa-
ra Caítella, aonde veremos os feus
fucceflos tragicos , e os do Infante D,
Joaô , que depois bufcou o meímo
refugio. |
< Todo o mundo eftranhou eftes
exceflos , que fe fazem notados na-
quelles homens , que vem ao mundo
para fe moftrarem nelle humas Idéas
puras fem paixões. O Rei de Caftel-.
la fe forprendeo dos expedientes da
de Portugal para com elle, muito mais
a reípeito da Infante fua filha , que
elle dizia fora defprezada em razaô de:
huma adultera; por efte crime infame:
indigna da vida, quanto mais de hum
throno. Elle quizera, que na vingan-
ga naô houvefle demora, e que as refx
pe
DE PORTUGAL, LIV.XVIIL 49
pirações do feu furor fofem incen- Ers vulg.
dios; mas o eftado dos feus negocios
houve entaô de cobrir as brazas com
cinza. D. Fernando, que naô ignora-
va O tomgrofleiro, por que D. Henri-
que fe explicava, fez-fe defentendido ,
ou nað fabedor; mandando á fua Cor-
te hum Enviado com defculpas fim-
plices , que nada fignificavað , e o Rei
colerico nað quiz attender. Como os
males (fem remedio nað tem outro além
do foffrimento , houve Portugal de (e
acommodar. ao feu deftino, eos Reis
cuidarem em fe fegurar na boa fé dos
vafiallos. Elles o confeguiraô; D. Fer-
nando amoutoando mercês, e benefi-
cencias depois dos rigores , e cafli-
gos ; D, Leonor derramando agrados,
e civilidades para attrahir venerações,
e obfeguios.
TOM.V. `D CA-
Era vulg.
1372
só Historia GERAL ` °
© CAPITULO IV. ;
Trata-fe da fegunda guerra do Rei D.
Fernando com E Henrique de `
afiehas
p3
.. 1
.
Em feu vigor obfervava.o Rei D.
Henrique de Caftella religiofimente o
“Tratado de Alcontim , quando Joað ,
Duque de Lancafro , filho fegundo de
Duatte IH. Rei de Inglaterra, inten»
tou difputar-lte o Throno; ique dizia
fer de fua mulher D. Conftança :, f»
lha-do Rei D. Pedro o morto em Mons
tiel. O primeiro paflo do Duque foi
fazer D. Henrique odiofo aos feus-valo
faltos com aquelles pretextos, que fe
fabem expender do: largo , quando fe
bufcaô occafiðes para romper. -Mas
como para fe obter hum Ellado, que
outro poffue , e nað quer largar, nað
baftaô boas razões , nem o direito
bem fundado , fe faltaô as forças pa-
ra o fazer valer: O Duque de Lan-
caftro (ollicitou para iflo a alliança do
Rei D. Fernando , que nað recufou a
Edi Si pro-
DE PORTUGAL, LIV. XVIII. gr
propofta fem o embasaçar: a fé do. dito Em valg: -
Tratado. Ignorava Ð. Henrique efes
ajuftes , intimamente. defejava a con-
fervaçaô da paz , e:fem. D, Fernando
eítar prevenido para: a guerra, foi in-
formado da yeprefalia', que elle man-
dára fazer nos navios Caflelhanos por
todos os feus portos.” -.. |
Diogo Lopes Pacheco , defejofo
de. fe vingar do feu Rei, já fabedor
da alliança feita com o Duque de Lan-
caftro ,, aconfelha a D. Fentique , que
fem perda de tempo, e antes que D.
Fernando fe arme’ , entre a fogo, e
fangue por Portugal. aonde achará aa
feu lado todos os Portuguezes , por
caufa de D. Leonor deígoftafos com
a feu Rei. O animo pacifico de D.»
Henrique nað. quiz eftar por efte pa-
recer fem efgorar todos os meios de
perfuadir a concordia. Para ifo man-
dou a Partugal o Bifpo de Siguença
D. Joaô Garcia Manrique , que naá
fendo nelle attendido , affegurou ao
feu Rei lhe era inevitavel a guerra.
Efte proceder , tað oppofto ás boas
formalidades. do Rei de Caflella , air-
E D ii ri-
sz . Historia GERAL ”
Era vulg. ritárad tanto, que entrou a fazer vêr
1373
nos apreítos , que fe. preparava, nað
para a rotura; mas para a vingança. |
Os Fidalgos Portuguezes , que tinha
no feu Reino , fobre todos o Infante
D. Diniz, completamente o inftruem
no eado dos negocios de Portugal,
que lhe alentað os defignios de mar-
char fobre Lisboa para defcarregar o
golpe da indignaçaô na cabeça do Ef-
tado, i |
O politico D. Henrique para fie.
carem defculpados todos os exceflos ,
que meditava , deo alto caradter de
injuriofa á rotura do cafamento de
fua filha; á liga, que no meio da paz
fizera contra elle D. Fernando ; a has
ver admittido no Reino muitos dos:
feus vaflallos defcontentes , que nað
ceflavaô de mover revoltas em Caftel-
la. Antes que D. Fernando (e preparaí-:
fe para a execuçaô dos defignios pre-
meditados, elle entra com hum exer-
cito formidavel por Portugal , e man-
da pelo Almirante Boccanegra occu-
par o Téjo com a fua armada. Com o
naícimento da Infante D. Brites prin-
l Ci-
DE PORTUGAL, LIV. XVIII. 43
“cipiou a guerra : prefagio infeliz das Era vulg.
muitas , de que ella havia fer caufa.
Penetrou D. Henrique a fronteira do
Eftado defprevenido, que intentava fer
o aggrefior , e foi levando fobre a
marcha , entre horror , e eftragos,
Almeida , Pinhel , Cerolico,. Linha-
ses, até fe poftar fobre Coimbra. Che-
gou elle a efta Cidade , quando: D.
Leonor dava à luz a Infante D. Brites,
O Rei valerofo fez aqui oftentaçaó da
fua politica , na6 atacândo a Praça, e
demorando-fe nella pouco em attençad
á Infante , e por naô aflultar a Mãi:
idéa delicada do Rei Magnifico, que
nað deve fer efquecida. É
Veio o Infante D. Diniz incorpo-
rar-fe com o exercito de Caftella ; e
como o confelho de Diogo Lopes Pa-
checo o levára a efe Reino, elle fe
defnaturalizou , e fez vaffallo de D.
Henrique ; fendo: caufa de perder o
dominio de Portugal o voto do mef-
mo homem , que da cabeça dé fua
Mai arranca a Coroa. O Rei com o
Infante Conde de Gijon forað talando
os campos até Torres-Novyas , e a
o
s4 . Historia GERAL
Era mg. do caminho á vita de Santarem q doll
de cava: D: Fernando , elle naô alte-
cou a fua indifferença , mal: aconfelha-
do por Fidalgos , gue promoviað os
feus intereffes astroco da reputaçað do
Principe, A Mm »chegáraõ até Lisboa
donde foi o. Infante Conde D. Affonfo
inveltir Calcaes , e outros Lugares,
que achando-os fem refiflencia. a fa-
queou a todas. Lisboa foi atacada. com
todô o vigor por. mar, e terra, A fua
defen(a a arbitrio:.da paizanage , que
le armou voluntaria, fem ordem ; fem
regra ; falta de Commandantes ; foi de
pouca duraçao , € rendeo-fe Lisboa
com entrega ao inimigo de quanto na
Lidade:, e-no Reino eitava dè efi-
march. 4
-+ Golpes ferielhantes » que. parecia
trab fenúveis ás pedras, nað. deíper-
tára a20 Rei do lebargo » em que o
inha fepultado o frenef amorofo por
D. Leonor Telles. Elle fe confolava
em Santarem com: a efperança da ar-
mada , que havia vir, e nað acabava
ae. chegar de Inglaterra. Os mares fe
lhe pozeraô intractaveis para nað vir
= a
DE PorTugAL, Liv. xvin. $$
2 Lisboa -no:rtempo, em que havia fer- Era vulg,
vir á maior veceflidade.. Nefta ocça-
£iaS D. Nuno Alvares Pereira , mandas
do por feu Pai, que zelava a bonra da
INacaô , explorar as forças do inimi-
go ; na idade de trezé annos le pars
tou de modo nos tyrocinios de folda-
do ,. que todos entendêrağ nað tardaria
muito em fe. fazer Heróe, Depois de
informar a feu Pai do que vira, foi
dar conta ao Rei a Santarem, e pediq
fofle: fervido, dar-lhe algumas trópas ,
sue elle queria combater q campo dos
CaRielhanos, e o faria com vantagem
pela: fituaçao, em que- os abfervára.
Efe impeto de generofidade no Mo-
Go , que acabava de largar o cóllo da
ama, foi tað geralmente applaudido ,
que o Rei o armou Cavalleiro , e elle
foube em todas as idades remunerar 3
mercê com a reputaçaô eftrondofla ,
que deo à Patria.
. Atonito eftava Portugal contem-
plando a inacçaô dọ feu Rei na face
das mais triftes ruinas, de hum peri-
go eminente » e de todas as Provin-
«cias fe offereciaô os fidelilimos Por-
tu-
56 - Historia Gerar |
Era a tuguezes para impedirem os progréflos.
dos Caftelhanos a troco das fuas vidas;
e do feu fangue. -Entre todos ó: mais
infoffrido foi Joaõ-Sanches , moço de
baixa fórte , como filho que. era de
him lacaio do Rei D. Pedro. Efte mof>
trando o feu zelo igual á fua firmeza;
clamavá aos Póvos, que era huma in-
fania etar vendo eftragar a Patria;
e nað lhe acodir por nað faltar a hu-
ma obediencia, que nað tinha mereci-
mento: que para todos era mais glo»
riofo ir morrer debaixo das ordens de
qualquer homem , que os quizefle
guiar , que na falta das do Rei D.
Fernando confentir , que os Cafte-
lhanos fe fizeflem fenhores de Portu-
gal. Elle concluia, que os Portugue-
zes tinha6 os mefmos efpiritos' para
fazerem em pó os feus contrarios;
que fó lhes faltava quem os condu-
zifle; e para ifo ou haviaô inar ao
Rei olhaffe por fi , e por todos , ou
elles deviaô bufcar pefloa , que con- `
tra OS inimigos os governafle.
Sentio o Rei como era razað,
que femelhante homem tivefle inten-
: tos
DE PoRrUGAL, Lry. XVII. da
tos de divertir os-váfiallos da fuobe- Er-tulg. -
diencia., e metter-fe a intérprete-dos
motivos , que elle tinha para o feu mos
do de conduzir-fe. Elle o mandou «vir
á [na prefenga, e depois de lheéfira-
fhar: o efpirito de revolta, que o tranf-
portava 4 o caftigou com o defpreza.
de mal haícido, chamando-lhe Moço
de mulas. que tinha fido o officio. de
feu pai. Tudo Juaô Sanches ouvia at-
tento ; məs como avirtude”, e ova-
lór- o zelo , e amor da Patria: lra-
via6: reparado nelle’ os'defeitos do feu
nafcimento , refpondeo refpeitofo ; .e
intrepido: -Senhor eu conheço , que
afim he quanto dizeis ; mas fe vós
tivefes muitos Moços dé-mulas como
efte , os Caftelhanos voflos inimigos
nað fe atreveriad tanto a vós; e að
voflo Reino. A refpofla nað foi toma-
da como ofenfiva do refpeito, mas 4
voz cominua da lifonja a notou de te-
meraria. Outras acções gloriofas com
caracter de (fublimidade fem defeito
nos offerece a Hiftoria nee tempo ,
que nað devem ficar fepultadas no fi-
lencio.
Quan-
sê - Hisroria Gerar < :-
Era wig.. © - Quando o Rei. D. Henrique mar-
cháva de Coimbra para o útio . de Lis-
boa,:chegau. corn. todo o exercito a
Torres-Novas ; Praça-, que defendia
Gil Paes como fed Alcaide Mór , que.
foi. notificado .para a entregar fem fe
expôr ao perigo. +, que lhe ameaçava
hum. txercito vigtoriofo , e formida-
vel.. Refpondeo Gil Paes, que. elle fó
tinha medo de faltar ás obrigações da
honra , e que:;para cumprir com. el-
Jas eftava refolutp a defender a. Praça
até a ultima ecktromidade contra o poe
der «do mundo, Os primeiros tepe-
lões , afim nas fahidas ad campo so cos
mo no ataque dos muros y, moltrárad
ao Rei de Caftella, que Gil. Paes fale
lára devéras: Como elle eftava impar
ciente por chegar a Lisboa., e obfer-
vou na defenfa de Torres a perda:do
tempo ; mandou levar 'á frente dos
muros a hum filho de Gil Paes, que
tinha prifioneiro , ordenando-lhe en-
tregafle a Praça fena6 queria vêr en-
forcar feu filho, Refpondeo o Alcaide
Meer: Que feu filho eltava em feu po-
der, eelle tinha acçað para fazer o
e
DE PORTUGAL p LIV: XVII. so
le o que- guizeffe'; 'mas que ar Praça y, Era wulg.
ainda que elava nas. foas mãos ;.: era:
do Rei leu- Senhor, ‘e elle nad :tixiha:
podér para. à entregar ferm 6Hendera:
fua- honra, Com barbaridade: indigua»
foi o filho. enforcado á villa. de few,
pai , {ó tocado dos ‘feus deveres ; 40"
fentimento. natural como -immovel y
mas elle teye a gtoria dever Tevantaé
o ftio ; é arvorar o feu Caftelto os:
trofeos » que entad: deixdrad: arraftat
as Cidúdes mais usa oo
fobre- todas a fua Corte. e em ds
entrátad por Entre-Douro e Minho os
Fronteiros Pedro: Rodrigues Sarmien-
to, é Joad Rodrigues de Biedma , der
sareando a confternação pelos feus
Póvos indefenfos. :Quizeraó oppôr-e
aos inimigos. alguns Fifalgos das Pros
vincias. com a gente:; que. podérad
ajuntar , e com valor: defefperado ata-
cárað os Caftelhanos ; que levava6 de
vencida; mas como o partido era mui-
to deficual, e elles cahfraS em huma
Cilada, que de repente os enveítio pe-
las is elpaldas » nað podendo ne
El-
Go - Bistoria GERAL `
Era mig. "efte ataque dobrado , muitos: .foraS
mortos, e os mais. (e falvárad ` como
podéraô, entrè etes D. Henrique Ma-
noel, e D. Fernando de Caftro. Aco-
dia a unir-fe com efte deftacamento a
gente do Porto; que fazia caminho
pelo Caftello de Faria pouco diflante
da Villa de Barcellos. O feu Alcaide
Mór o Grande Nuno Gonçalves, que
a vio paflar, quiz fer participante do
feito honrado , que fe efperava ; e
deixando o Caftello encarregado a feu
filho , a acompanhou com algumas
lanças; Quando chegou efta trópa ao
“lugar , que havia fer do combate, e:
já era da viétória dos Caftelhanos 5
ella quiz retirar-fe , e nað o pode fae
zer fem a perda da liberdade de mui-
tos cavalleiros , em que entrou q
grande Nuno Gonçalves. o
Temeo efte Herve, que chegan-
do os Caftelhanos triunfantes ao feu
Caftello, o filho que havia defendel-
lo, o entregafle, e pedio aos que O
prendêraS quizeffem conduzillo ao mef-
mo Caftello para fallar a feu filho, e:
lhe perfuadir a entrega ; graça , -a
e O
DE PORTUGAL, Liv. xvm. GL
facilmente lhe foi concedida na cer- Besvulp.:
teza , de que pela liberdade do pai &
pada o filho fe efcufaria. Mas a lina
guagem com que lhe fallou efte Ca-
pitaó bravo , tronco illuftre dos def-
cendentes do appellido de Faria, mofa
trou bem quanto as fuas. intenções erað.
differentes da promefla. Elle lhe diffe
com a energia, que faz fahir da alma
os fentimentos heroicos , fe lembrafs
fe : Que aquelle Caflello lhe fora en-
tregue pelo Rei D. Fernando para à
defender com a honra propria do few
nafcimento : que-fuppofto eftar prefos
e impofibilitado para o cumprimento
dos feus deveres, fob pena da fua mal=
diçaô lhe ordenava., que em quanto
nað perdefle a vida fuftentafle o Caf-
tello, ainda que vifle fer elle alli mel.
mo feito em pedaços ás mãos dos
Caftelhanos, que o ouviad. Mais qui-
zera fallar o Heróe, fe as eípadas dos
inimigos, elcandalizados da zombaria,
naô lhe cortaflem o tecido da oraçaõ
com os fios da vida. Paflado de mui-
tas eftocadas , duas vezes illuítre mor-
reo no leito da honra q a
e an-
6à | Hisroria'GERAL
En wl.: Gonçalves de. Faria ; mas feu filho ,
em quem à sorte do pai fez menos
impreflaô aos: olhos, que harmonia as:
fuas vozes aos. ouvidos y pelas mef-
mas medidas de intrepidez y que o-pai.
talhou .o defprezo.da. morte , o filho.
medio as do valor, com que fe lançou:
aos. Caftelhanos, lhes arrancou das mãos
a preza , € Os obrigou a reípeitar as-
paredes do :feu Caftello.
Huma acçaô juftamente merece-
dora da memoria a O Rei D. Fernando
para a perpetuar., deo por Armas aos:
defcendentes de Nuno Gonçalves hum:
Caftello em campo de purpura , que
fazia allulaô ao fangue do Heróe , der-:
zamado, com a porta , e janellas de.
preto; ao pé delle hum homem
morto , que foi tirado , quando as.
Leis da Armaria prohibivad figuras hu--
manas. nos Efcudos. Nuno Gonçalves
foi. cafado com D. Therefa de Meira,
filha de Gonçalo Paes de Meira, fe-
uhor de Colares, e outras muitas ter-:
rzs.. Teve della: dous filhos , que fo-
sað Gonçalo Nunes de Faria, Chéfe
da. audios e vingador da oo de.
eu
DE PoaTuGaL, Liv. XviIr. 63
feú pai, que depois foi Clerigo, Abe Etarulg.
bade. de Rio Covo; e Alvaro de. Fa»
ria, Senhor da cafa:, e armado caval»
leiro na batalha de Aljubarrota em pres
mio: das: muitas gentiletas , que nellã
obrou no ferviço do Rei D. Joab’ i. á
{éu vilor herdado. 31.
1o Pog: outra parte as trópas do Rei
de Caftella » que haviaõ pilhado .Lis«
boa, depois. que fe-àpoderárao della,
faria laflimofa a ruina defta Capital,
e. feus contornos , fenab occorrêra-ao
mefmo tempo a mediaçao. do Papa
Gregorio XI. que enviou ao Cardeal
de Bulonha' com o caracter. de Legas
do para mediar a paz éntre os dous
Reis belligerantes. Ambos os animos
achou elle difpoftos para facilmente fe
fubmetterem ás determinações pater
naes do Pontifice; hum porque conhe»
cia a fem razaô com que rompeo a
guerra, e lhe fentia os eftragos:;.o
outro porque fe quiz moftrar obedien-
te , e ceder dos feas triunfos á inh-
nuaçaó do Santo Padre; como D. Fer-
nando eftava defarınado , muitas Pra-
ças do Reino rendidas , o inimigo en-
tra-
64 .: Histokia GERAL :
Era :volg-- tranhado nelle , com eftas realidades
de vencido , nað podia eíperar. Trata-
do. muito vantajoío. Elle foi obrigado
a abandonar a alliança do Duque de
Lancaftro ; a.ligar-fe com Caftella, ©
França; a a lançar de Portugal :os Cal-
telhanos , antes rebeldes a D; Henris
quo ; mas as ie todas. lhe‘ forað
reftituidas. > ~
O Rei de Caftella 5 “que flasa
efcarmentađo’. da: pouca duraçað das
pazes de Alcoutim, quiz fegurar eftas
com. refens de terras, e peffoas ;COns
fideraveis., que. realmente fe lhe en-
tregárad. As Praças foraô Vileo, Mi-
randa , Pinhel , Almeida, Cerolico s
Linhares , e fegura. Às peflvas erað
o Conde D. Joað Affonfo, irmað da
Rainha D. Leonor; D. Joaô, Conde
de Viana; D. Rodrigo Alvares Perei-
ra » filho do Prior do Crato ; o. Al-
mirante Lançarote Peçanha ; feis fi-
Jhos de outros tantos Cidadãos nobres
de Lisboa ; quatro do Porto , e qua-
tro de Santarem, que haviad eltar em
Caftella tres annos por Garantes da
palavra Real do feu Soberano. 2
ea
DE PORTUGAL: Liv. xvin. 65
deal Legado cheio de prazer pelo bom Eta vulg.
fucceflo , e brevidade da fua nego-
Ciaçad , para eftreitar mais a uniad
entre os Reis , depois de fallar a D,
Henrique em Lisboa , paflou a Santa-
rem a perfuadir D. Fernando para fe
aviltarem ambos, e tratarem amigavel-
mente dos feus interefles. Foi deter-
minado , que quando D. Henrique fe
recolhefle para Caftella , o primeiro
encontro fofle no Tejo,
Quizerad os Caftelhanos divertil-
lo com o efcrupulo de qual dos Reis
havia fallar primeiro ; pertendendo,
que D. Fernando rompefle o hlencio,
por fer Rei de Eftado mais pequeno,
e mais moderno , que o de Caftella.
D. Henrique atalhou a dúvida, e dif-
fe , que como elle nada perdia das
regalias Reaes em fer primeiro, ou ul- .
timo em fallar , que faudaria a D. Fer-
nando , antes que elle o fizeffe. Che-
gou D. Henrique com o feu exercito
a Vallada , pouco diflante de Santa-
rem, aonde embarcou em hum efca-
ler brilhante, o Cardeal Legado em
outro, e. appareceo D. Fernando em
TOMT. E hu- `
66 HistoriA GERAL
Eta vulg. huma falia magnifica , mandada por
hum Cavalleiro de gentil prefença.
Quando o Rei de Caftella o aviftou;,
diffe para os leus : Formofo Rei , for-
mofa barca, formofo Arrais. O modo
da abordage foi, poftando-fe nos lados
os elcaleres Reaes , e no centro o
Cardeal Legado , que nað podia dis-
fargar a (ua complacencia em otcafiaS
de tanto gofto , que era obra fua. D.
Henrique cumprio o que promettêra y
fallando primeiro , e dizendo a D.
Fernando : Dios os mantenga , Sekor ;
mucho eftimo el veros , por fer la cofa,
ue yo mas defeava. Praticados os actos
da civilidade mais delicada , os dous
Soberanos juráraôd a paz , e entre vo-
zes de alvoroço , defembarcárað em
Santarem.
Aconteceo nefte encontro o que
raras vezes fẹ tem vito no mundo,
que foi ficarem os dous Reis tað mu-
tuamente affeiçoados , que o refto das
fuas vidas fe tratáraS cum amizade re-
ligiofa, e effeêtiva. Para elles a aper-
tarem em laços mais eftreitos, ajuftá-
rað os cafamentos do Infante D. San-
e . cho,
DE PORTUGAL, Liv. XVII. 67
cho , Conde de Albuquerque , e ir- Eravulge
mað de D. Henrique, com a Infanté
D. Brites, irmã de D. Fernando; eo
de D. Affon(o, Conde de Gijon, fi-
lho do mefmo D. Henrique, com D.
Ifabel , filha de D. Fernando, ambos
baftardos: Cafamento tað pouco agra-
davel ao Conde D. Affonfo, que lhe
originou os grandes trabalhos já refe-
ridos. Os prazeres, o goíto, as fef-
tas, que neíta occafiag fe celebráraõ
em Santarem, fizeraô efquecer as rui-
nas da guerra 5 e mifturados Portugue-
zes com Caítelhanos pareciaô as duas
Nações emulas hum fó Póvo concor-
de. É
Da'paz de D. Fernando com Caf-
tella , da rotura da liga com ó Dugue |
de Lancaftro, refultáraô os defejos de
moftrar ao Rei D. Pedro IV. de Ara-
gaô o fentimento, que nað podia di- 1374
gerir na retençaô do dinheiro referva-
do em Barcelona para o infeliz cafa-
mento com fua filha. Efta refoluçaõ,
que nað paflou de idéa , e lhe pare-
eco motivo baftante para huma rotus
ra, O obrigou a ajuftar nova alliança
a E ii con-
68 Historia GERAL >="
Era vulg. contra Aragaô com Luiz, Duque -de’
1375
Anjou , irmað de Carlos V. Rei de
França. De parte a parte fe mandáraĝ
Embaixadores os dous Principes con--
tratantes , que nada do que ajuftárad:
emprehendêraô. Em quanto eftas cou-
fas fe tratavad, D. Fernando nað ef-
quecia os actos da fua liberalidade ,:
nem tambem os da fua juítiça. O fa-
tal Diogo Lopes Pacheco , que em
virtude da paz, ficára na Corte, ago-
ya convencido, de que com Joaô Lou-
renço da Cunha confpirava para ma-
tar o Rei com veneno , terceira vez
foi confifcado , e profcripto.
Outro frudto da paz, proprio da:
magnanimidade do Rei contra a efpe-
rança de todos , veio a fer a grande:
obra dos muros de Lisboa , que lan-
cando-fe a primeira pedra no ultimo
de Setembro de 1373 fe vírað con-
cluidos em Julho de 1375. Depois for-
tifcou Santarem, Obidos, Ponte de
Lima , e Viana, Almada , Torres-
Vedras, e Leiria. Com a mefma pro-
fufaô fez muitas mercês a varias Igre-
jas, e Mofteiros, que ainda hoje lhes
i je con-
DE PORTUGAL , Liv. xvit. 69
čoùlervað o explendor. Fez Cortes Era vulg.
“para promulgar Léis favoraveis ao
Commercio ,. fempre ambiciofo de
- fornecer aos feus vaflallos os meios |
de fer felices. Entað forad vantajofos 1377
os progreflos; da Religiað de S. Jero-
nymo neĝe Reino, que fe illuftra com
o magnifico Motfteiro de Belém, hum
dos Padrões immortaes da piedade dos
noflos Soberanos. . o
CAPITULO V.
Modos delicados com que fe conduz a
~ Rainha D. Leonor , fucceljos do Tn-
` fante D: Joad, Scifma do Anti- Pa-
a Pedro de Luna , e nova guerra
com Caftella, | o
t
A VARIEDADE do tempo , a ferie
de tantos negocios naõ alteravað no
Rei os primeiros vigorofos extremos
-de amor para com a Rainha: paixad ,
que creícia ao paflo que a reprovaçaõ
do Povo fe augmentava. Ella de efpi-
rito penetrante para prevenir os fuc-
ceflos futuros , vieflem elles da mað
70 Historia GERAL ~
Erä wulg. do Rei, ou do 'defprazer dos vafat-
los, qualquer delles batante- para- lhe
deftruir a grandeza. infubá ftente (e hum
dos dous Íopros. a agitafle; preparou
o efpirito para a applicaçaõ dos meios,
que nað fó apartaflem della os mãos
fuccefTos ; mas até.os fuítos. -Ella ap-
plica todas as dexteridades ; em quan-
to no Rei prefiftem os ektremos, pä-
ya fazer creaturas da fua mað , que
ainda na falta de D. Fernando lhe fir-
mem a authoridade. A'muita que el-
“Ja tinha de prefente ,. no feu efpirito
lhe dava plena fegurança, hum direi-
to firme para fazer o que -quizefle,
fem temer , que nada fe lhe recu-
fafie.’ | Dn,
Como a fua politica nað era tað
groflcira, que deixafle de faber, que
tbavia pegar na wccdhað pelos cabellos ;
ella cuidou em:ifazer podero(os.a to-
dos os feus -, que haviað refpeitalla
como coufa fua.: Por ifo fez confe-
yir o governo do Caftello de Lisboa
a feu tio D. Joad Aflonfo Telles,
Conde de Barcellos, que já era Mor-
domo Mór. Seu irmaô D., Joaô Af-
Rod fon-
DE PorTUGAL, Liv. xvin. yı
fonfo Telles já era Almirante ; agora Era vulg.
fez criar Conde de Neiva a D.Gon-
galo Telles, outro de (eus irmãos:
Conde de Cea a feu cunhado D. Hen-
rique : a D. Lopo Dias de Soufa feu
fobrinho Graô-Meftre da Ordem de
Chrifto : ao meímo D. Henrique de
Albuquerque da Ordem de Sant-lago,
ea fua irmã natural D. Joanna Tel-
les , que cafo com Joaôd Affonfo Pi.
mentel , fe lhe deo o. Senhorio de
Bragança : a Gonçalo Vaíques de Aze-
vedo., que determinava- calar com a
filha de hum dos feus validos. pro-
curou o Vice-Almirantado ; e defte
modo os parentes de D: Leonor Tel-
les ficáraô occupando os primeiros cər-
gos da Corte , fendo elles qs condu-
tores das funções mais .confideraveis
da Monarquia. o RE q
Ganhar a Nobreza, e attrahir 8
devoçad do Povo erað outros dous
pafos , que nað fugiað á perípicacia
de D. Leonor, nem lhe efcapavað as
maneiras infinuantes de os conduzir
com vantagem. De bum, e outro cor-
po ella fe declarou. protetora para fa-
| zer
72 Historia GERAL `
Era vulg. zer a ambos officios tað conformes;
que bem parecefle fe arrogava a natu-
reza do mais principal: dos feus mem-
bros. Os Fidalgos para qualquer gra-
ga, que pertendeffem , nað neceflitá-
vað mais diligencias, que apreíentare
lhe hum Memorial. O menos que os
obrigava era o defpacho , que ainda
fendo grande, perdia o vulto á vifta
dos ‘modos benevolos , com que elle
era conferido, O povo fe follicitava
immunidades , dons , privilegios , e
ifenções , encontrava a Rainha na fua
téftá como canal, que da mað do Rei
fazia correr tudo com affluencia , mui-
tas vezes maior , que os defejos. Tu-
do ifto era neceflario para fatisfazer a
tantos’ defcontentes - de a verem no
Throno ; mas tudo era parto de bu-
ma politica corrupta, que nað podia
ter por muito tempo cobertos a im-
piedade , e o odio , que o coraça6
de D. Leonor reconcentrava a todas
as pefloas , de que fe podia temer,
fem excepcað do feu mefmo fangue.
Huma fé apparente disfarçava a perfi-
elay que nað tardou em moftrar nos
el
DE PORTUGAL, LIV. XVIII 73
efcandalos, que o Sceptro eftava vio- Era vulg. |
lento, e a Coroa fora do feu lugar.
O fucceflo fem exemplar do In-
fante D. Joaô he próva evidente def-
tas verdades. Clandeftinamente havia
o Infante calado com D. Maria Tel
les, irmã da Rainha, fendo viuva de
D. Alvaro Dias de Soufa ; que eftas
fenhoras :na elegancia da fua gentileza
tiveraô dote fobrado para darem as
mãos a Principes. O mefmo foi a
Rainha penetrar o cafamento occulto,
que dar-lhe faltos o coraçaô para nað
guardar medida ás induítrias. Ella fe
deixou . occupar do temor da morte
previa de D. Fernando, -que pro-
mettia pouca duraçaô por viver acha-
cado , e já lhe parecia eflar vendo o
Infante , e fua irmã aflentados rio
“Throno na falta de filho varað , que
nelle lhe fuccedefle.: Sem perda de
tempo entra a derramar palavras myfl-
teriofas , que lifongeavad o Infante
nas efperanças de o calar com fua fi-
lha a Infante D. Brites : Princeza a
tantos- promettida . pára fer o raio fa-
tal, que ateou na Monarquia ni
ios
kra vulg,
74 Hisroria GeraL
“dios vorazes. Para fazer a D. Joad
crivel ee projecto, o capacita, qué
fua irmã D. Maria lhe falta á fé de
eípofa; he huma adultera , e que el.
le deve olhar pela fua honra. D. Joaõ
nað duvida cumprir com ella fe o
crime for verdadeiro. A Rainha, que
nað queria deixar a (ua obra imper-
feita, teceo a mentira com tantos ap-
paratos de verdade , que o Infante a
creo, e aflegurou a D. Leonor, que
elle fem mais exame matava a mu-
ther.
Sem dar refpofta ouvio D. Leo-
nor efta refoluçaő do Infante : Silen-
cio abominavel, que o confirmou nele
la , arraftado pela ambiçao de pegar
mo Sceptro com as mãos pingando fan-
gue. À morte violenta de D. Maria
“Telles traçada com femelhantes intri-
gas , que todas fe imputavaõ ao Infan-
te., fez-fe enorme ; nað ha bocca ,
que deixe de fallar , todos fe queixa.
Teme a Rainha, que o Infante. cone
defle o crime ; e “à declare complice.
Fiada no fcu poder, intenta confeguir
do Rei fe ponha filencio- na caufa,
E pa-
ue
DE PORTUGAL , LIV. XVIII. 76
para o fazer crêr, que as fuas atten- Era vulg. |
ções pelo Infante faõ nella mais effica-:
zes , que os impulfos com que o fan-i
ue: a inífta a promover a vingança.
eftas mefmas propoítas confeguio a
arte os intentos do infeliz Infante, que
por efla morte entendeo abria o ca-.
minho ao Throno, fugir para Caftel-
la, defamparar o Reino, deixar nelle
fepultadas as efperanças da Coroa.
A Rainha contente por confeguir
as idéas deteftaveis a expenfas da alma
propria, e da vida da irmã innocen=
te, agora lhe chorava a morte, quan=
do a recreava a ruina do Infante, co-
mo meio unico da firmeza da fua au-
thoridade. Porém a Providencia Divi-
na , que cheia de equidade confunde
em fi mefmas as idéas injuftas dos ho:
mens ; nað fó á Rainha, mas aos ou-
tros Co-Reos do crime deteftavel fez
no mundo: huns efpeetaculos da exe-
cuçad da. fua juítiças Na Rainha def-
carregou o golpe da infamia na mef-
ma culpa , que ella falíamente impu-
tára a fua irmã, e aarrojou a Catel-
la fem dominio ,. aonde foi e po-
re,
nó Historia GERAL |
Era vulg. bre, preza, e acabar aborrecida. O
1378
Infante teve igual deino no mefmo
Reino , e quando (e vio opprimido
dos ferros , entaô conheceo , que a
morte da mulher , forjada pela ame
biçaô de reinar, ella era a unica cau-
fa de perder a Coroa, que a nature-
za lhe deftinára, fe a crueldade nað
a perdêra. O Conde D. Joað Affonfo,
depois de fupportar os revezes da for-
tuna , foi morto miferavelmente na
batalha de Aljubarrota. Em todas as
idades tem fido politica inalteravel do
prefcrutador das intenções humanas,
que os authores das Tragedias , no
ultimo auto, lavem o theatro com O
feu fangue. |
Os peccados de elcandalo , que
neftes tempos fe amontoavad no mun-
do, enfurecêrad o Deos das piedades,
que permitio em caítigo delles na fua
Igreja huma das roturas mais enormes,
que ella tinha experimentado em mui-
tos feculos. Morreo o Papa Gregorio
XI. : perda para Portugal (enfivel,
que tantas próvas recebêra da fua af.
feiçaO paternal. Foi eleito Urbano VI.
pas
DE PORTUGAL, LIV. XVII 77
pára fer teftemunha da tempeftade , Era vulg.
que combateo a Ndo da Igreja , e
perturbou o animo dos Vieis com o
Scifma de tres Papas, fem fer facil
dillinguir o verdadeiro dos falíos : tu-
do confusões , que arraftavad os ho-
- mens mais fabios para dizerem mal
do bem, e bem do mal, para pôrem
trévas nas luzes, e luzes nas trévas, |
para goftarem o doce no amargo , e
o amargo no doce. Ao Pontifice legi-
timo Urbano VI. oppozeraõd os Fran-
cezes o Anti-Papa Clemente VII. que
com alguns Cardeaes veio para Avi-
nhaô , primeira origem do fcifma ,
que durou çoannos. Entaó forað con-
tínuas as defordens nos Ellados vacil-.
Jantes, e muito maiores as dos dous
Chéfes legitimo , e intrufo, que en-.
tráraO a fulminar anathemas frequen-.
tes de Roma contra Avinhad, de
Avinhaô contra Roma. l
Naő mudou Clemente de eftylo `
com Bonifacio IX. que fuccedeo a
Urbano , nem elle de condiçaõ a ref-
peito de Clemente. Quando fe efpe-
Java, que com a morte dos dous con-
ten-
78 . Historia GERAL.
Era vulg.. tendores efpirafle o fcifma, e reinaf-
fe pacifico Innocencio VII. canonica-
mente eleito, contra elle fe levantou
Pedro de Luna , que fe quiz chamar
Bento XIII., e collocado no Solio de
Avinhaõ, refitio com tenacidade abo-.
minavel á Cadeira de S. Pedro em Ro-
ma. Caftella , Aragaô , e Navarra
fempre feguirad os Anti-Papas. De
Portugal dizem o mefmo o Arcebifpo
D. Rodrigo da Cunha, Manoel de Fa-
ria, e Duarte Nunes , affirmando ,
que o Rei cahira no erro, ainda que
depois fe retratára , fem elperar as
decisões do Concilio de Conftança ,
como os tres Soberanos de Hefpanha
acima ditos. Aquelles Authores tað il-
luminados fe enganáraô , ou de huns
a outros fe communicou o engano de
algum delles em ponto tað eflencial ,
que forneceo fundamentos fólidos pa-
ra fe fultentar o direito do Meítre de
Aviz contra o pertendido da Rainha
D. Brites de Caftella fobre Portugal.
Mo fuppofto , fem eu me embaraçar
nos modos por que fe conduzirao na
occafiaó delte (cifma os Reis du
a A a
DE PORTUGAL, LIV. XVIII 79
"ta Coroa D. Henrique , que viveo Ee vulg.
ouco depois delle, e D. Joaô I. que
he fuccedeo , por fer hiftoria alheia,
eu paflo a referir o que nos perten-
Cc a l
Prefumem os tres Authores cita-
dos, que o Rei D.Fernando feguira
os Reis de Hefpanha no reconheci-
mento dos Anti-Papas de Avinhaós,
e que fe retratára períuadido dos In-
glezes feus alliados , quando vierað
ajudallo na guerra , que teve depois
com D.Joaô J. de Caftella. Efta nota
geral ao Rei, e Reino nafce de hum
engano parcial bebido na quéda de
hum fó Prelado com alguma parte do
feu Povo , que fem difcernimento ilə
luminado , marchou rebanho rude
apôz os veítigios do feu Paftor, Foi ete
o Bifpo de Silves no Algarve D. Mars
tinho de Samora , que como era de
Nagað Caftelhano , nað quiz feparar-fe
dos fentimentos dos feus Patricios,
e á fua imitaçaő fe declarou fcifmati=
co. Todos os Efcritores Ecclefiafticos
nos daô próvas deftas divisões arbitra-
“tias dos Bifpos dentro de hum meímo
80 "Historia GERAL
Era wig. Efiado Soberano , e naĝ nos deve fas
zer efpecie efta fingularidade do Bifpo
de Silves, contraria ao commum fen-
tir do Reino de Portugal, e de muita
parte do do Algarve. Deos fabe fe o
erro de D. Martinho foi a caufa de o
matarem fem efcrupulo como a hum
Ícifmatico, quando elle já eftava pro-
movido a Bifpo de Lisboa na revolta:
do Meflre de Aviz. | ?
© O Rei, e Reino de Portugal re-
conhecéraô logo a Urbano VI. por
Papa legitimo : Refoluçaô , que com
huma Carta pompofa pertendéraôd tranf-
tornar os Cardeaes feus oppoftos. Mas
chegando ao mefmo tempo de Italia o
celebre Joaõ das Regras bem inttruido-
elo feu Meflre Baldo na legitimidade
de Urbano: elle a perfuadio com tan-
“ta força de razões, e fenfibilidade de
evidencias, que a-Carta dos Cardeas
foi defprezada , e os Portuguezes fe
fulentáraô firmes na obediencia aos
verdadeiros Succeflores de S. Pedro,
fem que depois tiveflem náda que in-
novar , nem de que fe arrepender á
vita da decifaô do Concilio Conftan-.
cien-
DE PORTUGAL , Liv. XvilL 81
cienfe. . Pedro de Luna, já Cardeal, Eta valg:.
veio à Hefpanha vivendo ainda Hen- 1379
rique Il., enaõ nos confta, que entre
nós: publicafle a fua miflaô diabolica;
que: tanto quiz prevalecer “contra a
Jgreja de Deos. Dois: annos depois
recebemos a fua vifita em Santarem;
aonde. o Rei D. Fernando lhe ouvio
hum eftirado difcurfo , tað cheio de
pompas., ornatos o€: delicadezas , que
gra capaz de fe infimuar nos corações
mais duros. O Rei lhe reípondeo, que
como o afumpto:-ida fua falla continha
pontos de-Doutrisa , que: nað erað da
fua. profifiao fecúlar; que elle owviria
os Prelados do fey -Reino para fe ree oc. ;
folver.' SEE EE saa
© “Nós devemos aiAuthores Efbrans
geiros , efpecialmente a Rainaldo:'nós
feus Annags, dar-nos noticia deíta Juns
ta. de Santarem. 'Elle hos diz : Que os
Prelados de: Portugal com.argumentos
fóxidos jarretáraô os fofificos , ein-
trigantes do Anti-Cardeal! Pedro: de
Luna.: Depois trata.ao largo os:mefw
mos argumentos de convicçad no anno:
de 1381, número 34, € conclue: Que
TOM. y. F os
84 ' Hisrokia GERAL”
Era es os insira dos Prelados confirmãs
1380 -
rað aos Portuguezes na.obediencia aos
“verdadeiros Papas > qué elles cóbrira6
de affrontas , e defprezos ao Sedugtor ,
que fe retirou envergonhado , e depois:
fe queixou aos Padres. feus amigos do:
Concilio de Conftança defla pouca at-
tençaO dos Portuguezes : que eftes »
entre os outros Reinos das Hefpanhas,;
erað os mais dignos de louvor , co-
mo os mais obfequiolos á Santa Sé,
defprezadores conftantes dos lifonjeiros,
e rochedos immoveis , aonde davað ,
e rotrocediaô fem os aballar as -ondas
furiolas da feducçaô. dos (cifmaticos.
- Quando: principiava. -efte Ícifma a
tomar as maiores forças, acabou a vi-:
da o Magnifico Henrique H. Rei de
Caftella , e entráraS novas afflicções
a opprimir 'o efpirito da ambiciofa Rai-
nha de Portugal -D. Leonor para fe
fegurar na mudança. dos interefles , que
nað podia deixar de fobrevir. Com a:
morte de D., Henrique fe desfez o cafa-
mento ajuítado entre feu filho o Du-
que de Benavente-Fredirico, e a nofla
“Infante D. Brites, que fe eftimava her-.
» na PA ; dei-
DE PORTUGAL, Liv. XVIII. 83
dtira do Reino; e a continuaçað das Era vulg.
moleítias de feu Pai fazia temer & bre-
vidade. da fua perda. - Efte futo , e
agquelle fucceflo obrigárað a Rainha a
esforçar-fe nas. diligencias de bufcar
hum protector poderoío , que a titulo
de marido futuro da Infante fua filha a
fuftentafle fem mudança na authosidade
prefente. Nefte anno nafceo o meni-
- no Henrique, . filho. primogenito do
novo Rei D. Joaô |. de Caítella., e a
Rainha o entendeo eípoío proprio,
pelos muitos: anuos:;:'que podia:.eípé.
rar, para a Infante, que nað goflaria
como herdeira: de- ter tanta paciencia,
Eila o .propôz a D. Fernando, que co»
mo era gofto da mulher, nað podia
duvidar ; e mandados Embaixadores
reciprocos , fe: ajuíftou: com o recem
nafcido o cafamento , que eltava def-
tinado para feu Pai.
O Conde de Ourem, e Gonçalo
Vaíques de Azevedo foraô os Minif-
tros mandados a efte ajute , que mof-
trárað a feu Amo concluido , e nas
duas Monarquias fe fez público com a
condiçað plaufivel , de que as Coroas
E F ii de
84 Historia GERAL `a
Era vulg. ' de Portugal, e Caftella fe veria" ramii
das na frente do primeiro Principe.
que nafcefle do -inaugurado matrimo
nio. Intereflante era a Portugal , e
muito mais 4º Rainhá ,. ir-fe. nutrindo
efta ídéa pelos meímos vagares , cont
que o Infante de; Caftella fe. criava.
mas o Rei D. Fernando , que em tux
do tinha caracter fingular , do ajute
fez huma fabula ;: rompeo a alliança 4:
e para moftrar , que. a amizade conx
D. Henrique era mais nað poder , de~.
clarou o odio contra a pefloa do filho 5;
fem motivo algumtoma a ligarfe
com o Duque: de Lancaítro fobre as
pretenções á Coroa de Caftella:, e de~
génera o Tratado do cafamento em hu~
ma formal declaraçaô de guerra, qué
trataremos no Livro feguinte,
o s i q
i A E
ont Sanoin
vo LIVRO XIX
Da Hiftoria Moderna de Portugal.
| CAPITULO L
Da guerra do Rei D: Fernando com D.
` Foa I. de Caftella , eoutros fuccej= `
co Jos, que dellaforaô refulta.
| a o Rei D. Fernando
defcubrir ao mundo , que a amizade
contrahida com D. Henrique nas viftas
de Santarem erá huma apparencia ex-
Aerior, ..que occultava no fundo do anie
mo a dor dos eftragos na guerra paf-
fada ;. a emulaçaó da fta fortuna para
elle taô contraria; os defejos da vin-
gança na primeira conjunêtura favora-
vel para ella. Tudo elle affim concebe,
“explica em proprios. termos ao Confe-
lho de Eftado , que convocou para lhe
ouvir os votos fobre o modo de fa-
gera guerra, Todo elle ficou atonito,
quando ouvio a propoíta do Rei, que
e > i . AUP-
Era vulg;
1380
86 | Historia GERAL
Era vulg. fuppunha ligado . com. « os vincolos. à
mais perduravel paz. Naô houve esfor-
a a que élk perdaafie; phraT divertir
ei de femelhantes intentos , que
dead dó ajufté do cafamento ` des
Principes das duas Coroas, o mundo
olharia para as fuas negociações como
para huma efpecie de illufaô, que zome
baya das Magelftades. Nada moveo a
D. Fernando para mudar de dictame ;
e fervindo-fe de Joaô Fernandes An-
deio; hum dos Fidalgos Caflelhanos,
“que em virtude da paz de Santarem
" fahio de Portugal , € eftava em Lons
dres ; por feu meio ajuftou a liga com
Inglaterra + e elle veio occulto a Pars
tugal dar parte dos Artigos da negos
ciaçaô.
Confiftiaô elles , em que Q Dus
que de Lancaftro mandaria a elle Reis
no a feu irmaô o Conde Edmundo com
as maiores forças, que lhe fofle poffi-
vel para ajudar na guerra ao Rei D.,
Fernando : que o Conde traria comfi-
go o Principe D. Duarte, filho do Du-
que, e neto do Rei D. Pedro de Caftel+
la p para cafar com à Infante. D.. Bri»
| tes »
À of pm e, =D ma Dame ————mm O e ra rei mer ama
DE PorTUGAL, Liv. xx. 87
tes ; e ferem ambos herdeiros dos dous Era vulg: -
Reinos de Caítella, e Portugal, que
a. cada hum tocavad ; e outras diípo-
fições a reípeito do pagamento das
trópas. Naô fe occultou ao Rei de
Caftella a negociaçao das duas partes
coutratantes ; e para melhor oblervar
os movimentos de Portugal , veio para
Salamanca , aonde principiáraõ a affli-
gillo idéas triíftes. A noticia da morte
da Rainha D. Joanna fua Mai foi acom-
panhada dos avifos de vinte galés, e
quatro grandes nãos, que fe prepara-
vað no Téjo ; dos d4 grande armada
Ingleza , que nelle fe efperava; do
das muitas trópas, que fe levantavaô,
€ praças, que fe guarneciad em Por-
tugal ; de que feu irmaô o Conde de Gi-
jon follicitava efta guerra , refoluto a
unir as forças proprias com as de {eu
fogro o Rei D. Fernando.
Tantos preparativos confirmárad
a certeza da guerra ao Rei , que reli-
giofamente obfervava os Tratados de
paz , e nað pode deixar de afluftar-fe
com a vinda dos Inglezes a Hefpanha ,
acompanhados do direito do Principe
68 “Hisrokias GERAL ~
Eravulg. ' D. Duarte á fua-Coróa, e com a pros
mefla da de Portugal: pela efpofa futu
ra : interefles .ta6) importantes ., que
era impoffivel: deixarem: de'obrigar Ins
glaterra a fazer os ultimos esforços:
Porém a refulta deftes penfamentos no
Rei D. Joað foi refolver-fe a defen-
der animofo a fua Coroa contia todos
aġuelles , que intentaflem aballala; Co-
mo dilatou o coraçað elle fe dèo táð
pouco. a fentir da renovaçaô da liga.
que a ninguem: pedio foccorro, neim y
vinhos , nem a amigos. Tudo:fion
das fuas difpofições ; deo ordens efs
feđlivas para a armada , e. o exeréito
eftarem promptos a fahir ao. mar y é
mover-fe ao primeiro fom de caixa.
Em quanto nað marchava para. a: frons
teira , foi fazer huma vifita ads Efta-
dos de feu irmão o Conde de. Gijon ,
que ainda nað efperava por ella, ete-
ve de fe refugiar nas montanhas de
Oviedo. D. Joaô o foi feguindo , e o
cercou nefta Cidade , que nað. pode
defender, e rendido com humildade, .
reconheceo em feu irmaõ a Ífabera-
nia , de que fe jurou fiel vaffallo. -
| Com
DE PORTUGAL , Liv. XIX. 89`
+ Com a vantagem importante 'def-'Era vulg. .
te pafo declinou elle a, marcha para: 1381
© Riba-Coa, e cercou a Praça: de Al-i
meida y que depois de hum mez de:
tio , fe rendeo por capitulaçað. ' Os
Mefres de Alcantara , e Sant-lago' ens
trárad por Elyas , e faqueáraĝ os cam-
pos das Villas do Cano , Soufel, è
Vieiros. Ao-mefmo tempo fahio a atu
miada .de Sevilha ás ordens do bravo
D. Fernando Sanches de ‘Toar , que
fez varias irrupções pela cófta do Al-
garve. Ainda o Rei fe nað movia, ef-
perando a chegada dos-Inglezes para
principiar as operações da: campanha ;
- mas vendo os inimigos fenhores: das.
de mar, e terra , acodio primeiro á
defenfa das Praças , e encarregou El.
vas a D. Alvaro Pires de Caftro, Con-
de de: Arrayolos; Olivença ,:Campo-
Maior , e Arronches ao. Meftre de
Aviz D. Joa5; Portalegre ao Prior do
Crato D. Pedro Alvares Pereira; Villa-
Vigofa ao Conde de Viana; Béja ao
Mettre -de Sant-Iago ; e as das“ outras
Provincias aos feus Alcaides Móres.
“Nomeou para pic cio
do e É on-
9o Hisrorta GERAL
Era vulg. Conde D. Joað Affonfo Tello, irmad
da Rainha ; primeiro prefagio da (ua:
infelicidade pela ignorancia do Chéfe
nas manobras de mar , e guerra , que.
tudo hia aprender da difciplina de hum
Cabo Íugeito ás ordens do Conde.
O de Arrayolos em Elvas quiz
defpicar a injuria, que nos fizeraô os
Meftres de Alcantara , e Sant-lago,
talando a campanha de Badajóz. Elle
convidou para a empreza ao memora-
vel Gil Fernandes, que depois da óc-
cafiaô , em que fe fingio o Infante
D.Joaô, os Caftelhanos ouviaô o feu
nome com reípeito. As trópas avança-
das foraô logo inveítidas pela cavalla-
ria de Badajóz , que fez parar o Con-
de para ver como os feus fe retiravaõ.
Gil Fernandes o inftava para que fe
' avançafle fobre os inimigos; mas o
Chéfe bifonho ficou immovel fem fa-
ber determinar-fe. O bravo Gil, nað
podendo foffrer a affronta á (ua vifta,
com vinte de Cavallo fe lançou aos
inimigos como hum raio, e depois de
matizar o campo de fangue , os met-
teo às lançadas pelas portas de Bada-
o józ »
BE a
DE PORTUGAL, LIV. XIX. 9g
józ, donde fe recolheo com a reputa- Ers vulg: -
ça6 renovada, cheio de gloria,
;: Penetrou-fe o Rei D. Fernando da
frouxidaô do Conde de Arrayolos:, e
“ordenou a D. Nuno Alvares Pereira,
que na idade>de 20 annos fe fazia
récommendavel entre os homens dei-
xafle à Provincia do Minho , e: fofle
fervir em Portalegre às ordens de feu
irmaô o Prior do Crato para fe achar .
com Gonçalló Vaíques de Azevedo na
invafað , que o mandava fazer no Paiz
inimigo, em otdem a reparar a que
bra do Conde. Já as trópas deftinadas
para a empreza eftavað. em marcha,
e houveraô de (ufpendella pela: noti-
cia, de que o Infante D. Joaô de Por-
tugal, que fervia em Caftella , che-
gára com exercito poderofo a Bada«
józ para fe unir a D. Fernando Ofo-
res , Meftre de Sant-lago-, e formas
rem ambos o fitio de Elvas, deftina-
do para a abertura da campanha.: No
principio de Julho apparecéraõ. elles á
vifta da Praça com grande fentimen-
to do Rei D. Fernando , que tinha de-
terminado fer o primeiro em: Fa
jo d-
92 Historia. GERAL 7
Erwlg. Badajóz ; mas fe efte pelar o affligia s
elle neceflitou de todo o esforço do-
efpirito para ouvir a nova infeliz da
perda. da fua armada. |
Embarcáraõ nella fis mil homens.
de tripulaçaô com muitos Fid:'gos da
“primeira diftinçaO do Keino , ambi
ciofos de honra , que foraó perde de
baixo do commandamento de num ho-
mem , que fiava os bons fucceflos da
vaidade de fer irmaô da Rainha D.
Leonor. Fernaô Lopes lhe córta os
elogios pelas medidas do merecimento.
Elle fe nað embaraçou. com a falta de
déz galés , que deixou divertidas em
ver pelcar os maritimos do Algarve; e
dando afim a fuperioridade aos inimi-
gos, que: o efperavaô furtos; fem or-
dem, nem fórma de batalha , os in-
veftio, O deftro D. Fernando Sanches
de Toar foi fuftentando o impeto dos
noflos , que foldados , e chéfes de fi
meímos , moftravad que eraô Portu-
guezes. Quando obfervou a confufad
opportuna aos defignios , atacou-nos
com toda a farga, e fem perda de vi-
das, mas com muitos feridos, tomou
E to~
‘~
DE PORTUGAL, Liv. Xix. p3
todas as galés com o Conde Almirans Ets válg. -
te, que conduzio a Sevilha. Gil Lou-
yenço do Porto, que governava huma
galé , vendo à defordem com que o
Conde enveítia , a vantagem dos Caf-
telhanos , a confufað da batalha», e
tudo perdido. ; voltou a prôa , e veio
q Lisboa dar a infauíta noticia para im-
pedir a fahida das nãos , que fe fazia
preítes para reforçar a armada.
-Huma perda tað confideravel en-
çheo de-furor os Póvos do Reino, que
clamavaô contra a injuítiça da guer-
xa; pela laftima dos Lavradores, que
metteraô forçados na chufma da ar-
mada ; contra os parentes da Rainha,
que fem talentos, nem capacidade os
punhaô nos empregos para perderem
o Reino; e outras vozes femelhantes,
que deteftavaô a guerra como. efféito
da veleidade de hum animo. que :da-
va precedencias ao feu goto com. def-
prezo dos interefles da Monarquia.
O Rei disfarçou, o fentimento na; per-
da de tantys vafialios, e de defanove
galés com açhegada de 48 nãos Ingle-
zas ao porto de Lisboa, em gue viz
e E nhaô
~“
g4. HISTORIA GERAL |
Ern wlg nhaó o Conde, e Condeça de Cam:
brix , e feu fobrinho o Principe D.
Duarte, de {eis annos de idade ; que
fe deípofou com a Infante D. Brites,
que. contava dez; mas como as pala-
yras era6 de futuro » fobrevierad os
contingentes , que com facilidade als
teráraô o contrato, como moftraráô:
os fucceflos. Com tanta tranquillidas
de, e magnificencia fe fez efta cerés
monia , como fe o Reino eftiveffe go-
zando a aura benigna da'paz: poréir
os prazeres mudáraô à face com tan-
ta prefla , quanta foi a fealdade no
femblante da guerra. i
O Rei de Caftella , que eftava
na Beira , tinha tomado Almeida , e
os feus Generaes fitiavað Elvas , é
Miranda, que fe rendeo ; com ano-
ticia da. chegada dos Inglezes manv
dou levantar o cerco de Elvas, ajuti-
tar as trópas ą € pôre prompto a
obfervar os noflos movimentos. Pata
moftrar aos Inglezes , que nað os tê:
mia , efcreveo ao Conde de Cambrix
huma carta de defafio , em que fe
obrigava a buícallo duas jornadas den-
ja tro
mm rea PR q ET
DE PORTUGAL, Liv. XIX. os
tro de Portugal para igualarem o tra- Era
balho das marchas , e acharfe em
roporçaô conforme para a batalha.
Nao refpondeo o Conde; mas o Rei
mais picado , mandou ao Almirante
Toar ,.que com a armada fahifle de
Sevilha, e atodo o rtifco entrafle no
porto de Lisboa , e queimafle , ou
fizefle prifioneira a Frota Ingleza.
Hum dos dous deítinos lhe dera Toar
fe ella nað fe secolhefle no rio de Sa-
cavem , que. foi defendido por duas
groflas cadeas na fua bocca , muitas
vezes enveítidas pelo Almirante Caf-
telhano:; mas: como nað as pode rome-
per , elle fe recolheo a Sevilha, e a
armada : para Inglaterra , deixando en-
tre nós:, nos Īnglezes , inimigos mui~
to mais. crueis, que os Caftelhanos,
Naô fe cançaô os noflos Chronif-
tas de encarecer as atrocidades , que
eítas trópas auxiliares cometteraô em
todos os terrenos de Portugal , por
onde ândárad. O Povo affito fe con-
templava atacado por duas guerras,
mais intoleravel a dos Inglezes por
continua , (em gloria , nem refiften-
Ea cia.
“mio
96 . Histokia GERAL © :
Erag: cia. Preparava-fe a campanha. futura y
1382
e. D. Joað, Meftre de Aviz, com os
Inglezes fez huma entrada por Caftels:
la com-ruina dos Lugares de Lobon,
e Cortijo. D. Joað de Caftella penfa=
va. defcarregar: o golpe com mais for=
ca, e para elle.lhe deo occafiað aí
marcha do Rei para a Provincia do;
Alem-Téjo:, com defconfolaçaô ex-
trema .dos moradores de Lisboa, que
olhavaô efta retirada como huma fu=
gida , que os deixava expoítos a fof=:
frer os tratamentos mais duros dos:
Caftelbanos. Virad elles: entrar pela
barra as duas armadas de Sevilha , ei
- Bifcaja compoftas de oitenta vafos , que:
fazia. huma perípectiva apparato(a „:
e guerreira. Deraô fundo , e fem re~
fiftencia do Governador Gonçalo: Men=:
des de. Vaífconcelos, parentes..e.cria-
tura da Rainha , delembarcavad ; paf-i
feavaõ affoutos pelo -campo de Santa
Clara , e fora pondo fogo.a tudo!
deíde -os Paços de Xabregas até Vil-
la-Nova da Rainha, fem quero ecco:
de tantas ruinas defpertaflem o Gover-.
nador do feu lethargo.. s
In-
4 A r| ss MS DD
—
a mam mem
pe PORTUGAL, Liv. XIX. 99
: — Informado D. Fernando dos dam» Etá vulg:
hos , que os inimigos faziaô em Lis-
boa , mandou depôr do Governo ao
infeníivel Gonçalo Mendes , e fubf-
tituillo pelo Prior do Crato, que mar-
chou de Evota com (eus bravos ir-
mãos D. Rodrigo, D. Fernando, D.
Joaô , e D. Nuno Alvares Pereira,
que entaô moftrou nas gentilezas do
feu efpirito as muitas, que os Cafte-
Mhahos podiaô efperar delle em todas
as occafiões. Já os defembarques nad
erað tað frequentes , depois que o
Prior fez em poftas huma partida,
que fora faquear Sintra. Seu irmaô D.
-Nuno fez na armada mais vulgar ©
terror, quando no choque de Alcan-
tarą , com poucos cavaleiros , elle
cahido com o cavallo em terra , for-
çou hum corpo de' trópas muitas ve-
zes dobrado a embarcar-fe fugindo;
deixando no campo muitos mortos 5
e prefos : Primeira acçaô façanhofa
de D. Nuno , que o encheo de repu-
taçaô , e foi prefagio feliz das mui-
tas, para que os fados o guardavad ,
e hoje fað hum pregaó illuítre da fa-
ZOM. V. G ma,
,
98 HISTORIA GERAL
Era wig. ma, que anima o decóro dos Faftos
de Portugal.
Quando em Lisboa fuccediað
eftas coufas , os dous "Reis em pefloa
eltavad com as fuas forças fobre a
fronteira de Elvas, e Badajóz ; efpe-
rando-fe a cada inftante ouvir a noti-
cia de huma batalha. Face á face fe
achavaô os dous Rivaes com femblan-
te de inveltir-fe , quando de repente ,
fem a intervençaoS de Miniftros, fem
que até hoje fe faiba quem a rogou ,
a paz fe ajufta entre ambos os Reis.
Os campos , preítes a combater , fi-
cáraô paímados ; os Inglezes atoni-
tos; e como elles erað os mais pre-
judicados nos ajuítes, fe os foflrêraõ
pacientes com o temor de quem efta-
va em cafa alheia , nað os podêrað
levar callados , e hum fuçurro vago
arguia de leveza a refoluçad , que
derrotava as promeflas precedentes. Pu-
blicou-fe a paz , e ouviraô os Ingle-
zes a primeira condiçaô , que era o
cafamento da Infante D. Brites, já def-
pofada com o feu Principe Duarte,
agora novamente promettida a Hen-
ri-
E E
DE PORTUGAL, Liv. XIX. 99
ique ; filho do Rei de Caftella. As Eta vulg,
mais condições foraô a entrega das
Praças ; a reftituiçaô das galés toma-
das na batalha, que fica referida ; a
liberdade dos prifioneiros;, e fornecer
o Rei de Caftella as nãos neceflariass
que conduziraô os Inglezes ao feu Rei-
no com a grande gloria, que tirárad
defta empreza. |
Parece ter pouca dúvida , que O
Rei de Caftella nað perdoou a dili
gencia para confeguir efta paz, para
elle mais vantajofa, que muitas victo-
rias, fe continuafle a guérra, Elle juf-
tamente devia temer a proclamaçaõ do
Duque de Lancaftro ao Throno de
Caftella , que fora feita no meio de
hum exercito, e a que elle naô podia
prevêr as confequencias. Os mais Ar-
tigos , efpecialmente o do calamento
da Infante herdeira , todos fe faziað
refpeitofos. Porque afim o conheceo
o Meftre de Sant-Iago , quando vio
o Rei duvidofo em affinar o Tratado
com a claufula da reftituiçao das galés,
e que os Miniftros Portuguezes o amea-
gavad com a continuação da guerra
J ii e
100 Hisroria GERAL
Era vulg fe nella naô convinha : O Meftre lhé
diffe refoluto : Que reparaes , Se-
nhor, por vinte e duas galés em ef-
tado de nað fervir , que nada valem,
e por nað dares cinco nãos de tranf-
porte aos Inglezes , quereis perder a
importancia defta paz. Tal nað fareis ;
que fe ifo he por evitares as deípezas,
a minha Ordem as pagará. Fallando
afim , refpeitofo , tomou a mað do
Rei, como quem o forçava a afinar o
Tratado , que com effeito aflinou.
CAPITULO IL
Valimento de foaô Fernandes Andeiro
com a Rainha , e perfeguiçaô con-
«tra D. foaô, Mefire de Aviz,
que o reprova.
| Lou anno havia que Joað Fernan-
des Andeiro eftava occulto em Eftre-
moz no meímo Palacio , aonde fe
holfpedavaô os Reis. Aqui erað fre-
quentes as occafiões para a muita Con-
verfaçao, que fobre fer caufa do me-
nos apreço , ordinariamente avanga
DE PORTUGAL, LIV. XIX. ror
as facilidades -notaveis , e notadas , Eta vulg: .
que coftumad ter confequencias fu~
neftas. A Rainha D. Leonor conver-
fou muito com Joaô Fernandes An-
deiro : Converfações notadas , nota-
veis, e muitas , origem da facilidade
com que fe dizia, que a mað de Deos
defcarregára a pena de Taliaô em D,
Leonor , permittindo na fua pofloa
com verdade o crime, que ella fals
famente imputára a fua irmã a infe-
liz D. Maria. Como a mina em to-
mando fogo naô pode deixar de vapo-
rar incendios ; a Rainha quiz , que
Joaô Fernandes Andeiro parecefle em
público , como moço galhardo., e
gentil-homem., que era. 'Fudo quan-
to pertendeo confeguio do Rei, que
já entaô, pelos feus muitos achaques,
parecia cadaver ; hum homem todo
da morte. Á liberdade de fer vifio
ajuntou a Rainha a honra de o fazer
Conde de Ourem » que eftava vago
pela morte de feu irmaôd.
Gonçallo Vafques de Azevedo ,
que por (ua mulher , Camareira da
dl » foi informado das converfa-
ções
I02 Historia GERAL |
Era vulg. ções da mefma Senhora com Joab.
Fernandes : Fiado na authoridade de:
parente , cahio na imprudencia de lhe:
fazer advertencias por meio de humas
ironias, que fe no feu juifo erað de-
licadas , para o gofto da Rainha ti-
verað muito de grofleiras. Ella lhe
prometteo logo , que lhe cuftariað
caro os confelhos , que fe mettia a
dar de graça ; e porque.temeo, que
Gonçalo Vaíques defcobrifle o que fa-
bia ão generofo Meftre de Aviz, qué
incapaz de foffrer injurias de muito
menos porte , ou elle as defaffrontas
ria, ou as participaria ao Rei para as
vingar: Ella fe determinou a perdel-
los. Os meios verdadeiros, que para
efte fim traçou a iniquidade, os feus
authores o faberiað ; mas a fama pú-
blica fuftentava, que forað duas Car-
tas fabricadas pela Rainha , e Andei-
ro, que provárað na prefença do Rei,
como o Meftre, e Gonçalo Vaíques
erað dous traidores , que tratavaõ in-
trigas em Caítella contra o Rei, e
o Eftado.
= | | ie
DE PORTUGAL, Liv. XIX. 103
Ella , cheia de complaceúcia , Era vulg,
perfuade ao incauto Principe a felici-
dade, e deftreza com que .o feu cuiu
dado pode haver á maô as ditas Car-
tas: quanto fe deviad recear os dous
inconfidentes , que emprendiad idéas
temerarias fiados nos Infantes D. Joaô,
e D. Diniz, irmãos do Meftre, reti-
rados em Caíftella : que devia fegurar
as pefloas dos traidores para delles fe
fazer juítiça correfpondente ao mere-
cimento da caufa. Como ainda durava
a guerra quando ifto aconteceo , fa-
cilmente fe capacitou o Rei de quanto
lhe quiz introduzir a Rainha; e fem
mais exame, mandou a Gonçalo Vaf-
ques Coutinho , genro de Gonçalo
Vaíques de Azevedo , que ao Meftre,
e a feu fogro os levafle do Paço,
aonde eftavad , para o Caflello da
Cidade , que era a de Evora. Vaíco |
Martins de Mello , Alcaide Mór da
Cidade , tratou os preíos conforme as
ordens, que recebêra; mas advertido,
e prudente , elle foube guardar o De-
pofito , que a Providencia amparava
para honra, e liberdade de Portugal,
i quan-
104 Historia GERAL
Erg vulg: quando o defacordo de huma mulher
furiofa o queria fazer viima da fua
indecencia. : |
Na .mefma noite da prifaô foi ao
Caftello hum criado da Rainha , e
aprefentou a Vafco Martins hum De-
creto fallo, em que o Ref mandava,
que logo, fem demora fe cortafem
as cabeças aos dous prefos. Vaíco
Martins, que defconfiou do Decreto,
e do menfageiro , reífpondeo , que
executaria as ordens. Pafladas poucas
horas voltou o mefmo emiflario a fa-
ber fe as execuções eltavad feitas, e
informado, que nað ; tirôu por outro
Decreto mais forte , que apreflada-
mente as ordenava , e o emiflário com
vivas perífuasões as requeria. Vaíco
Martins o defpedio , dizendo : Que
era meia noite , hora incompetente
de fazer juftiga: que naquelles Decre-
tos poderia haver paixað , e queria,
que o Rei défle lugar á ira: que pela
manhã o informaria do que paflava ,
e entaô executaria as ordens , quando
da Pefloa do Rei as recebeffe. Afim
derrotou a fabio Vafco Martins as
in-
DE PORTUGAL, LIV. XIX. iog
frnitrigas malvadas , que aflombráraó Eta vulg.
o Rei, quando vio furtadas as fuas
firmas ; mas com o aflombro fe fatis-
fez , e foi-fe para o Vimieiro deixando
os innocentes prefos em Evora.
A Rainha que ponderava fruftra-
das as fuas idéas , e temia que os
prefos brevemente feriaô foltos , quiz
fazer feu efte negocio para obrigar O
Meftre; tratou, confeguio a foltura,
e na aufencia do Rei deo hum dia de
jantar ao Meftre. Elle fe approveitou
da conjuntura para lhe perguntar à
caufa da fua prifaô, que a Rainha nað
teve dúvida de imputar a Vafco Por-
calho pelo aleive , que lhe levantára
na prefença do Rei , aflegurando as
fuas correfpondencias em Caftella, e
a guerra que com os Infantes feus ir.
mãos tratava de fazer a Portugal; mas
que D. Fernando eftava informado da
falfidade de Porcalho. Outros prefu-
mem, que a Rainha em nada contri-
buira para a liberdade dos prefos, an-
tes chegára aos pontos da ultima de-
fefperaçaS , quando os vio foltos ; e
nað fabendo a que attribuifle efta
so . TẸ-
106 Historia GERAL
Era vulg, refoluçad do Rei 9 ajuntou å violencia
do feu fegredo a fimulaçaô da fua po-
litica.
Nað faltárað ao Meftre criados
zelofos , e valentes , que quizeffem
tirar a vida ao Commendador Mór de
Aviz Vafco Porcalho pelo tetemu-
nho , que a Rainha aflegurava tinha
levantado a feu Amo : mas elle, que
conhecia a duplicidade daquella Se-
nhora , os deteve, e períuadio guar-
daflem o feu valor para o empregarem
em occafiaô mais juta. Com tudo,
efte efpirito fublime , occupado da
injuítiça que fe lhe acabava de fazer,
vivamente fe queixou ao Rei, e em
público pedio lhe diflefle a caufa da
fua prifaõ. D. Fernando, que nað ti-
nha alguma com que a cohoneftar, e
ainda que já conhecia o caracter da
Rainha, o amor nað lhe dava lugar a
arguilla , voltou ao Meftre em tom
mageftofo : Que elle tivera por con-
veniente obrar affim com a fua pefloa,
para que conhecefle o mundo o poder,
que tinha fobre elle. O Meftre, que
fentio , mas nað fe perturbou no
Qla
DE PORTUGAL, LIV. XIX. 107
efta incoherencia , refpondeo retirane Era vulg, |
do-fe : Delde que vos reconheci por
meu Rei , Eu creio que he afim o
que me dizeis. o
Ainda nað fatisfeito o heroico
Meftre com eftas diligencias , que fi-
zera para foldar a quebra da fua hon-
ra offeridida ; pelas elquinas das ruas
de Lisboa amanhecêrad muitos car-
teis, em que defafiava a todos aquel-
les, que fem reípeito á fua alta qua-
lidade , tiverad o atrevimento de dizer,
que elle havia faltado aos deveres da
fua fidelidade , e á veneraçaô que con-
fagrava ao Rei feu irmaô. Como a-
grande Dignidade defte Principe pus
nha a todos os feus inimigos fora da
clafle de refponderem a eftes carteis
para medirem as efpadas: Os Officiaes
da fua cafa fixárad huma Carta geral.
de defafio , em que fe offereciað a
bater-fe com quantos oufaflem a ma-
cular a integridade dos procedimentos
de feu Amo. Na6 houve pefloa , que
tirafle a cara a eftes arreitos , tanto
do Meftre , como dos feus criados;
porque D. Leonor, fobre fer Rainha,
no era
108 Historia GERAL
Era vulg. era mulher , que nað podia fahir a
campo , e efte fem combate ficou lia
vre ao Meĝre para celebrar a victo-
ria.
Dous mezes depois dete fuccef-
fo chegou a Portugal a noticia da
morte da Rainha D. Leonor de Caftel-
la, Infante de Aragað, a primeira Se-
nhora defte nome fatal ajuftada a cafar
com o Rei D. Fernando : fucceffo,
que pôz em inquietaçað o efpirito dos
noflos Soberanos ; o do Rei com hum
objecto novo para o exercicio da fua
variedade; o da Rainha penfando no
Pai genro mais poderofo , que o fi-
lho para fe fuftentar. na authoridade.
depois da morte do marido, que para
ella corria accelerado. O mefmo foi
conceber-fe a idéa , que refolver-fe os
Reis à execuçaõ della, lem duvidarem
na rotura do Tratado freíco, nem em
offerecer a Infante ao Rei viuvo, que
podia nað fe lembrar de pedir para efa
pofa a Princeza , que acabava de ajuf-
tar para nora, O favorecido Joað Fer-
nandes Andeiro , Conde de Ourem,
foi nomeado para Embaixador Extras
: E Of-
DE PorTUGAL, Liv. Xix. 109
ordinario de huma commiffað , que por Efa vulg.-
lhe fer tað vantajofa aos intentos , a
havia trabalhar com os maiores esfor-
cos.
Sahio efte homem de Portugal
com metade da Corte lifongeira, for-
mando-lhe huma equipage tað fober-
ba, e magnifica , que entaô fe dizia
em ambos os Reinos a altas vozes:
Que Andeiro marchava em Rei, e que
o Rei ficava Andeiro. A defpeza excel-
fiva , que D. Fernando fez nefta occa-
fiað para o Miniftro apparecer pompo-
fo em Caftelia , foi no Reino aflum-
pto da geral murmuragað , que fe nu-
tria com a lembrança de outras pro-.
fusões indifcretas , e rematavad com
a prefente o vulto de huma prodiga-
lidade fem medida. No lugar do Pin-
to junto a Toledo fez Andeiro ao Rei
D. [oaô as propoítas, de que hia en-
carregado. Ellas adoçáraô bem prom-
ptamente a trifteza , que o Rei moltra-
va ter concebido pela morte da Rai-
nha fua efpofa. Elle nomeou para (eu 1383
Embaixador à nofla Corte a D. Joað
Garcia Manrique, Arcebiípo de seg
por
TIÒ Historia GERAL
Era vulg. poftella, que foi efperado em Almetz
da , e conduzido a Lisboa pelo feu
Bifpo D. Martinho ; e como nað fe
ignorava o negocio a que vinha o Ar-
cebiípo teve audiencia prompta.
As condições do novo cafamen-
to foraô ajuítadas nas primeiras deli-
berações , porque a vehemencia dos
defejos mutuos nað davað lugar a de-
moras longas, Por efte Tratado foi con-
cluido : Õue fe o Rei D. Fernando
falleceffe fem filho varað , que a Infan-
te D. Brites feria Rainha de Portugal :
Que o filho primogenito , que della
nafcefle, lhe fuccederia na poffe defte
Reino : Que fe ella naô tivefle fuc-
ceffaoô , feu marido herdaria Portugal
para fi depois da morte de feu fogro
D. Fernando : Que tambem efte feria
Rei de Caítella na falta dos filhos,
que D. Joaô já tinha da primeira mu-
lher, dos que podia ter da prefente ,
e das outras futuras , (e mais vezes
cafafle. Em fim, efa infeliz Infante ,
depois de fer promettida a D, Frediri-
co , irmaô de Henrique de Caftella , a
D. Henrique , e D. Fernando , e
o
`
i
DE PORTUGAL, Liv. XIX. sjit
do Rei actual do mefmo Reino, a D, Era vulg.
Duarte, filho do Duque de Lancaftro,
veio a cafar com o viuvo D. Joaô I.
para carretar a Portugal trabalhos, que
fe a Providencia quiz fazer gloriofos,
os meios de lhes colher os frutos fo-
rað tað aíperos, que fe fariaô intole-
raveis a outra qualquer Naçaô , que
nað fofle a Portugueza.
No dia 30 de Abril fe celebráraõ
as vodas na Capella Real, e fe deter-
minou o da partida, a que naô pode
afitir o Rei, já nefte tempo em efla-
- do laftimofo, que lhe prognofticava a
brevidade da morte. A Rainha com to-
da a Corte marchou para a fronteira
de Elvas, aonde fe havia fazer a entres
ga da nova Rainha de Caftella a feu
marido , que mandou a feu filho o In-
fante D. Fernando para aquella Praca
em refens á Rainha de Portugal , em
quanto nað confummava o matrimo-
nio. Nos planos entre Badajóz, e El-
vas fe armáraóô tendas magnificas do
campanha , aonde haviad aflifir as
duas Cortes na funçaõ da entrega,
Nene lugar deo o Rei o juramento 4
que
112 HISTORIA, GERAL >` |
Era vulg. que entaô fe coftumava, fobre humà
Hoíftia confagrada de guardar todas |
as condições eftipuladas no Contrato
matrimonial : ceremonia, que D. Fer-
nando já tinha cumprido da fua parte. |
Depois veio o Rei receber as Rainhas ás
portas de Elvas, por onde ellas fahi-
raô a cavallo, e acompanhadas de am-
bas as Cortes , chegárad ao campo,
aonde jantárað. |
Aqui fuccedeo hum cafo memo-
ravel , que qualificou de aufada a co- |
rage inimitavel de D. Nuno Alvares
Pereira, Comêraô os Reis com o
Meitre de Aviz a huma meza. Os Se-
nhores tinhaõ preparada outra em fren-
te das dos Principes, que foi occupa-
da pelos Grandes das duas Cortes,
fem fe lembrarem de D. Nuno, e de
feu irma6 , que pafleavad na tenda,
e ficáraô fem lugar. D. Nuno incapaz
de tomar eita defatençaô por cafual ,
dife ao Prior feu irmað , que fe re-
colheflem; mas que antes queria mof-
trar a Portuguezes, e Caftelhanos, que
os homens como elle naô fotfriad def-
cortezias, Diflimulado foi continuanda
E
= aa e
—
De PorTYGAL , Liv. XIX. tiş
% paffeio por junto da meza , e quan- Eta volg:
do efteve em proporçað , de hum en-
contro deo com ella em terra, Todos.
os aflitentes fe perturbárað , nenhum
{e moveo, e D. Nuno fem alterar o
pafleio , foi fahindo com feu irmaô, O
Rei, que ao grande eftrondo da qué-
dá , reparou na meza cahida ; vio O
focego com que D. Nuno fe retirava;
cheio de perturbaçaS perguntou, que
homem era aquelle. Informado de to-
dos, que era D. Nuno Alvares Perei-
ra; do motivo, que em acto tað ref-
peitavel o obrigára a tomar huma fa-
tisfaçaO tað eltranha, diffe: Elles vað
muito bem vingados ; e homem que
ba minha prefença tem oufadia (eme-
lhante em defaggravo da fua honra,
he digno de louvór, porque tem co-
raçad para muito. Os fueceflos pofte-
siores moftráraôd a efte Principe, que
elle profetifára fobre a eabega pros
pria. Naô teve mais confequencia efta
temeridade de D. Nuno , que algum
“dia feria lembrada do Rei de Caítella
com o arrependimento de nað lhe le-
var neta occafiaó a Ea efpetada
| VV. na
114 “Historia GERAL
Eta vulg. na ponta da lança , para impedir. as
muitas dos vaflallos. proprios, que el-
le cortou com a fua efpada.: i
Os prazeres defta fefta correfpon»
dêrað á grandeza precedente , que. os
preparára ;. e acabada a funçao, o Rei
de Caftella acompanhou a Rainha de
Portugal até Elvas , donde voltou pa-
ya conduzir a efpofa a Badajóz. Erað
foberbos os preparos, que na Cidade
fe tinhað feito para ete recebimento,
Nella quiz o Rei , que fofem dadas
com afliftencia dos Biípos Portugue-
zes, e Caftelhanos as bençãos nupciaes
á Rainha. Sahio o Rei do Paço a cavallo,
e a Rainha em huma haquenea magnifi-
camente aderaçada , que levavad de re-
deá ao feu lado efquerdo Leaô V. Rei
da Armenia, que tinha vindo a Hefpa-
nha da fua prifaô de Babylonia ; ao
efquerdo D. Joað Meftre de Aviz,
feguidos aos mefmos lados do Infante
de Navarra D. Carlos, e de hum Gran-
de de Caflella , todos a pé. Feita a
funçao, o Rei de Caítella diftribuio
E copiofas pelos Fidalgos
` Portuguezes, que fentindo ferem che-
bePorTUGAL, Liv XIX. 116
“fadas: as vefperas do (en Reino recahir Eta volge
na:dominaçao: Caftelhana:, já lhe chos
savaõ as exequias nas liberalidades pros
fufas mandadas -fazer pelo Rei D. Fera
Nando.: aos: Caltelhanos., que .deixavad
efgotadas..os efpiritos do Eltado. As
Suas: medidas fe podem córtar fó pelas
que: neka oerafiaõ.sesebeo D. Afon-
fo: Mdxica , que levou da-nófla para
a fua cafa zomi] marcos de baixella
«de prátk + yo marcos de-ouro , 30
«cavallos ,; e. 30 machos: prectofamente
ajaezados y: excellentes tapeflarias , ea
propritdade da Villa de Torres Ve-
gras, Cs tire a a a
Ceflárad . as Hberalidades de D.
Fernando poucos dias antes da fua
morte : teve fim o trabalhofo nego-
cio do cafamento de fua filha, e quan-
do hum fogo lento lhe hia confum-
mindo a vida , outro mais ardente
lhe atiçou voraz o do odio contra a
' defcomedido Joa Fernandes Andei-
To , objedio do efcandalo geral do Po
vo. Detérmina o Rei defcartar-fe def-
te phantaíma eftrangeiro , que fabmet=
tia ao medo tantos di heroicos;
o ii €
116 - Historia GERAL ʻi
Era vulg. e para a façatiha de lhe dar a: morté;
fó entende. com defenibaraço. a feu ir-
mað- o Meftre de Aviż. Elle “lhe ef-
creve, é dá as razões: ; que o. obri-
“gaó a pedirlhe, que-'bumhas mãos ta
' honradas como as fuas- , fejaô-o inf-
trumento do leu defaggravo j- lavan-
do-as no fangue- de:Andeiro. O Serre-
tario comfidente:, : que fez a Carta i,
antes deva fechar lhe reprefenta : Que
pondere as qualidades do efpirito (im
blime do : Meftre , que fe já-era ama-
do do Povo , por efta occafiað , em
que elle o mettia , ficaria adorado:
Que as relultas poderiaô fer funeítas,
nað havendo no Reino 'Succeflor va-
tað , e por iflo fe devia6 prevenir as
contingencias futuras. : Produziraô ef-
tas lembranças os feuseffeitos ; quei-
mou-fe a Carta, e tanto na coníide-
taçaô do Rei, como no juilo do vaf-
fallo pefou menos a publicidade da af-
fronta, que dar huma occafiad ao Mef-
tre de fe fazer efpectavel. Porém a
vingança a que o Rei o elcufou na vi-
da , elle faberá tomalla honrado depois
da fua. morte.
CA-
DE PORTUGAL, LIV: XIX. 117-
-CAPITULO I,
Caracter do Rel D. Fernando , fua more
Era vulg.
o te, e fepultura.'
B.n ao largo trata8 os #offos Chro-
niftas os-defeitos humanos, do Rei D.
Fernando , e todos fazem à fua me.
moria, a injuítiça de paflar em filencio.
as fuas, boas qualidades, com efpecia-
lidade a bella ordem, que elle eftabe-
leceo no interior do Reino, Digaôd que
elle foi hum prodigo., incerto nas;re-
foluções , com. variedade , ẹ ainda
fraqueza nos modos de fe conduzir
mas nað fe eíqueça , que elle repris
mio o luxo, a demafia do trem, que
já entaG começava a arruinar as cas
fas, e a Bado, Os jogos, que faô
outra pefte das Repúblicas ,. elle. os
abollio por meio de penas feveras, Os
wagamundos erað o feu. rancor; cafa
tigava a huns; fazia trabalhar; os ous
tros, © ọs que erað. verdadeiramente
invalidos, os fuftentava . de fua. fazen-
da para naĝ importunarem os Póvos
a com
718. Historia GERAL -
Era vulg. com os clamores da mendicidade. Ze-
Jofo pela tonférvaçaó do Eltado , que
fentia o exceflo das acquifições da
Órdens Regulares , publicou hum Edi-
to, que as taixafle , aùtes que a fua
liberdade em pofluir o defpojafle dos
miós pata fe confervar.. `
Com - a rrefma idéa regulou as
difpofições teftameritarias , para que
contribuiáa mais a prevençaô , e ma-
ximds dos ihitrigantes, que a vontade
dos nrofibundos ; forçados buns ; ou-
fro3 -perfuadidos a qué a vida, que fe
lhes acabava, ellés à eternizaflem na
tmêémoria das páredes de hum Moftei-
su ` que lhes ferviria de Padraô im-
mortál , ainda que ós patentes mais
chegados ficaflem redúzidos ão eftadó
trite da pobreza, que rifca na alma
os caráétetes da honra ; ou fe alguma
éóula lhes deixavad, em lugar de hu-
ma Ífueceflaô proveitofa, era6 muitos
pleitos impertinentes. Afim taixou å
juftiga limites á cubiça daquelles, que
devém eftimar a pobreza Evangelica
pelo feu théfouro ; daquelles a quem
é defbrezo do mundo coube em par-
Do atm ti-
DE PORTUGAL, LIV. XIX. JIIQ
tilha, € efcalhêrad a nudez por gal- Eta vulg.
la da (ua virtade. > = .
-. Porém. o Rei attento a efte ge-
nero de pobres. , que a vocaçaô , ou
` a eleiçaô defpojou dos teres , e ha-
veres do feculo, do amor ás frias vos
zes meu, ce teu.; como a fua equida-
ge nátural nos feus juifos parecia dar
huma nova força à authoridade Real:
Elle permittio , que os teftadores po-
deflem di(fpôr de huma tal porçaõ de
dinheiro a favor das Cafas Regulares,
por nað fer jito , que ellas fentifêm
hum prejuifo continuado no efqueci-
mento perpetãyo , nem os Chriftãos
folem privados do merecimento de
deixar os feus legados , que fað buns
meios approvados por Deos para a ex-
piaçaô das culpas. A eftas dilpofições
faudaveis fe feguirad outras refpegtivas
ao commercio, á Navegaçad, á Agri-
cultura , que fizeraô o Reino forel-
cente , e fornecêrað meios ao Rei
para exercitar as liberalidades monte
truofas, que virad em todas es otca-
fiões Portugal , Caftella., e Aragað.
De-
Erą vulg.
120 HisTORIA GERAL
Depois . de tantas acções brilhane.
tes nada mais faltava a D. Fernando:
para completar huma grande obra,
que reparar as Praças confideraveis da:
Monarquia. Elle o confeguio venturo-
famente. com muitas , em que def-
pendeo thefouros com largueza igual
ao goífto. Nas muralhas de Lisboa,
Evora , e Santarem fe confervad as
memorias do feu nome, e os veftis
gios magnificos da fua liberalidade.
Como a fua Capital elle a queria ,
nað fó forte como já fora , mas ref-
peitavel, e formofa como a fua gran»
deza pedia , a nada perdoou para O
confeguir. Em Evora, fe fe lhe nota,
que arrazou a fortificação dos Roma-
nos, que defendia a Cidade com o
reípeito , para levantar a fua : nos ul-
timos tempos , de nada ferviria o ref-
peito da dos Romanos, fe a fortale-
za da (ua nað fizefle Evora tantas ve-
zes re(peitavel aos noflos inimigos. Os
trabalhos de Santarem , e de Coimbra
naô merecérab menos de exadtidad ,
e de cuidado. Mas o que fobre tudo
affombra he, que obras tað grandes,
> tað
DE PORTUGAL, LIV. XIX. 21
tað uteis aos Póvos , tað gloriofas pa- Era vulg. -
ra o Reino, que pediaô efpaços tað
longos, como :eraô immenfas as def-
pezas, ellas foraô acabadas no termo
breve de dous .annos. E: |
~ -— Huma ordem tað bella, que D.
Fernando eftabelecia no feu Reino,
nað fó lhe adquirio a felicidade de fer
geralmente amado; mas nós a deve-
mos entender pela próva mais decifiva
do defejo, que. elle moftrou de repa-
yar no fim da vida os defeitos , que
nað ignorava lhe erað notados deíde
os principios do feu Governo. De-
monftraçaô alguma de fenfibilidade fo-
bre elles occultou efte Principe à via
dos feus vaflallos. A mais indifferente
das fuas acções a propunha á idéa tað
cheia de enormidade , que gradualmen-
te lhe foffe elevando o pefar a refpei-
to das outras , que neceflitavad na
realidade de compunçaS mais viva pa~
ra fazer eficaz o arrependimento. No
burel do habito de S. Francifco , que
nað deípio em todo o refto dos feus
dias, e decurfo da doença , tinha hu-
ma fé taô forte, e huma devoçaô tað |
ar-
122 HISTORIA GERAL |
Era vulg. ardente , que o regava com lágrimas
de ternura, que fazem frutos dignos
«de penitencia. Nada havia em que nað:
encontrafle delicaderas de violencia
hum Rei, que com a fua bondade
igualava a Religaô com as boas in-
tenções. E :
' Sobre muitas virtudes fublimes
remontou D. Fernando a da conftan-
cia heróica com que [upportou os ata-
ques da fua longa moleflia, a acerbi-
dade das dores , as viinhanças da
morte. Algum dia baftava vêr D. Fer-
nando entre os homens para fe conhe-
cer , que era Rei. Ágora as queixas
o reduzirad a eftado , que atéa figura
de homem deRruirad ; mudada a ef-
peciofidade em laftima ; imagem hu-
mana", que paflou com a figura do
mendo, que voa. Nefa fituaçad tril-
te o Rei D. Fernando nað fe eíqueceo.
de difpôr a benefício dos Officiaes da
fua Cafa , como bom Pai de Fami-
lias , que nas recompenfas dá outros
tantos teftemunhos de generofidade a
refpeito daquelles , que bem o fervi-
zaô. Elle arbitrou a cada hum fundos
pros
DE PORTUGAL; Dtv. XIX. 123:
proporcionados , que para: o refto”: da Era Wg. :
vida lhes produzifle o neceflário para
os. Commodos da: paffagem ,. fem O
efperarem nå demòra das- merçês fu-
toras:, que pela mað do: novo Am
poderia nað fer promptás. ` -= 7; ~
-o Engraveceo. o mal etando o Rei,
eim Lisboa. Elle cuidou em.fe:prepa-
rar para a morte , e em ordénar na.
vida as fuas exequias. Em quanto a
éftas , comb D.. Fernando fé mettia:
na ordem dos Reis, que no principio.
dos Goverhos o:feu Povo, .o feu Ef-
tado he o feu gofto, elle recufou to+.
das as honras , que previo fe pode-
riað fazer depois da mórte a huma
pefloa : do feu carater.. Antes. de fe
apartar aalma, D. Fernando fe partio
do mundo, amortalhando-fe em: vida
no habito do Serafico Patriarca, com
o qual efperou a mórte animofo. Hu-
milde até ao profundo. do abatimento,
rogou aos feus vaflallos o encomnien-
daflem a Deos mettido no número dos
{eùs inimigos ; porque nað lhes mere»
cia outro lugar hum Rei difbpador do
feu Eltado , fempre entregue ás vi
a
124 HISTORIA GERAL |
Era vulg. da complacencia propria ; mas qué
nito feria: mais heróico o feu. meres
cimento , fazendo : rogativas.:ao -Cea
pelo feu mefmo adverfario, : -> >
Defa natureza forað os. ultimos,
e felices fentimentos. de D. Fernando,
que os acompanhou. de huma innun-
daçaõ de lagrimas devotás , de actós de
Fé Íublimes, de refignaçaô catholica
no adto de receber ọs Sacramentos da
Igreja. Afim morreo .o Magnifico Rei
D. Fernando em. Lisboa aos 21 de
Outubro, com 38 annos de idade ; 6
nove dias, e de Reinado 16 , nove
mezes , etres dias. Seu. corpo foi de.
pofitado no Convento: de S. Francif-
co de Lisboa ,. donde o leváraS Á fe-
pultura , que elle mandou fazer em
vida no. Convento: do meímo Santo na
Villa de Santarem. com o Epitafio fim-
ples : Aqui jaz;o mui nobre. Rei D.
Fernando, filho do mui nobre Rei D.
Pedro , e da Infante D. Conftança. A
difpofiçaô natural. fe excedeo'nelle com
elegancia formofa em aípeio de Prin-
cipe, em mageftade evidente , em gras
DE PORTUGAL, Liv. XIX. 128
ca rege a que: o:diftinguiãd! entre Era vulg.
os. |
utros ihomens, 2.0 o sito
- © Cum a morteide D. Fetnando ef-
quecêrab:.em.. Postugal.: o5: (eus: def-
concertos: de homen, que antes fe'lhe
arġbiað.; as furs: prodigalidades: indif-
cretas.; queé-deixgvad os .thafourus . ef-
gotados 3. as’ fuas guerras (em conf-
deéraça6: , que- tantos damnos caufárað
aos Póvos 3 os Jeus: amores 'ipquietas
com D. Leonor; que pózeraú:no Thro-
nó a huma vafihila: defatendidas. muitas
Princezas : -e (óleimbravaó as. fuas vir-
tudes catholicas ;"a:Íãa piedade -para
com Deos:; o feu-reípeito à Igreja Sano
ta; a fua;indole: benigna 5.0 few ani-
mo affavel, e brando ,; que ainda: aos
mais humildes agafalhava ;: que -aos
defvalidos foccorriá.; que o facilitava
ao trato; que o inglinava. a moftrar-
fe ao Povo; que lhe defterrava as idéas
da vingança ; que nað lhe confentia
fer avarento; que o forçava a paflar de
liberal a prodigo; e que éra a origem
do amor univerfal , mais neceflario
aos Principes, que as 'maximas de fa~
zer-íe temer, |
Eí-
126 . Hisrôria: GEKAB `~
Bra vulg. -Efe Rei criou-de novo. os. dãas
randes empregos de Condeftavel „e
MMarichak-na vCoáfias s em que refor-
-mou:a Milicia, queainda e-conduzia
“pala fórma da. antiga. Eufitania: O fe-
gundo Condeftaveh foi- D. Nuno Alva-
-ses-Pereira 1,:- e “o: primeiro» Marichal
“Gonçallo: Vafques -dei Azevedo.: Para
nós darmos noticia: do exercicio deftes
icárgos ;'he: neceffario fabermos O mor
do. do antigo. Regulamento .,' que. por
“elles: foi reformado: 'Porvfucceflad dos
noflos Lulitanos primitivos chegou até
ao tempo do Rei:D; Fornando o ufo
de “chamarmos ao exercito Hofte ;. á
fua vã-guarda Dianteirá ; á fua. reta»
guarda Gaga ; aos dous lados Cofta»
neiras, Quando o Rei nað .eftava pre:
fente, o Alferes Mór commandava to»
da a Hofte ; mas quando afiftia o Rei,
o Alferes cobria, e governava fó a
Dianteira. A Hofte fe compunha da
gente de pé, e cavallo, que comba-
tia com differentes generos de armas
de ferro, pão, fundas, béítas , viro-
tões , e outras de arremeço, que en-
tað chamavaôd armatoíte. Os movi-
na men-
DE PORTUGAL „Liv. XIX. 127
thentos erað á proporçaô do modo dos Era vulg,
combatentes , e as divisões.dos. cop- |
pos fe chamavaõ mangas ,. que fe avari-
Gavað. conforme a neceflidade «a pe-
Mid e. y aonr a aae 4
- D.Fernando hidou os nomes, e
fórma militar com pouca differença do
que hoje fe pratica.. Fez da juriífdiçaõ
do Alferes Mór. tres empregos diftin-
tos , todos de grande. authoridade. A
elle fómente o encarregou'de levar, €
defender a Bandeira-Real; e parao go-
verno do corpo dó exercito criou. os
cargos de Condeftavel, e Marichal
com muitos fubalternos, que erað ou»
tros tantos Auditores , e -Ajudantes',
eftes que fervia6 de receber as or-
dens , os outros de fazer juítica; A
Dignidade de Condeftavel principiou
entre os antigos Romanos ,. donde paf-
fou o ufo ás outras Nações, e ultima-
mente a Portugal no anno paflado de
1382 , em que o Rei D. Fernando
criou o primeiro, que foi D. Alvaro
Pires de Caftro , Conde de Arrayolos,
irmaô da Rainha D. Ignez de Caftro.
A efte fe feguio q grande D, ET
s
to’
158 Hisrotia GERAL |
Era wulg: Alvares Pereira, e. dahi em diante fe
confervou (empre o emprego nos feus
Defcendentes até a Acclamaçaõ do Rei
-D. joa IV., a cuja corvaçaô aíhítio
com o eoque o Marquez de Ferreira
D. Francifco dé Mello. Depois ‘no ju-
ramento de feu filho o Infante D; Pe-
adro para Regente , levou a mefma ine
fignia o- Duque de Cadaval D. Nuno
Alvares Pereira, |
- Efta palavra , que: val tanto co-
mo dizer Conde-Eftavel , fignificava
que à Condeftavel éra bum homem ,
gue-afliftia fempre ao lado do Rei, No
exercito era a primeira peflõa depois
delle, fe eftava prefente , e na aufencia
faziatodas as fuasvezes. Elle podia na
guerra ufar de guiaô, de maças, de
heraldos , e de Eftoque embainhado
com a ponta para baixo, em difleren-
do Rei , que o levava nú com a
ponta para cima. As fuas regalias (ad
as mefmas dos Duques, o Coronel al-
to, o elmo direito, e dourado. Per-
tencia-lhe eleger Capitães » explorado-
res, guias, atalaias ; marcar terrgno
Ro exercita; refolver fem appellaçaõ os
Ca=
DE PORTUGAL „Liv. XIX. 129
cafos de juítiça; ter parte nas prezas, Eta vulg..
e unir nos Bandos públicos a fua voz
á do Rei. Nas Praças, em que efle
afhítia, tinha o Condeftavel as chaves,
e elle punha os preços aos generos ,
que os:vivandeiros traziaô ao exerci-.
to. O exercicio do cargo de Condef-
tavel nas coufas concernentes á guer-
ra, o daô hoje os Reis ao feu arbi-
trio, nomeando Generaes , e Chéfes
das Armadas a quem lhes parece,
fervindo elle de hum titulo honora-
rio. |
Do Marichal diz o Livro do Rei
D. Diniz, citado no Capitulo XLVIII..
Livro XXII. do VIH. Tomo da Mo-
narquia Lufitana : Que depois de Con-
deftavel he o maior, e mais honrado
officio da Hofte , porque a elle per-
tence fazer muitas coufas , que tan-
gem á governança da Hofte , fegundo
fe dirá em diante ; e bem afim dos
que pertencem á governança da jufti- .
“ça, alim como ao Condeftabre , .e
elle lhe póde dar, ou mandar a feu
Ouvidor, que lhe dê provimento com
direito. Efte emprego nos tempos em
TOM, V. lo que
130 Historia GERAL
Era vulg. que fallamos , era huma juítiça nos
exercitos , que os fazia prover de agua,
e lenha: que tinha a feu cargo exer-
citar os foldados nas evoluções milita-
res; Caftigar-lhes os crimes : Que ti-
nha as chaves das pórtas das Praças ;
rondava as fentinellas; fornecia man-
timentos aos campos ; examinava os
pefos , e medidas ; tinha infpecça6
juntamente com o Condeftavel em tos
dos os negocios civis, ecriminaes do
Exercito. O primeiro Marichal de Por-
tugal foi, como difle, Gonçalo Vaf-
ques de Azevedo , Senhor da Lourie
nhã, criado pelo Rei D. Fernando,
e que pelo meímo modo do Condef-
tavel, veio a parar em titulo fimples
de honra, que os Reis deraô a alguns
Fidalgos ; porque no exercicio lhes
fuccedêrad os Tenentes Generaes,
que fa6 as fegundas pefloas dos exer-
citos.
Além deftes empregos , e das in-
numeraveis mercês , e gratificações,
que o Rei D. Fernando fez em fua
vida, como eu deixo referido : Elle,
foi o primeiro, que augmentou o nús
| me-
ça
DE PORTUGAL, Liv. XIX. 13t
mero, e deo fórma aos Titulos , que Etá volg:
até entað erað raros , e tinhað pouca
authoridade no Reino do tempo dos
primeiros Reis até D. Diniz, e D. Pe-
dro ; efte que fez Conde de Barcel-
los a D. Joaô Affonfo de Menezes ;
aquelle que antes deo o meímo Con-
dado a D. Joaô Affonfo de Albuquer-
que. D. Fernando porém , que nað
podia ter a liberalidade ociofa , e.
aquelles dous exemplos o eftimulavaõ
a honrar os benemeritos: Elle nomeou
Conde de Neiva, e Faria a D. Gone
galo Telles de Menezes , irmaô da
Rainha : Conde de Cea, e de Sintra
a feu tio D. Henrique Manoel de Vi-
lhena , filho baflardo de feu Avô D.
Joað Manoel , Principe de Vilhena:
Conde de Barcellos , e Orenfe a D.
Affonfo Telles de Menezes , filho de |
-~ D. Joaô Affonfo Telles, e porque
morreo moço , deo o Condado de
Barcellos a D. Joaô Affonfo Telles de
Menezes , irmaô da Rainha D., Leo-
nor : Conde de Arrayolos , Alcaide
Mór de Lisboa, e Condeftavel a D.
Alyaro Pires de Caftro , irmaô da Rai-
Lii nha
132 Historia GERAL
Eravulg. nha D. Ignez de Caftro : Conde de
Ourem a Joaô Fernandes Andeiro ::
Conde de Viana a D. Joaô Aflonfa '
Telles de Menezes , filho do Conde
D. Joað Affonfo Telles , que os feus
metmos vaflallos matáraô na Villa de
Penela. | z
Finalmente, o Gentil D. Fernan-
do elegeo por devifa o Emblema my fe
teriofo de huma efpada , que do mefe
mo golpe atraveflava dous corações s.
e por alma a letra: Cur non Utruma
que: Se efte Symbolo nað fazia allu-
faô á ferida do amor , que com a mefe
ma eftocada penetrou o feu, e o cos
raçað de D. Leonor Telles para os
unir , quando os defpedaçava : Com
elle quereria fazer entender, que a
fua penetraçaô defcobria as idéas occul-
tas , que erað arcanos dos corações
humanos , ainda que remontados para
todo o exame , objectos de probabie
lidades á fua perfpicacia , que teria a
-honefta jadtancia de faber prevenir dee-
fignios nað manifeftos.
LI-
LIVRO XX.
Da Hifloria Moderna de Portugal,
CAPITULO IL
Movimentos de Portugal no principio do
dm dai o que fe feguio á morte
do Re: D. Fernando.
Á mais o Reino de Portugal, de-
J pois que teve Reis proprios, fen-
tio os effeitos triftes , que a Anarquia
“Coftuma caufar nos Efados. Diz o nof-
fo Faria e Soufa com a fua coftuma-
da eloquencia nefta occafiað : Que fi-
lhos dos feus Reis viað os Portugue-
zes , e nað lhes deixavað vêr Succel-
fores para o feu Reino as confusões,
que fe feguirað à morte do Rei D.
Fernando. Po máis de anno e meio
“durou efte Intgrregno ; mas em efpa-
ço tað curto corrêrað ` "aquellas confu-
sões tað aprefladas , que: alagárað o
Reino com huma ingundaçaó de e
å”
Era vulg.
134 HISTORIA GERAL
Era vulg. jamidades. Via-fe nelle a D. Joað ;
Mefre de Aviz , além de baflardo,
folemnemente profeflo ya fua Ordem,
bem longe dos penfamentos de reinar.
Viaó-fe defterrados em Caftella aos
Infantes D. Joaô, e D. Dinis , que fe
tinhaô defnaturalizado , e tomado as
armas contra a Patria. Via-fe a Rainha
D. Brites cafada com hum Rei eftras
nho , que levava Portugal a dominio
alheio com dor intoleravel dos Portus
guezes , que a contemplavaó filha dé
huma mãi aborrecida, e que nafcêra
de hum adultetio. Todas eflas medie-
tações populares animára6 o efpirita
intrigante da Rainha para fe encarres
gar do Governo fem oppofiçad , até
que os fucceflos correflem o véo aos
myllerios, que fe occultavaôd no fun-
do dos animos.
Quando o Rei D. Fernando fez
o cafamento de fua filha em Cafu
tella , a uniað das Coroas foi en-
taô olhada como hum evento mui-
to ao longe, e como huma entidade,
gue parecia quimera, Ágora que O
acontecimento já fe via de pa
Cl-
DE PORTUGAL, LIV. XX. 13g
elle fe temeo como huma realidade Er vulg.
exiltente , que perturbava os animos,
e chamaya pelas defgraças. Dous ef-
piritos , que erað os primeiros mo-
veis para agitaçaO das máquinas , que
nað poderiaô retardar os movimen-
tos , logo , e fem demora deraõ aflum-
pto para fer geral a inquietaçaô. O
primeiro dentro em cafa, que era o
da Rainha, Íentio menos a morte do
Rei, que a pofibilidade de perder o go-
verno do Reino, e cuidou em promover
toda a fórte de meios, que entendeo pro-
porcionados ao feu fim. O fegundo ef-
pirito , que era o Rei de Caftella,
nað teve paciencia para perder tempo
fem reprefentar a Portugal , que já
lhe pertencia o dominio por fua mu-
lher a Rainha D. Brites, como her-
deira. |
No mefmo mez da morte do Rei
D. Fernando mandou elle a Portugal
a Affonfo Lopes de Tejada , e ao Ar-
cediago de Cea pedir a fua acclama-
çaô , e a da Rainha , que com éffeito
fe fez em alguns lugares da fronteira;
mas a Corte , e os Póvos mais prin-
ci-
136 HISTORIA GERAL
Era vulg. cipaes o nað confentiraô ; duros em
2
fe fugeitar a huma dominaçaô , que
fobre a impedirem as Leis fundamen-
taes do Reino , ella era tað oppofta
aos fentimentos vulgares da Nacad,
Os noflos Chroniftas , efpecialmente
Fernaô Lopes, tratað ao largo o fuc-
cefo, que em Portugal tiveraõ eftas
pertenções do Rei de Caftella , que
informado do que nelle fe paflava, e
refoluto a nað perder tempo , nem a
obfervar os Artigos do Tratado ma-
trimonial , nað tendo ainda fucceflad
da Rainha, propôz no feu Confelho: :
Se devia entrar logo por Portugal?
Se o havia fazer pacifico, ou em tom
de guerra ? D. Pedro Fernandes de
Velafco com os Fidalgos maduros ,
circunípe&tos , e fabios difluadirad ao
Rei. tanto asarmas, como aentrada
no Reino, em quanto fenað encbiaô
às condições do contrato de fuccefiad.
Os lifongeiros, moços, e inexpertos
o perfuadiraô tudo ao contrario; mas
o Rei ; fazendo ufo da prudencia á
vita de ditames tað encontrados,
fufpendeo por entaô a perene
E Go
DE PORTUGAL, LIV. XX. 137
defejos para dar mais lugar: ás refle- Era vulg.
xões. | o
Efta irrefoluçaô interina fe ro-
deou , e occupou de outras imagina-
ções, que fomentavað os fuftos de fer
poffivel ao Rei de Caftella deixar de.
reinar em Portugal. Elle tinha prefen-
tes dous objeêtos, que faziad naõ pa-
recerem temerarios os feus juizos,
Hum era o Infante D, Joa6, que fa-
bendo a noticia da morte do Rei feu
irmaô , podendo a feu falvo recolher-
fe ao Reino. que anciofamente o de-
fejava; foi tal a fua indolencia , que
permaneceo immovel em Caítella pa-
Ta agora fer prefo , e pofto em fe-
guro , como tropeço o mais forte R
que fe entendeo impediria aos prefum-
ptivos Reis a fobida ao Throno. O
outro foi o irmaô do Rei D. Affonfo
de Noronha , Conde de Gijon , que
eltava cafado com D. Ifabel , filha baf-
tarda do defunto D. Fernando; pren-
dendo a ambos, e confifcando-lhes os
bens, que tinhað em Caftella , para
que os Portuguezes nað preferifem
eita filha do feu Rei, e feu marido ,
a
138 HISTORIA GERAL
Era wig. a elle, ea fua mulher. As mefmas
cautelas fe uláradS com o Infante D.
Diniz ; e forad eftas quatro vitimas
innocentes as primeiras, que o ciume
do Rei de Caftella facrificou á injuf-
tiça da fua ambiçað.
Como a prifaô dos dous Infantes,
do Conde de Gijon, e (ua mulher da-
vaó ao Rei huma efpecie de fegaran-
ca a reípeito das entreprezas , que
elle entendia poderiad intentar a feu
prejuifo : com as imaginações de here
deiro de feu Sogro D. Fernando, lhe
mandou fazer honras magnificas na
Igreja de Toledo, para que a pompa
defta ceremonia fizefle mais acceita-
vel a proclamaçaô de Rei de Portu-
gal , que fe lhe havia fəguir na mef»
ma Cidade. Para a fazer exercitando
o cargo de Alferes Mór , nomeou
elle a Vafco Martins de Mello , que
tinha ido de Portugal em ferviço da
Rainha; mas o generofo Fidalgo lhe
refpondeo : Que elle nað podia accei-
tar a mercê, que Sua Alteza lhe fa-
zia , porque era vaflallo , e Guarda
Mór do Rei de Portugal , que elle
ain-
DE PORTUGAL, LIV. XX. 139
ainda ignorava quem houvefle de fer; Era vulg.
e no cafo de fe declarar huma guerra
em Caftella, e Portugal, elle por ca-
fo algum queria tomar armas contra
a fua Patria. Difimulou o Rei a ma-
gnanimidade de Vafco Martins, e en-
tregou a bandeira Real a Joa6 Furta-
do de Mendoça , que fendo Caftelha-
no , naô duvidou acclamar Rei de
Portugal ao feu Monarca , que devia
ter propício para a fua fortuna.
| Entaô fuccedeo o acafo do pé de
vento , que raígou a bandeira , e fe-
parou as Armas de Portugal, que ef-
tavað por baixo das de Caftelia. O
fuçurro do Povo foi o primeiro inter-
prete defte prodigio , que períuadia a
defuniaô dos Reinos na rotura da ine
fignia. O efpirito da lifonja acodio
com o remedio , antes que o ruido
tomafie corpo , e lembrou ao Rei,
gue aquelle cafo fuccedia: Porque as
Armas de Portugal erað as chagas de
Jefu Chrifto que inconfideradamente
fe poferaô em lugar inferior ás de Caf-
tella : que fe deviaô collocar com igual-
dade para a reverencia evitar o deftro=
GO.
140 Historia GERAL
“sa vulg. co, Aflim fe fez para continuar a ac-
clamaçad , que fe concluio em To-
ledo , e na Povoa com cortezia do
vento , que refpeitou na bandeira ,
as Armas poítas no feu lugar devido,
mais decente.
Feitas eftas coufas em Caftella 5
e afluíftado Portugal da revolução,
que a feu reípeito contemplava naquel-
la Monarquia: O Meftre de Aviz D.
Joad fe fervio della para pretextar o
requerimento , que fez ao feu Rei;
pedindo o Governo do Reino, até
que elle tivefle filhos da Rainha D.
Brites. Efta demanda recufada ao Mel-
tre feria o pafo mais vantajofo ao
Rei de Caftella fe elle a concedéra.
Ella lhe abriria feguro o caminho pa-
ra a uniaô da noffa Coroa com a fua,
ninguem lha difputaria , e o Meftre
feria o fuftentaculo mais firme dos feus
interefles. Mas como o Dominante
Supremo dos Imperios tinha formado
fubre Portugal defignios , que os ho-
mens entaô nað chegavaô a penfar :
Elle fez conceber ao Rei de Cafítella
hum grande temor do Meftre de Aviz,
por
DE PorTUGAL, Liv. xx. 141
por fer dos Portuguezes tað amado , Eta vulg.
como elle aborrecido: que os Póvos
vendoo com authoridade, fe lhe in-
clinarião mais por gofto: que toman-
do-o á doçura dó Governo , que elle
faberia temperar , viriaô a fazer os ul-
timos esforços para o poluir Rei. Ef-
tas idéas funebres tanto o occupárad »
que nem podia ouvir fallar na perten-
cad do Meftre , julgando impoffivel
eítar com focego na regencia de hum
Principe Portuguez em Portugal, quan-
do inteiramente lho perturbavad os
Infantes fem acçaô em Caftella.
= O Mefre , efcandalifado della
repugnancia , Ífoube aproveitar-le da
definclinaçaO dos Portuguezes ao Rei
eftranho para fe declarar Chéfe de par-
tido a favor do focego da Naçaô. El-
le fe reveítio de todas as exteriorida-
des de doçura , de agrado, de docili-
dade, que fabem ganhas corações pa-
ra os ter favoreis nas conjunturas,
que fofle difpondo a Providencia. A
liberalidade das mãos fe fez infepara-
vel das affabilidades do roíto ;.e inal-
teravel nọ fyítema de naó dar pafilo,
~ que
142 Historia GERAL
Era vulg. que nað fofle movido pelas deliberas
ções do Confelho de Eftado , attrahio
os votos univeríaes da Corte a feu fa-
vor. Elle, que nað podia confiderar
indeflerente o negocio da fuccefað ,
bem contemplava , que nað lhe bafta-
vað fó os expedientes de fe fazer ama-
do, fem o concurfo da audacia , do
valor , da dexteridade para fe oppôr
a quaeíquer defignios , que intentafle
Caftella, Por outra parte alguns dos
Fidalgos, efpecialmente D. Nuno Al-
vares, e feu tio Ruy Pereira , enten-
diaô, que todos os projectos do Mef-
tre haviad ter principio na morte,
que elle devia dar ao efcandalofo Con-
de de Ourem , objeito do odio do
Povo, dos agrados da Rainha, da in-
juria á memoria do Rei D. Fernando.
Ella ficou ajuftada entre os tres; mas
o Meftre confiderou depois circun(tan-
cias, que entendeo o deviað fufpender
para melhor fe fegurar , e prevenir
para o futuro mais firmeza.
Quando o Meftre laborava nefta
irrefoluçað , o veneravel velho Alva-
ro Paes, que fora Chanceller Mór dos
| Reis
DE PORTUGAL, Liv. XX. 143 |
Reis D. Pedro, e D. Fernando, e que Era vulg.
nada quiz fiar de Cartas, e de reca-
dos : com o pretexto da authoridade
dos annos , e queixas da velhice, cha-
mou o Meftre de Aviz a fua cala, e.
tendo-o prefente lhe difle : Vós, Se-
phor, nað penetrareis os motivos fór-
tes, que me obrigárað a chamar-vos
a efta cafa pelo Conde de Barcellos,
que já eftá inítruido das minhas inten-
ões zelofas a voflo reípeito: Eu fer-
vi com o amor, fidelidade , e candu-
za, que fabeis ao Rei D. Pedro voflo
Pai, ea voo irmas D. Fernando :
Quem póde fentir mais que eu asin-
jurias , que á fua memoria faz efto
Joaô Fernandes Andeiro ? E de que
caracter he a que vós recebeítes del-
le , quando foítes prefo em Evora,
e efteve a voíla vida por hum fio?
Vós penfais.vos feguro em quanto €f-
te homem viver ? E em Portugal ha
outra mað , fenað a vofla, que o ti-
re do mundo para defaggravo da hon-
ra de voflo irmað , eftabilidade da Mo-
narquia, e confervaçao da volfa Pef-
foa ? Morra Joa6 Fernandes Andeiro
ás
144 Historia GERAL
Erávulg. 4s mãos do Mėftre de Aviz na face da
Rainha D. Leonor : que efte golpe
façanhofo defcobrirá o amor do Po-
vo para comvyoíco , quando feita efta
morte , os voflos criados , e os meus
publicarem pelas ruas de Lisboa, que
vós no Paço eftais em grande perigo,.
fomentado pelo meímo Andeiro , que
vos aborrece.
Efe difcurfo nað furprendeo o
Meflre; mas deixou-o hum pouco pen-
fativo para confultar o valor á pru-
dencia ; para fe determinar em hum,
negocio, que confundia o feu interel-
fe particular com o commum do Ef-
tado; para conhecer plenamente, que
o remedio de tantos males públicos
unicamente dependia da morte do
Conde Andeiro ; para difpôr na idéa
o modo, que fe fizefle plaufivel aos
moradores de Lisboa ; e depois de
chamar tudo á prefença prompta do
fcu efpirito , refpondeo refoluto a Al-
varo Paes: Eu tomo á minha conta a
morte do Conde de Ourem. O velho
ardente , banhado em lagrimas de
complacencia , fe abraçou com elle ,
roim-
DE PORTUGAL, LIV. XX. 146
rompendo nefte tranfporte zelofo: He Era vulg.
verdade, filho, e Senhor, o que vós
prometteis fazer ? He verdade ( lhe
tornou o Meftre ) que o fangue in-
fame de Andeiro falpicará as mef-
mas aras fagradas , que profana. En-
taô o Velho. Paes, foffocado em fo-
luços, concluio dizendo: Filho, ago-
ya vejo a differença, que tem os fi-
lhos dos Reis dos outros homens : E
lhe deo hum ofculo amorofo.
Afim fe hiaô difpondo infenf-
velmente as coulas a favor da fortu-
na do Meftre de Aviz ; mas a Rai-
nha era muito politica para deixar de
temer o grande credito, que elle hia
adquirindo , e demafiadamente pene-
trativa para nað prevenir os defignios,
que elle podia conceber , ou fofle
para confeguir a Regencia , ou para
alcançar a Coroa. Ella , combatida
de tantos movimentos eftranhos , for-
mou a idéa, de que nada lhe era tað
conveniente como ter fegura a pef-
foa do Meftre longe da Corte : mas
defejando' de o fazer com huma ap-
parencia de honra, que a ella nað ef-
Ti OM. V. K îl-
t46 HisrTọRrIA GERAL
Em vulg. tivefle mal, e do Meftre foffe bem
recebida ; o perfuadio , como a fi-
tuaçaô de tantos negocios a forgavad
a pedir-lhe fe quizefle encarregar do
governo da Provincia do Alem-Té-
jo , que neceflitava de huma pefloa
refpeitavel aos Póvos perturbados,
que os contivefle até vêr o femblan-
te , que tomavaõ as coulas, Ou fof-
fe que o Meflre entendeo, que nel-
ta eleiçaô a Rainha fazia delle huma
grande confiança, ou que por nað ef-
tar conftante na fé do Povo de Lis-
boa, duvidava declarar as fuas inten-
ções, e` cumprir a promefla, que fi-
géra a Alvaro Paes : Elle acceitou o
novo cargo , que lhe conferiaó , e
fe difpôz para a partida.
CA-
DE PORTUGAL, LIV. XX. 147
CAPÍTULO I
O Mefire de Aviz , nomeado Gover-
nador do Alem-Tejo , volta do cas
minho , mata ao Conde de Oure
Foağ Fernandes Andeiro , e be ac-
clamado Regente do Reino.
Era vulg,
Ni he explicavel a complacen-
cia, que moftraraô a Rainha, e An»
deiro da acceitaçad do Meftre, quê
fe difpunha a marchar pára o Alem-
Téjo a occupar o governo da Pro-
vincia. No dia da partida as confcien-
cias criminofas redobráraô o júbilo;
mas foi de pouca duraçaô a alegria,
O Mefre , que pernoutára em San»
to Antonio do Tojal , na6 pode ter
focego , atacado de muitas lembrari-
ças. Elle fe contemplava o refugio da
Corte, que deixava orfã ; a palavra |
empenhada a Alvaro Paes, que nað
cumprira ; o fegredo communicado a
varias pefloas , que poderiaô revella-
lo; e elle ficar perdido : Tudo ima-
gens funebres , que o fizorad deter-
K ii mi-
148 Historia GERAL
Era vulg: minar a retroceder , e fem perda de
tempo tirar a vida ao Conde. , Para
cobrir a refoluçaô , mandou a Fer-
nando Alvares de Almeida feu Védor
viefle na meíma noite å Cidade, e
avizafle a Rainha, como elle no dia
feguinte voltava á fua prefença por en-
tender neceflario pedir-lhe novos def-
cachos para fegurança das fronteiras
da Provincia , fem que nella tivefle
mais demora. Servio a induftria do
Meftre para nað fazer fufpeitofa à
vinda á Rainha, e ao Conde, que o
efberáraô fem maior fobrefalto , fa-
ceis, e credulos , como fem remor-
fos. | |
A fua chegada na manhã feguin-
te em companhia de alguns homens
armados nað deixou de perturbar a
Rainha , que lhe perguntou o moti-
vo de retroceder, e a caufa de con-
duzir gente com armas. A ambas as
perguntas refpondeo o Meftre com fi-
mulaçað ajuftada , que a Rainha teve
por indifferente ; mas ao Conde pa-
recéo aftectada , e para evitar o que
temia , mandou ás fuas creaturas
| | que
DE PORTUGAL, LIV. XX. 149
que com prefla foflem a cafa armar- Eta vulg:
fe, e voltaffem a acodir-lhe no peri-
go, que receava. Efe defacordo fa-
“cilitou a occafiaô ao Meftre , que os
mais Fidalgos foraô deixando para a
executar , por lhe perceberem a in-
tençaô. Entretanto os Condes de Bar-
cellos, e Ourem difputavaô entre fi,
qual havia dar naquelle dia de jantar
ao Meftre ; mas elle ordenando ao
de Barcellos fe retirafle com os mais,
e o eÍperafie em fua cafa: tomou da
mağ ao de Ourem, como quem que-
ria dizer-lhe algum fegredo , e quan-
do o teve na camara immediata ao
quarto da Rainha , a hum golpe de
efpada lhe abrio a cabeça. Acodio Ruy
ereira; atraveffou-o com hum efto-,
que , e cahio morto o monftro da
fortuna, o infeliz Joaô Fernandes An-
deiro , que pagou com o feu fangue
derramado por mãos Reaes os crimes,
com que profanára o fagrado da Ma-
geftade infolente, e temerario. |
O Meftre fe retirou immediata-
mente a huma das varandas do Paço:
mandou a alguns dos feus criados e
cef-
Eq valg.
|
ISO Historia GERAL
ceflem a fechar-lhe as portas : ordes
nou a outros marchaflem a cavallo ,
clamanda pelas ruas até a cala de Al-
varo Paes, que acodiflem a feu Amo,
que o queriaô matar em Palacio. As
mais pefloas, que nelle eftavaó , ato-
nitas com o fucceffo nað imaginado,
cuidiraô em falvar-fe fugindo , duvi-
dolas do que lhes poderia fobrevir.
A Rainha gritando a altas vozes, que
lhe tinha6 matado o criado mais bes
nemerito, e fiel, fem merecimento
para golpes taô crueis, e deshumanos,
mandou perguntar ao Meftre , fe tað
bem ella tinha de morrer. Elle fe jul-
tificou, ordenando fe lhe difleffe: Que
fora indifpenfavel a huma pefloa da
fua qualidade tomar as armas , nað
contra huma Rainha; mas a favor do
Povo para o livrar de hum Miniftro
odiofo , que lhe tyrannizava a Patria:
que fe o mefmo Povo tiveffe a auda-
cia de lhe faltar com o refpeito de-
vido á fua Mageftade , que elle faria
-huma gloria bem particular de mora
rer na fua defenfa.
Em
aeee
DE PORTUGAL, Liv. XX. IgI
Em quanto no Paço fe paflavaõ Era vulg.
etas coufas , os criados do Meftre
atroavað as ruas de Lisboa , pedindo
foccorro para feu Amo , que eftava
chegado aus termos de perder a vida,
pelas fugeftões da Rainha cruel às mãos
do tyranno Conde de Ourem. Afim
fe conduzirad até a cala do Velho Al-
varo Paes, que recobrando efpiritos
com a boa nova, que elperava, mon-
tou a cavallo , e fahio fazendo as
melmas exclamações, voando a auxi-
liar o Meftre no figurado aperto. Nað
he crivel a comoçaô , que elta nova
caufou no Povo de Lisboa , fem dif-
tinçaô de fexo, ou idade. Todo elle
correo de tropel ao lugar do imagi-
nado perigo do feu Principe, que di-
ziaô fora chamado do caminho do
Alem-Téjo com engano para o mae
tarem dentro das paredes do Paço.
Quando o viraô com as portas fecha-
das, o furor degenerou em defeípe-
raçao , fuppondo o Meftre já morto,
e fe lançou a dar-lhes fogo para elle
fobir, e abrazar quanto eftivefle den-
tro. Entaô (e lhe moftrou o Meftre
| a
162 Historia GERAL
Era vulg. a huma janella gritando, que elle ef-
tava fa6, e falvo ; que o morto era
o Conde de Ourem ; que fe portaf-
fem como bons Portuguezes a favor
da Patria à maneira do feu exemplo.
Os vivas, que feriað os ares, foi o
applaufo defa vigorofa acçaô , que
levou ao Meftre em triunfo entre a
Nobreza , e o Povo ao Palacio do
Conde de Barcellos , irmað da Rai-
nha , que o efperava cheio de alvo-
roço com outros muitos Fidalgos ,
todos officiofos. -
— Pofto em feguro o Meftre, con-
tinuavað os alaridos do Povo , que
fe faziaô mais horrorofos com os re-
piques plaufiveis dos finos , em que
.a Igreja Cathedral nað imitava as ou-
tras. Entendeo o Povo , que efta
omiffaô provinha do Bifpo fer Caf-
telhano , o D. Martinho Scifmatico ,
que já o fora de Sylves , e por efte
tempo tinha fido criado Cardeal em
Avinhaô pelo Anti-Papa , abertamen-
te faccionario da Rainha. Elle , que
ouvia o delconcerto do eftrondo , e
ignorava o motivo, até faber a caufa
‘ -del
DE PORTUGAL , LIV. XX. 153
delle , fez fechar as portas do Tem- Era vulg.
plo ; fobio-fe á torre , e com elle
Goncalo Vaíques , Prior de Guima-
sães , e hum Efcrivad de Sylves, que
era feu hofpede. O Povo, que o co-
nheceo no alto da torre , traníporta-
do de furor , porque nað mandava
repicar os finos em applaufo do Mef-
tre triunfante, fem mais averiguaçao
fobio a cima Sylveftre Efteves, Pro-
curador da Cidade, com mais dous,
e arrojáraô o Bifpo , o Prior, e o
Elcrivaô da torre abaixo: Quéda myf-
teriofa, que permitio Deos para mof-
trar caítigo ás mãos dos Portuguezes,
ainda que com indignidade, o unico
Prelado , que entre elles fuftentou in-
corrigivel o efcandalofo Scifma. À in-
fima plebe deípio o cadaver refpeita-
vel , que levou de raftos pela rua,
clamando : Juítiça, que manda fazer
o Papa nofio Senhor nefe Scifmati-
co Caftelhano por defobediente á San-
ta Madre Igreja de Roma. |
Quando ceflárab os movimentos
populares, o Meftre , acompanhado
dos Condes de Barcellos , e Arrayo-
| 08,
154 Historia GERAL
Era vulg. Jos, de muitos Grandes, e dos feus
criados armados, foi na mefma tarde
ao Paço juftificar-fe com a Rainha do
infulto comettido na fua prefença, El-
les a encontráraő na fua Camara co-
berta de luto, e a percebérad alvoro-
çar-ľe com efta nað penfada vitita. Sup-
prio com tudo a corage da Soberenia
as evidencias covardes da natureza ,
e com os reítos da Mageftade , que
ainda guardava no fundo do efpirito 4
ella os recebeo como Rainha. Ao
Meltre tratou com as diftinções de-
vidas à (ua qualidade ; aos Grandes
deo final para fe affentarem , como
elles tinhaô direito de o fazer. O Mef-
tre fe lançou aos feus pés , pedindo
perdaô , nað de matar ao Conde An-
deiro, mas deo fazer na fua prefen-
ca. Todos os Fidalgos animáraô com
inflancias os modos infinuantes , de
que o Meftre fe fervia para applacar
a Rainha, ea pôr em fituaçaô de nað
levar todo o tempo da vilita em fi-
lencio.
Em fim, efta Princeza, que flu-
&uava entre a vehemencia da dor, e
: € os
DE PORTUGAL, LIV.XX. 186
os defejos da vingança , forçada por E's vulg
tantos rogos, nað pode efcufar-fe de
dizer ao Meftre : Que o perdaô que
lhe pedia do attentado , que fora hum
effeito da fua liberdade , nað admit-
tia formalidades, que todas erað inu-
teis nos apertos da occafiaS , que fó
demandava applicações férias para naô
divertir os cuidados da fegurança do
Reino: Que o Rei de Caítella fe fa-
' gia preítes para entrar em Portugal
com mað armada, trazendo na frente
do exercito o Direito indifputavel,
que lhe déra o calamento com fua fi-
lha a Infante D. Brites. O Meftre pe-
netrando , que a induftria fó a elle o
feria, quiz fer fó o que refpondefle ,
e fem dar intervallo á confideraçaõ ,
que pareceffe temor , lhe voltou prom-
pto : Senhora, Vofla Alteza deve
avizar ao Rei de Caftella , que ful-
penda a fua marcha para Portugal,
fenað que fe poem no rifco de me en-
contrar em parte, aonde Eu lha faça
parar, e o detenha. A Rainha, com
geíto bem pouco fignificante , esfor-
çou efta critica : Vós Principe o ba-
| veis
`
186 Historia GERAL
Era vulg. veis deter , o haveis fazer parar?
Porque nað obraftes efas gentilezas
nas occafiões, que fe offerecêrað em
vida do Rei voflo irmað ? O Venera-
vel Alvaro Paes, que notou a indif-
criçad por aflumpto avancado na vi-
fita , diffe para o Meftre : Senhor,
faiamos daqui para fóra, que nós fo-
mos muito pelados, e por groffeiros
delagradamos á Rainha. Afim o fi-
zeraô todos , ea deixáraô lutando
com a faudade , ea cólera, com a
vehemencia da dor, e defejos da vin-
gança.
O Povo fem fugeiçao continuou
nos defatinos , que faô vulgares nos
Interregnos ; e traníportado do odio,
que concebêra contra a infeliz Rai-
nha , occupava em magotes as ruas,
e praças públicas , difpofto a pilhar
as cafas dos faccionarius da mefma
Rainha, efpecialmente as dos Judeos
poderofos , que ella amparava. Ap-
pareceo o Meltre a cavallo , como
Iris, a applacar eftas turbulencias +
fervindo-fe do nome da Rainha. O
Povo lhe proteftava, que eĝa autho-
ri-
casa eee —
DE PORTUGAL, Liv. XX. 157
yidade nað o abatia : que mandafle Era vulg.
Sua Alteza em feu nome fe queria fer
obedecido com todo o coraçaô , to-
da a alma , todas as forças do Povo
de Lisboa. O mefmo lhe fuccedeo
- com o Juiz do crime Antaô Vaíques,
ao qual ordenando , que em voz da
Rainha mandafle deitar hum bando
para pefloa alguma entrar armada no
Gueto dos Judeos ; elle lhe refpon-
deo da janella abaixo , aonde o efta-
va vendo paflar rodeado da Nobreza,
e Povo: Eu mando lancar ó pregaõ;
mas em nome de Vofla Alteza que
he fó a quem conhecemos por Se-
nhor, e Defenfor. Afim fe fez; eá
maneira do mar, que amaina de re-
pente, quando calla o vento , o Po-
vo fe pôz em focego profundo, quan-
do ouvio no bando a voz do Meftre,
a parecia reípeitar já como feu
ei.
Efta acclamaçaô ruidofa , o alvo-
roço de tantos corações , ainda nos
indifferentes , e definclinados , entrá-
rað a fazer tað geral a comoçaðő , que
todos os córpos de Lisboa pareciaô
ani-
158 Historia GERAL
Era vulg. animados de hum mefmo efpirito. Só
a Rainha fem acordo pela depreflad
da fua authoridade , cada clamor fa-
voravel ao Meftre era hum eítimulo,
que lhe picava os defejos da vingan-.
“ca. Os diderios públicos , e livres
das mulheres tanto lhe feriað a alma,
que dizia fenað dava por fatisfeita em
quanto nað enchefle faccos das fuas
linguas. Por outra parte a fua politi-
ca áflectava , que nada eftimaria Co-
mo a paz; eporque a fua pefloa era
a origem da difcordia, animou a in-
duftria com fe retirar para Álemquer,
como quem arrancava da face dos fe-
diciofos a caufa dos tumultos. Ainda
que ella foi acompanhada por feu ir-
" mað o Conde de Barcellos, e de ou-
tros Fidalgos de grande caracter, nað
fe teve por fegura em Alemquer das
tentativas audaciofas do Povo de Lis-
boa , e negociou com Gonçalo Vaf-
ques de Azevedo , Alcaide Mór de
Santarem, fer admittida naquella Vil
la. Afim foraô principiando os gran-
des trabalhos da prodigiofa mulher D.
Leonor Tellks de Menezes, que che-
gou
ee eita e T,
mma ama o o a rio rm ct
DE PORTUGAL, LIV. XX. Ts
gou a fer Rainha de Portugal ; ago- Era vulg.
ra hum objedo latimofo da fórte.
A retirada furtiva defta Senhora
para Alemquer nað podia deixar de
perturbar o efpirito do Mere , que
fe perfuadio traçava ella a fua ruina
por meio de alguns parciaes, que oc-
cultos em Lisboa attentariað contra
a fua vida. Para elle fe fegurar na fi-
delidade dos que o feguiað, e defar-
mar o partido , que lhe poderia fer
contrario , entendeo a fua magnani-
midade, que devia próvar as idéas ar-
dilofas. A primeira foi efpalhar a voz, .
de que o retiro da Rainha para Alem-
quer fe terminava a perdello ; e que
elle para lhe fugir á indignaçaS , fe
retirava para Inglaterra. Para melhor
cobrir a fimulaçaó , mandou embar-
car as fuas equipagens. Nefte lance
foi mortal a dor do Povo , que fem
concerto o hia bufcar ao feu Palacio,
e encontrando-o na rua feria o Ceo
com clamores, os feus ouvidos com
rogos , forçando-o a refponder-lhe. O
Meftre , que via o effeito defejado
dos leus intentos , aflegurou ao Po-
| vo,
160 Hisroria GERAL
Era vulg. vo, que focegafle; que elle lhe em-
| penhava a palavra de nað fahir do Rei-
no , e defendello contra quaeíquer
ufurpadores da fua liberdade até dar
a vida. |
Quando o Meftre afim fazia hum |
partido de corações officiofos , o da
Rainha nað reípirava mais que vin-
/ gana. Ella fe traníportou de gofto
com a noticia da retirada do Meftre
para Inglaterra ; e refoluta a abyí-
mallo., ganhou o Capitað do navio
para faltar com a tripulaçaô em al-
guma praia , e deixar o valo á def-
“criçaô das ondas; mandando ao mef-
mo tempo poítar com cautela gentes
da fua facçaôd pela cófta , para que
varando a não , mataffem o Meftre,
e os feus criados. Eftas difpofições da
Rainha naíciaô da ignorancia dos ex-
tremos paticados em Lisboa pelo Po-
vo , a que deo a ultima mað o no-
bre particular Alvaro Vaíques , que
bufcou o Meftre, e em nome da Na-
çaô fe refolveo a fallar-lhe afim: Que
injuítiça he elta , que quereis praticar
fobre nós ? Abandonar hum Reino,
que
DE PORTUGAL , Liv. XX. 161
que vos reconhece, e vos eftima por Eta vulg:
feu Protector? Que vos obriga a efta
temeridade ? O furor de huwa mus
lher? Que mais póde ella fazer, que
ameaçar ? E ameaças de huma mað
fragil ha de caufar temor ao voflo
peito viril, rodeado de hum Povo fiel,
que eípera em pouco tempo ver-vos
“reinar ? Eles faô os fentimentos de
todos- os bons Portuguezes. Os vol-
{os em nada devem. fer deflemelhan-
tes. '
O Mefre de Aviz acaba de fe
confirmar no affecto. de que he deve-
dor ao Povo; mas com o defejo de
entreter a, Rainha , que na repugnan-
cia ao perdað da morte de Andeiro ,
moftrava , que a dor , e a vingança
lhe faziað aborrecidos os Portugue-
zes, e o Meftre : Elle com huma
traça nova intenta oppôr á paixaô do
odio a contrária da ternura. Declara-
fe o Meftre amante da: Rainha, e
com todo o fegredo lhe manda fallar
a Alemguer em cafamento, que con-
feguido lhe fegura o Throno , e re-
pugnando-lhe juftiica as acções. A
TOM. V. ` L Rai-
162 HISTORIA GERAL
Era vulg. Rainha, que ou percebeo a idéa, ou
naô pode vencer o rancor para dar o
Jado ao matador do feu valido , ref-
pondeo á propofta com termos ultra-
jantes , que o capitulárad por huma
temeridade , por huma affronta da fua
foberania ; como fe o filho baftardo
do Rei D. Pedro , nað fofle marido
Competente para a mulher, que a qua-
lidade particular fez efpofa de Joað
Lourenço , e a inclinaçaô.do amor
frenetico elevou ao Throno de D. Fer-
nando. | o l
Conheceo o Povo de Lisboa,
que a Rainha. nað fe occupava de mais
penfamentos , que os de efcogitar os
meios para tirar a vida ao Mefife,
unica eíperança da Pátria afflicta ; e
fem mais demora todos os fieis Por-
tuguezes á força de rogos, lagrimas,
e períualões na Igreja de S. Domin»
gos confeguiraô , que elle confentifle
fer acclamado Regente , e Defenfor
do Reino, até que o Rei de Caftella
* tivefle filhos da Rainha D. Brites. Os
partidarios da Rainha, os que duvi-
dáraô , que o Meftre podefle confers
= ~x Vo Vãl=
DE PORTUGAL , Liv. XX. 163
var-fe na Regencia, abandonáraô Lis. Eta vulg.. -
boa. Naô fe perturbou o feu efpirito;
antes, como fe eftivefle vendo a glo-
ria dos fucceflos futuros , com toda
a tranguillidade formou o Confelho
das pefloas mais habeis da Corte, en-
tre ellas os feus fieis fervidores Joaô
das Regras , e o memoravel Alvaro
Paes, refufcitado à occupaçaôd do feu
antigo cargo. Entaô lhe dife efte He.
róe magnanimo : Senhor, fazei ami-
gos, dando o que naó he voo, pro-
mettendo o que na6 tendes : Quiz
dizer nito o Aulico experimentado ao
Meftre D. Joaô , que conffcafle os
bens dos traidores , e os défle aos
ficis , e que promettefle para o futuc
ro os da Coroa , que ainda nað pof-
fuia, e poderiaô fer feus. ;
Todos eites fucceffos , que ficað
referidos , e fuccedêrad immediatos å
morte do Rei D. Fernando , efpecial-
mente efta proclamàgað de D. Joaõ,
Meftre de Aviz , para Regente : elles
fizera6 no Reino huma comoçaó ge-
ral , que punha attentos os animos
para olharem~os interefles da Patria 3
py L ii e `
164 Historia GERAL
Eri wig. e entrando por Caftelia o feu eftroni
N
do., Fompeo os ferros da prifað , que
detinha ao Infante D. [oa , Succel-
for verdadeiro de Portugal , como fi-
“da R ainha D. Ignez de Caftro, que
fe Nfongeou dos feus éccos. Elle ef-
Weve ao Meftre feu irmas com as
palavras mais expreflivas do gofo,
ue the caufava a fua eleição para Re-
gente > de que lhe dava os parabens :
que ficava certo , de que elle nað
erdoartia à meio algum , que podefe
Y ontribuir para a confervaçaõ do Rei-
opta que muito lhe recommendava por
auro amor da Patria, quando elle fe
via góra de toda a efperança de a
poder gozar » € Oferecer o fangue
P feu obfequio. À Rainha D. Leo-
mor » Mt agora animo(a , com efta
a enfada refoluçað do Eftado, te-
eo a fua afitencia em Alemquer, e
gratou com o Alcaide Mór de Santa-
gem ? negociaçað de fer admittida
sefta Villa, que fe lhe fazia fufpeito-
fa pela repugnancia , que teve em re-
q onhece Rainha a lua filha D, Britese
-
DE PORTUGAL, Liv. XX. 16s
Ella confeéguio efte intento, como eu Era vulg
já. diffe , e em Santarem a deixaremos
traçando as novas máquinas para a fua
confervaçaôd , que forad as meímas da
fua ruina, para nos entretermos com
o. que fe paflava em Caítella , e como
Portugal fe difpunha para lhe rebater
os projectos , que ella pelas configu-
rações concebia faceis,
CAPITULO IH.
O Res D. Joad I. de Caftella entra em
Portugal ; o que lhe fuccede nefa
âuva/ad, I red com a
inba.
É movimentos, e tað confi-
deraveis em Portugal , ainda nað fa.
ziað alterar a indiffgrença do Rei D,
Joaô , que vacillava fe devia, ou nað
entrar pelas noflas terras com armas.
Achava-fe entad em Caftella o per-
fido Bifpo da Guarda D. Affonfo Cor-
Tea , que mais arraftado dos interef-
fes proprios , que advertido ao amor
da liberdade da Patria, aconfelhau ao
Rei
1
166 Historia GERAL
Eca vulg. Rei marchafle com elle a Capital do
feu Bifpado , que elle lhe aflegurava
na fua devoçaô; que fendo ella huma
das Praças mais importantes , as das
Provincias vinhas feguiriad o feu
exemplo; e que com elle hiria avan-
cando a fujeiçgað do refto do Reino ,
que reconhecia o direito da Rainha
fua efpofa. Foi abraçado efte pare-
cer; entrou o Rei com trinta criados
na Cidade da Guarda ; pouco depois
vierad para ella desfilando trópas; mas
o Alcaide Mór Gil Cabral eftava no
Caftello vendo eftas manobras immo-
vel, como fenað fof: hum Rei, e tað
poderofo , quem lhe entrára na Praça.
Vafco Martins de Mello , o fiel Portu-
guez que nað quiz acceitar em Toledo
a bandeira Real , tambem veio å Guar-
da no ferviço da Rainha , que ainda
nað era tempo de abandonar pelos in-
tereffes da Patria.
"Com grande defprazer defte fi-
lho chegou feu Pai Martim Affonfo
de Mello, e outros Fidalgos dos lu-
gares vifinhos beijar a mað aos Reis,
€ reçonhecellos como taes , ainda que
pro-
m mme amaia a a mae
DE PORTUGAL, LIV. XX. 167
proteftáraS o fazia , cheias que fof- Era vulg. :
fem as condições do cafamento. O
Rei, que fe eftimulava da pouca at-
tençaô do Alcaide Cabral , fervio-fe
de Martim Aflonfo para o perfuadir,
que debaixo do feguro da palavra Real
viefle á fua prefença. Nað duvidou fa-
zello o Alcaide Mór ; mas o Rei vio
diante de fi huma montanha : de conf-
tancia , em quem as promefias , €
ameaças fizeraô a melma impreflad,
que podiaô caufar em huma penha,
Valco Martins, que tanto eftranhára
a acça6 do Pai, como applaudira ef-
ta do Cabral , lhe mandou dizer aq
Caftello por feu filho Martim Af-
fonfo : Que entendia naô lhe poria
el Rei cerco ; mas que fe o fizefle,
élie, feus filhos , e criados no mef-
mo inítante o hiaô ajudar a defendere
fe até dar as vidas para fultentarem à
liberdade.
A ete meímo tempo fuccedeo
a mudanca da Rainha D. Leonor de
Alemquer para Santarem : e como
no (eu efpirito ardente crefciad os de-
fejos de vingança ao pafo , que a
| au-
168 HISTORIA GERAL
Ers vulg. authoridade do Regente fe avançava $
ella efcreveo aos Reis de Caftella ,
para que da Guarda vieflem a Santas
rem: que fó na prefença poderia de-
faftogar os eftimulos da fua dor: que
os exceflos do Meftre de Aviz, e do
Povo de Lisboa pedia hum prom-
pto remedio : que os aggravos feitos
á fua Real pefloa excediað todas as
medidas : que a fua depofiçaô da Re-
gencia até elles terem geraçaô , a de-
viað olhar como hum attentado para
caftigarem a foberba dos que afim
fe conduzfrað com huma Rainha, que
era fua Mäi. |
Já obravo D. Nuno Alvares Pe-
reira com outros filhos da fua fideli-
dade, e valor , havia vindo de San-
tarem offerecer-fe no ferviço do Mef-
tre Regente , ainda que com o def-
goífto de nað poder reduzir feu ir-
mað o Prior D. Pedro Alvares, que
fe retirou para o Crato , donde paf-
fou ao ferviço de Caítella. Foi indi-
zivel o alvoroço do Regente com a
chegada de D. Nuno , dous corações
taô fympaticamente unidos, nr re-
E | fuf-
DE PORTUGAL, Liv. XX. 169
fufeitárad as idades de David e Jo- Era vulg.
nathas , de Pilades e Oreftes , em
nada deffemelhantes D. Joad , e D.
Nuno. Quiz o Regente celebrar a
vinda do feu amigo com a tomada:
do Caftello de Lisboa, que tinha em
nome do Conde de Barcellos o feu
Tenente Martim Affonfo Valente y
que o Conde mandou reforçar de Alem-
guer por Affonfo Annes Nogueira feu
eicudeiro. Naôd pareceo juo a D,
Nuno tingir com o fangue da Patria
a primeira acçaô do novo Principe,
e confeguio por meio da-perfuafað
a entrega do Caftello, que foi imita-
da pelo de Almada , e eftes os ulti-
ei fucceflos do memoravel anno de
1383.
| Como no fim delle havia o Rei 1384
de Caftella chegado á Cidade da Guar-
da, e a Rainha D. Leonor mudado
a fua refidencia, e convidando-o pa-
ra vir a Santarem .:. entráraô a divi-
dir-fe os fentimentos na face do pe»
rigo , que fe temia, A nobreza do
Reino olhava o proje&o do Regente
como huma temeridade , que fe ar»
i TO=
170 Historia GERAL
Era vulg. rojava à perder a Patria na reúiftenéia
a hum Rei tað poderofo. Os Povos
nað foportavad a confideraçaô , de que
Portugal houvefle de fe fugeitar a Caf-
tella. Tanto vacillava o corpo dos No-
bres , que fabendo Iria Gonçalves
do Carvalhal , que feu filho D. Nu-
no Alveres Pereira tomára o partido
do Regente, veio do Alem-Téjo a
Lisboa a difluadillo defla inconfidera-
çaô; mas encontrou o Herde taó fir-
me , que nað íó lhe approvou a re-
foluçaô , fenað que ordenou. a Fer-
nað Pereira feguiffè em tudo os pal»
fos de feu irmaô D. Nuno,
Pelo contrario os Póvos , que
tocados do exemplo do de Lisboa,
alvoroçados com o rendimento do feu
Caftello , e entrega do de Almada ,
motejavað a Nobreza de covarde , de
pouco amante da Patria, e davad to-
das as demonítrações de acclamar o
Regente com voz unanime. A Rai-
nha, que o receava , e temeo , que
á imitaçaô de Lisboa , e Almada,
os Alcaides Móres das outras Pracas
fizefem o mefmo ; efcreveo a todos
re-
DE PORTUGAL, LIV. XX. IYI
reprefentando-lhes o empenho do Mef- Era vulg.
tre como huma loucura , e a fideli-
dade, que elles haviaõ jurado á Rai-
nha de Caftella fua filha. Ao meímo
tempo foraô apparecendo pelas Pro-
vincias as primeiras Cartas do Regen-
te com expreísões contrarias , que
como todas refpiravsó zelo , fé, ar-
dor de liberdade : Elle foi mais feliz
nos feus intentos, que a Rainha. As
Cidades de Evora, Béja, Porto, e a
maior parte dos Governadores das ou-
tras Praças do Reino nað reculárad
entrar no feu partido , fe menos fe-
guro , mais honrado. Aquelles que
afim o nað fizeraô , pagáraô a fua
rebelliad , e refiftencia a duro preço,
já na altura das vozes defcompoftas,
já na mað baixa , que nelles defcar-
regava o Povo, como fobre homens
faccionarios, e traidores. É
A entrada intempeftiva do Rei de
Caftella em Portugal com contraven-
çaS manifefta do ultimo Tratado, foi
O lance mais feliz para os interefles
do Regente pela declaraçaô da maior
parte das Praças ,-e dos ice 20
eu
172 Hisroria GERAL
Era vulg. feu partido. Elle, que fe confiderava:
já em eftado de poder refiftir, cuidou
em formar exercito , e mandou pedir
a Ricardo IĮ. Rei de Inglaterra armas,
e licença para a gente , que a feu
foldo o quizefle vir fervir a Portugal.
O Povo de Lisboa, que era a fonte
donde corriaô as idéas da liberdade :.
que confiderava a apertada fituaçao ,
em que os negocios fe achavaô: que
via os thefouros reaes efgatados pe-
las prodigalidades do Rei D. Fernan-
do: por hum aéto voluntario do feu
amor para com a Patria , os Pa
levavaõS as baixellas da fua Cafa , a
Damas as joias preciofas do feu ora
nato , e juntos os corações aa cabe-
dal, tudo pozéraô aos pés do Regen-
te para defpender nos gaftos da guer-
ra eminente. Semelhante oblaçaô fez
o Clero da prata das Igrejas , que .
deixou efpoliadas para fervirem o Ef-
tado.
Com dor entranhavel dos efpiri-
tos foi vito mover-fe.o Rei de Cal-
tella da Guarda para Santarem, cha-
mado pela Rainha D. Leonor , que
abra- `
DE PORTUGAL, LIV. XX, 173
abrazada no odio do Regente, arden- Eta vulge
do pela vingança da morte do Con-
de de Ourem , nada mais lhe fazia
efpecie no cotejo com eftes objectos.
Chegou elle a Coimbra; mas teve de
lhe refpeitar as paredes , e paflar de
largo 5; porque D. Gonçalo Telles ,
irmað da Rainha D. Leonor, que era
feu Alcaide Mór , fez-fe defentendi-
do á paflagem defles honrados hofpe-
des pelo feu deftricto. Juftamente en-
tendia os Reis, que efta Praça fe-
ria a primeira , que com tal Com-
mandante lhe abrifle as portas ; mas
D. Gonçalo , efquecendo as razões,
que tinha com as duas Rainhas, fó
lembrado de-que era Portuguez com.
honra, preferio os interefles públicos,
que defendia o Regente , aos movi-
mentos do fangue , que o unira aos
Reis em particular alliança. O meímo
lhes fuccedeo em Thomar com o Mef-
tre da Ordem de Chrifto D. Lopo Dias
de Soula , filho da infeliz D. Maria ,
irmã da Rainha, que fem os querer
ver, fe retirou para o Pombal, e pou-
co depois feguio a yoz do epen
- Era vulg.
174 Historia GERAL
A chegada dos Reis a Santarem,
| e o modo por que haviað fer recebi-
dos , deo nað pouco que penfar á
Rainha, ambiciofa pelo governo, ar-
dendo pela vingança. Nem fahir,
nem dar entrada no Caítello aos Reis
ella queria : Modo bem eftranho de
receber os filhos pela fua mefma pef-
foa convidados. Como fuftentar am-
bas as imaginações parecia huma qui-
mera , determinou a fua politica ef-
colher hum meio, que foi o de lhes
fallar na ponte levadiça da fortifica-
çaô. Se ella até entaô Ífuftentou o pro-
prio fentimente contra os rógos fub-
miflos dos mais condelcendentes ás
fuas refoluções ; agora naô pode re-
fftir as infinuações dos Reis , que a
leváraô comigo do Caítello para o
Convento de S. Domingos. Os agra-
dos , e civilidades parece que defter-
ravaô da Rainha todos os receios;
mas delles veio a originar-fe a fua rui-
na. Entaô defarou ella os diques do
furor para correr a innundaçaô de im-
properios , que a cólera lhe infpira-
va contra o Regente , de quem ng
åa
e rr Om |e a
DE PORTUGAL, LIV. XX. 176
Java, como de hum ufurpador indi- Era vulg.
gno, que depois de lhe arrancar dos
olhos o Valído, tinha a confiança de
lhe difputar a Regencia.
Efte mefmo tom diflonante fer-
vio ao Rei de Caftella para fe arro-
gar o governo , que elle perfuadio á
Rainha o habilitava para mais facil-
mente confeguir a vingança , que el-
la tanto promovia. Eis-aqui o primei-
ro paflo , de que fe fervio a Provi-
dencia para auxiliar a nofla liberda-
de ; para confundir as idéas de Caf-
tella ; para voltar a fetta contra a
mað, que a deípedia. Quem enten-
deria, que à primeira propofta a Rai-
nha havia convir no mefmo , que re-
ceava ? Mas ella entendeo , que ce-
dia de hum direito imaginario , è
por aéto livre, com todas as forma-
lidades , fez demiffað da Regencia pa-
ra lhe pezar , quando já nað podia
fer fructuolo o arrependimento , nem
revogar a refoluçaõ,
Vierað trópas de Caftella , que
fe chegavað a Santarem a tempo , que
o feu Rei eftava já reveftido ” to
os
176 Historia GERAL
Era volg. dos os titulos neceffarios para avm:
çar as fuas pretenções fobre Portu-
al. Fora muitos os Fidalgos, e as
sd » que entaô lhe deraô home-
nage ; mas de pouca duraçaô pelo
abandono , que depois fizerad defte
partido o maior número de humas,
e dos outros para tomarem o do Re-
gente. Santarem mefmo , que tinha
dentro em fi aos Reis de Caftella ,
mandou offerecer-lhe a fua entregas
que elle entaô naô teve por conve-
niente acceitar : muitos Fidalgos na
fua face , varios Miniftros, e todos
os efcudeiros do Governador. Gonça-
lo Vaígues de Azevedo vierad para
Lisboa fervir a Patria. O Principe
Regente , feníivel a eftes reconheci-
mentos, e attento ás novidades fuc-
cedidas em Santarem , applica todos
os cuidados á guerra , que difpoem
com acções pequenas para fervirem de
enfaio ás façanhofas, D. Nuno Alva-
res Pereira na téfta de algumas tró-
pas marchava fobre as Praças rebel-
des a forrajar os feus terrenos , tO-
mar as armas aos que encontrava, €
im-
DE PORTUGAL, LIV. XX. 177
impedir-lhes a provifaô dos mantimen- Era vulg
tos. E a l ' |
Já a harmonia dos Reis em Santa-
rem principiava a defconcertar-fe, nað
fendo toleravel ao genio grave, mo-
deto , e malancolico de D. Joad o
jovial , alegre , e defembaraçado da
Rainha fua Sogra. Accrefceo , què
eíte efpirito coftumado a mandar,
pedio , e nað alcançou do Rei certos
deípachos , que queria em Caítella
para varias pefloas da fua devoçaõ.
Tað grande foi o feu defprazer nef-
te repudio , que elle lhe infpirou o
arrependimento mais vivo de quanto
obrára a favor dos interefles de feu
genro; À vehemencia da paixaô a ar-
raíftou a períuadir aos Fidalgos , que
até entaô a acompanhárad, que fe fof-
fem para Lisboa offerecer ao Regen-
te, porque do ferviço do Rei de Caf-
tella , nada tinhaô, que efperar. Di-
zem, que aos Chefes das Praças man-
dára ordens femelhantes , com aflom-
bro de huma mudança tað repentina
em hum cafo tað eftranho. Ellas eraó
concebidas em termos tað precifos,
TOM. /V. M que
178 Historia GERAL
Ec vulg.: que continhaô as claufglas expreflas de
fuftentar-fe fieis a Regente, ainda que
ella fofle em pefloa perfuadir-lhes o
contrario.
uando a Rainha fe conduzia ,
o Rei de Caftella a inftava , para que
efcrevefle a feu irmað D. Gonçalo
Telles, Conde de Neiva , e a feu
tio Gonçallo Mendes de Vafconcellos ,;
que governavaô Coimbra, per(uadin-
do-os lhe entregaflem a Cidade. Os
Chéfes aftutos , que queriad dar 4
Patria hum teftemunho fiel do feu ze-
lo, refpondêraS á Rainha, que indo:
ella juntamente com os Reis a Coim-.
bra , nað faltariad ao cumprimento
do feu dever , fe os bravos cavallei-
ros , que eftavað na Praça , o nad
impediffem. Eftas boas efperanças fi-.
zerað ao Rei diffimulavel a trifteza,
que lhe caufava a facilidade com que
homens , e Praças , que lhe tinha6
feito homenage , voltavaõ cafaca , e
huns veftiað a farda do Regente, ou~
tras arvoravad nos muros os feus Ef-
tandartes. Elle partio com as Rainhas
na volta de Coimbra , que nec š
od a o dhe
/
e e e mm o rt a a a a
DE PORTUGAL; Liv. XX. 179
lhe feguraria a melhor parte das Pro- Erè valg.
vincias do Nórte; mas já tað deígo(.
tado da fogra , que temendo lhe fu-
gifle, naô fez efpecie de lhe pôr fen-
tinellas das fuas trópas , como quem
a fazia guardar á vifta.
Com violencia fumma houve de
foffrer efta affronta o: genio fenhoril
coftumado a nað ter fuperior. Em fim,
entrou a Corte, e as armas de Caf-
tella nos arrabaldes de Coimbra , que
eíperavaô encontrar em alvoroço com
as portas do feu Caítello patentes. Na-
da mais fe via nelle , que os muros
bordados de trópas , que faziaô fcin-
tilar as armas, fem fe deixarem vêr os
Commandantes. Foi notificado o Con-.
de para a entrega. Elle refpondeo ,
que nunca fizéra tençað de render
aquella Praça, fenað a quem fofle feu
Senhor legitimo. Inftáraô-no pela pa-
Javra, que fe continha na Carta rece-
bida em Santarem. Elle tornou, que
era aquella mefma , e que a tiveflem
pela decifiva a quantas propoítas lhe
quizeflem fazer da natureza das. duas
primeiras. Affedtou a Rainha huma cá-
M ii le-
180 Hisroria GERAL
Era vulg. Jera toda fogo contra' o irmaô , e tio;
e tratou aviftar-fe com elles , diífpofta-
primeiro a fegurança das pefloas , para
confeguir com a prefença o que fe
defprezava por avifos.
Em tom de Mageftade a Rainha,
fallou ao Governador de Coimbra,
nað ao Conde de Neiva feu irmað.
Mandou como Soberana , ordenou Se-
nhora entregafie Coimbra a feu dono,
que erað os Reis de Caítella feus fi-
lhos. Ameaçou viril a obítinaçaõ á
“obfervancia das fuas ordens , fe elle
differifle abrir as portas da Praça. Lem-
brou , que o exemplo de hum homem
da fua qualidade communicaria os mef-
mos fentimentos a todos os outros
para promoverem a rebeldia, gue nel-
les fe redobrava pelo caradter da in-
gratidaô , de que a reveítia. O Con-
de com o mefmo ar tranquillo com
que ouvio os arreítos fogo(os , refpon-
deo pacato. Que elle naő podia temer
ameaças , fazer cafo de refentimentos,
nem efperar mercês dos Reis de Caf-
tella, quando a fua honra lhe impedia
tudo : que a primeira obrigaçaô de
= m hum
DE PORTUGAL , Liv. xx. 18t
hum Chéfe era a fidelidade : que a fua' Erd vulg’:
havia acompanhar o eftado dos nego-
cios do Reino; e que ella nað fe cand
gafle mais em perfuadillo , porque co
mo a Rainha naô podia, como a ir-
mã naô queria obedecer-lhe.
Nunca reípoíta: tad brúfca foi
tað bem acceita como efta. da Rainha,
por fer a meíma que defejava. Ella
era bem conforme ás: ordens antes
mandadas aos Governadores; mas du-
ra de foffrer ão Rei de Caítella, que
fobre lhe derrotar a efperança de pbí-
fuir. Coimbra :, lhe moftrava a quali-
dade de homens , que guardavaô huma
fé , e-uniad inviolaveisá Pefloa ‘e
interefles do Principe Regente. Ainda
o Rei de Caítella nað penetrava a fun-
do o efpirito intrigante da` mulher ,
que tinha em feu poder. A Hiftoria
nos fornece agora hum dos acontecir
mentos. mais conformes: å fua politi
ca, e dos mais eftranhos ‘a: qualquer
outra. Como efta Senhora :, quando
entendia , que os cafos o 'neceflita-
vað , eftimava por brilhante a negra
perfidia ; em Coimbra ella aa
EE
182 Histokia GERAL |
Ers vulg. huma ; que em nada céde a outras ;
que jáhaviaô fido executadas, ou pe-
las føas ordens, oupelo feu -confes
lho , tudo effeitos da fua condiçaõ in-
contante. !
a: CAPITULO IV.
Intenta a Rainba D. Leonor dar nior-
“te ao Rei ide Caflella. Defcobre-
` feá conjuraçao. Succefos de-
„~ pois della.
À RAINHA D. Leonor , tað: facil
em amar, como em aborrecer , has
yia concebido tal odio ao Rei de Caf-
tela , gue ficava a perder. de vifta o
grande , de. que © Meftre de Aviz lhe
gra devedor. - Como os defpiques na
fua imaginaçãd haviaô tocar os mel-
mos extrerios:das fuas paixões, já ele
da nað tíaçava outro menor ,. que a
morte violenta do mefmo Rei.- O feu
efpirito de orgulho , que para eftes
lances tinha: expedientes promptos ,
waleo-le de D, Brites de Caftro , ir-
mā do Conde. de Arrayolos, que Fo
Fan a
mer a e o tt am
DE PorRTUGAL; Liv. xx. 183
Ja havia criado, e mandado para Caf- Eta vulg.:
tella com o emprego de Dama da Rai-
nha D. Brites. Galanteava efta Se-
nhora. como futuro: noivo a D. Affon=
fo Henriques , irmao do Conde de
Traftamara D. Pedro , que ambos
com outro feu irmaô baftardo tam:
bem chamado D. Affonfo, eftavaõ no.
campo de Coimbra. Era grande O cara-
Cter deítes Senhores , porque erað pri-
mos do Rei D. Joaô , filhos de feu
tio o Infante D. Fradique, Meftre de
Sant-lago. o
| Terna , .chorofa , afflidta encare-
ceo a Rainha a D. Brites o cativeiro
penoífo , em que a tinha o Rei de
Caftella “depois de lhe: dever tantos be-
neficios :: que :delejava efcapar-le das
fuas mãos ,:e recólher-fe á Cidade,
aonde comi o-favar .de feu irmaôd o
Conde de Neiva, e-dos mais. paren-
tes, que. lhe acodiriaô, poderia reens
trar nas acções da fua liberdade : que
o reconhecimento: da criaçaô , que
lhestinha dado , devia eftimulalla à
empenhar os tres de Traltamara, quê
{íó entendia capazes da acgað cdi
Ee e
184 Historia GERAL |
Era vulg. de refgatar huma Rainha prifioneira é
| que D. Affonfo Henriques , como.
amante , nada- lhe negaria do que el-
la lhe infinuafle : que efte facilmente
attrahiria feu irmað o Conde, brinda-
do com a mað della Rainha , fe o
Rei de Cafítella morrefle , e que ella
podia fazer Rei de Portugal : que co-
mo todo o empenho dos Portugue-
zes era impedir a unia das coroas ,
ceflaria o do Meftre de Aviz, e nin-
guem faltaria em acclamar o Conde:
de Traftamara , quando o vifem ma-
rido da Rainha D. Leonor.
A Dama maviofa fe deixou to-
car deítas expreísões feníiveis , e mui-
to mais o eípirito duro do de Traf-
tamara , que com a vifta fubtil em-
pregada no feintillar da Coroa, con-
fentio em tudo, quanto lhe foi pro-
poífto , com: a' vaidade de fer elle o
efcolhido para huma tal empreza. Paf-
fáraô-fe avifos frequentes ao Conde
de Neiva do que fe tratava: para. eftar
preítes a receber a Rainha , :e:os
Parricidas dentro da Cidade. A me-
lhor parte deítes fegredos fe confia-
vaõ
—— te SR E e toa
DE PorTUGAL, Liv. xx. 186
vað de hum Frade Francilcano, que Era vulg.
era o menfageiro dos recados , ami-
go intimo do Judeo David, que por.
muito favorecido do Rei , e abomi-
navel à Rainha, naó quiz, que pe-
recefle na revolta , e o avifou fe re-
colhefle na Cidade. O Judeo , fiel ao
feu bemfeitor, fez avifo ao Rei an-
tes da traiçaO fer executada. Supren-
deo-fe , fez-fe incrivel ao Monarca ,
que em cerebros femelhantes fe con-
cebeflem idéas para attentado tað hor- :
rorofo, e confultou fobre elle a Rai-
nha D. Brites. Fluétuou o coraçaô da
Rainha no meio da tempeftade , que
lhe movia o amor conjugal, e o mas
terno. Ella naô queria faltar às ter-
nuras. de hum , nem aos deveres do
outro. Conhecia as aftucias da Rai-
nha , que era Mäi ; temia o perigo
do Rei , que era efpofo ; e fem fal-
tar á reverencia de filha , perfuadio a
cautela com fé de efpofa.
Seguio o Rei o parecer da Rai-
nha , e fe pôz prompto a obtar.,
quando chegafle a occafiad de crêr;
que os avifos erað verdadeiros. Hum
| cria-
186 HISTORIA GERAL >
Ers vulg. criado do de T'raftamara percebeo ay
precauções. do Rei ; os movimentos
do Paço; a defconfiança dos femblan-
tes; o retiro dos Reis; o reforço
das guardas ; a agilidade do Conde
de Mayorga , a quem ellas fe tinhaôd
encarregado , e tudo participou a feu
Amo para fe pôr em feguro. A fu-
gida repentina dos tres irmãos de Traf-
tamara acabou de provar os intentos
perfidos. Elles foraô bater ás portas:
da Cidade; mas o de Neiva, que os
vio fem a Rainha fua irmã , temeo
alguma traiçaô urdida contra elle;
nað os admittio, e fe forað ao Por.
to, aonde embarcárað para Lisboa a
offerecer-fe no ferviço do Regente. Im-
mediatamente «mandou o Rei vir D.
Leonor á fua prefença, e da Rainha
fua filha para a inftruir no proceflo
do golpe mortal, que Íobre elle in-
tentava defcarregar a (ua impiedade:
Reprehendeo-lhe o abominavel atten-
tado prefente, e os mais da lua vida
paflada. Pôz-lhe á face o Judeo, que
a convenceo delle , e das ordens ,
«que. mandára de Santarem . aos pg
pé ong es
DE PORTUGAL, Liv. XX. 187
fes. das Praças para nað fe entrega- Era vulg..
rem a feu genro. ` e
= Porém aquelle efpirito criminos
fo 4: com o maior ardor , vivacidade,
e conftancia , como fe tivera a confa
Ciencia mais tranquilla tudo negou ;
defcompôz os afiftentes, ameaçou o
Rei com refoluçaô tal ,- que nað o
fizera mais animofa fe eftivefle rodea-
da de hum exercito numerofo , e
aguerrido, prompto a morrer em feu .
obfequio. . O Rei, nað admittindo as
fuas elcufas , nað fazendo cafo dos
feus fingimentos, lhe afirma, que a
deixa com vida em attençaô a fer hu-
ma Rainha, Mai de fua mulher, mas
que elle a recolherá em hum Mofteiro
em Caflella , aonde acabe os dias lis
vre das occafiões de inquietar os Prins
cipes , e revolver os Eftados. Neke
lance a cólera da Rainha rompeo to-
dos os modos honeftos , que fó po-
deriaô applacar hum Rei tað juftamen-
te indignado ; e,difcorrendo , que
tanta liberdade em dizer proviria da
confiança nos parentes, e officiofos 4
que cuidariad em libertalla : O Rei
o a
ed
A
188 HISTORIA GERAL.
Era vulg. à entrega a Diogo Lopes Elunhiga ;
para que com huma efcólta de gente
eícolhida a leve fegura a Tordefilhas ,
aonde em hum. convento paflou trifte,
e aflita ; viveo defprezada , e po-
bre ; acabou infeliz ; e abórrecida ,
quando o Meftre de Aviz já era Rei
de Portugal, a 27 de Abril de 1386.
Depois da partida da Rainha D.
Leonor para Caítella , a Villa de
Alemquer , ainda que governada por
Vafco Pires de Camões , Fidalgo
Gallego , fe fubmettéo ao Regente;
e o Rei, que nada tinha que efpe-
yar dos moradores de Coimbra, vol-
tou para Santarem. Em quanto em
Caftella fe ajuntavaô os apreítos for-
midaveis de mar , e terra para o fi-
tio de Lisboa, que eftava determina-
do , os Reis fe fizeraô fenhores de
algumas Praças vifinhas, fendo Alem-
quer a primeira , que faltou à fé
' pouco antes jurada ; de que nað fez
efcrupulo o Cavalheiro de Galliza. O
Regente nað fe defcuidava da (ua par-
te em fornecer todos os meios pre-
cifos para huma defenfa vigorofa ,'e
da tras
DE PORTUGAL, LIV. XxX. 189
trabalhou em fazer alliados , e em Era vulg.
contentar os homens. Para o primei-
yo fim mandou a Embaixada , que
eu difle a Ricardo de Inglaterra pelo
Meftre de Sant-Iago , que era D. Fer-
nando Aflonfo, filho de D. Joaô Af-
fonfo de Albuquerque o do Ataude,
e neto do memoravel D. Aftonfo San-
ches , filho amado do grande Rei D.
Diniz. |
Para o fegundo fim praticou o
Confelho do velho Alvaro Paes, que
fica referido , ufando de huma gran-.
de liberalidade , e igual clemencia.
Com efta perdoou todos os crimes
precedentes : com a outra repartio
todos os bens confifcados pelas pef-
foas benemeritas : fez mercê das Vil-
las , que tinhaô a voz de Caftella , ,
aos Fidalgos do feu partido , efpe-
cialmente aos da Cafa de feu irmaô
o Infante D. Joaô, que vieraô com
huma bella induftria , e ordem do
Amo bufcar o feu ferviço. Eftes Fi-
dalgos vendo o Infante prefo , igno-
rante de quanto fe paflava em Por-
tugal ; elles vigiados para nað fe ef-
l ça-
190 Historia GERAL
Eravolg. caparem; (empre temerofos, e arrifo
cados , refolvêrad retirar-fe a todo O
rifco 5 mas defejavaô fazello laber ao
Infante. Hum delles teve induftria de
confeflar-fe ao feu meímo Confeflor ,
e debaixo do figilo do Sacramento
communicar-lhe os movimentos do
Reino, as tentativas do Rei de Caf-
tella, as deígraças da Rainha, a he-
roicidade de feu irmaô o Meftre de
Aviz em fultentar a liberdade : que
elle, e feus companheiros , andando
em Caftella errantes , lhe pediaô li-
cença para o virem fervir a Portugal.
Pelo mefmo canal lhes ordenou o Ín-
fante , que fem perda de tempo fi-
zeflem jornada , e avifaflem os mui-
tos Portuguezes , que andavaô em
| Caftella, obraffem o mefmo : que fer-
vifem a feu irmao com o zelo, com
que a elle o tinhaô feito; e da fua
parte lhe difefem, que logo fe acla-
mafle Rei, por fer o meio unico de
derrotar as idéas de Caftella , e delle
ter liberdade.
Lisboa tinha occupadas todas at-
tenções em fe preparar para O cerco,
i . que
va reias AO iai re a a ae ne
DE PORTUGAL, LIV. XX. 191
que efperava. Reparárað-fe as fortifi- Era vulg..
cações ; elquipáraG-fe galés , e na. |
vios ; proveo-fe a Praça de manti-
mentos com abundancia. O Regente,
os Fidalgos, o fiel Arcebifpo de Bra-
ga D. Fr. Lourenço Vicente nað fe
poupavaô á fadiga, que podefle ani-
mar o Povo com o exemplo. No
meio deftas manobras fe recebêraô os
alegres avifos, de que as Praças mais
importantes do Alem-Tejo tinhaõ def-
picado a perfidia de Alemquer , e
Obidos , declarando-fe pelo Regen-
te. O Rei de Caftella, que nað o po-
dia impedir, e eftava impaciente pe-
la chegada das galés para principiar
o fitio de Lisboa , ordenou ao Mef-
tre de Alcantara, € ao Conde de
Niebla, que com as trópas da fron-
teira talaflem os terrenos daquela
Provincia, que devaftáraô até Porta-
jegre. Eta irrupçao obrigou o Re-
gente a feparar de fi o bravo D. Nu-
no Alvares Pereira, e conferir-lhe
o Governo do Alem-Téjo, para on-
de partio com hum corpo de gente
efcolhida a dar principio ao a
€-
192 Historia GERAL
Era vulg. Jecimento da fua reputaçaó, á gloria
do Principe, á fegurança da Patria.
Elegeo D. Nuno a Cidade de
Evora para Quartel General , e or-
denou que para ella desfilafle a gente
da Provincia , que unio aos córpos
com que marchára de Lisboa , pou-
cos , e mal armados. O deítemido
Chéfe ponderou a neceffidade , que
tinha de dar á fua alma taes dilpofi-
ções, que communicafle efpiritos ar-
dentes á materia languida , em tað /
pequena quantidade , que toda delle
dependia. Enta6 esforçou os actos de
Religiaô para moftrar , que punha a
fua confiança no Deos dos exercitos.
Deixou vêr a equidade natural acom-
panhada de hum agrado taô indiffe-
rente , que nað houvefle qualidade
de pefloas a quem nað attrahife. Def-
cobrio o valor taô impavido , que
fe gloriava na imaginaçad de fe vêr
nos perigos mais enormes , para fa-
hir delles com honra fublime. Falla-
va dos inimigos com reípeito para
perfuadir mais brilhante a vantagem
de os vencer. Defte modo , fenhor
de
item mo ma
DE PORTUGAL, Liv. XX. 193
de fi, e dos corações de todos , far Eta vulg
bendo que o exercito dos Caítelha-
nos , em que eftava feu irmaô o
Prior do Crato , marchava a fitiar
Fronteira para fazer efta divería6 ao
cerco de Lisboa : chamou os poucos
filhos da (ua difciplina , e com fem-
blante. que fe derretia em ternura,
quando derramava terror, afim lhes
falla : | | 7
Todos vós, fenað fofleis Portu-
guezes , que eftais promptos a dar
a vida pela liberdade , terieis por hum
empenho temerario o que eu vou a
períuadir-vos. Ahi fobre Fronteira ef-
tað os maiores homens de Caftella
com forças muitas vezes fuperiores ás
noflas., contando os feus triunfos fo- j
bre a nofla fraqueza. Que deprefa
os obrigaremos nós a mudar de idea,
fe lhes moftrar-mos o contrario? Por-
que elles naô nos efperaôd , vamos a
elles ; que efta. primeira viêtoria nos
abrirá o paflo para outras muitas. Ao
ouvir propoíta femelhante nað houve
coraçaô , que naô palpitafle ; pallida
a cor, que indicava o medo no em-
` TOM, V. N pe-
Era vulg.
194 Historia GERAL
penho de huma temeridade ; mas aco-
«indo os efpiritos do valor a reani-
mar os alentos , que diflipára o fuf-
to, naó fe achou hum fó , que du-
- vidafle expôr-fe ao perigo , que em
qualquer das fórtes era honrofo á Pa-
tria.
Ao fom de caixas , e trombetas
marchou o pequeno efquadrað de Ef-
tremoz para Fronteira, quatro leguas
diflante , que já os Caftelhanos ata-
cavaô. Os feus efcritores, defculpan-
do a Naça6 com É efpecio-
fos, quando confeflad a fua derrota,
períuadem a nofla marcha feita á fur-
dina; que nað lhes demos tempo de
fe poftar com vantagem , nem ainda
de fe formárem em batalha, Se efta
ficçaô fenað defmentira com a verdas
de , que eu vou a referir ; que ap-
parencia lhe podem dar os Caftelha-
nos , fe elles ellavad já dentro de
Portugal; fe erað muitas vezes fupe-
riores aos Portuguezes; fe a fua or-
dem de batalha tinha vantagens in-
-comparaveis á nofla? Primeiramente, .
duas leguas antes de chegar a Frons
`: -> tei-
DE PORTUGAL, LIV. XX. 196
teira , efperava no caminho hum cria- Efa vulg,
do do Prior do Crato, que fabendo
da marcha de feu irmað D. Nuno,
lhe mandava eftranhar a temeridade
de fe perder ; que mudafle de refo.
khuçaô , e de ferviço teria do Rei de
Caítella as mercês , que nað feria6
firmes feitas pelo Meftre de Aviz,
evidentemente impoflibilitado de fe
manter em Portugal. D. Nuno , de~
pois de ordenar ao criado refpondel-
fe a feu irmaô , que fe o partido do
Meftre era o menos forte na apparen-
cia , que na realidade era o mais
juto ; que ainda no cafo do Rei de
Caftella lograr os feus intentos , na-
da poderia aballar a fidelidade , que
elle havia jurado ao Regente, que o
Prior olhafle por fi, e nað fe emba-
zaçafle com elle : ultimamente lhe
dife, que correfle até matar o caval-
lo para o avifar , como D. Nuno
marchava a enveftir os Caftelhanos a
todo o rifco no feu meímo campo,
Com efta refpoíta tað precifa, os
Chéfes inimigos eftimulados refolvê-
raô poupar caminho a D. Nuno , è
| N ii mar-
196 HISTORIA GERAL
Era vulg. marcháraô formados ao feu encontros
Aviftárad-fe os dous campos na pla-
nicie , que chamaô os Atoleiros, de
que a batalha tomou o nome. Cada
partido fe occupou em tomar as fuas
vantagens. O noflo, como menos nu-
merofo , que confentia poucas divi-
sões , formou hum efquadraő fecha-
do com os intrepidos na vanguarda ;
no centro o Eltandarte com o Simu-
Jacro adoravel do Crucificado ; na
retaguarda as milicias bifonhas. Ao
contrario os Caftelhanos, que cobri-
raô o- corpo de batalha de duas gran-
des allas , nað fó com o defignio de
fazerem parecer o exercito maior 5
mas deítinadas a abraçar o nofio,
que ficando no feu centro , feria a
hum tempo atacado por todos os la-
dos. Eraô os inimigos mais fortes que
nós, e bem fe conheciad menos fir-
mes , quando , Íuperiores em núme-
ro , fe fufpendéraô em enveftir-nos,
temero(os de entrar em huma acçaô ,
que fofle decifiva.
O bravo D. Nuno, vendo nos
femblantes dos Portuguezes , que E
| a
de
DE PORTUGAL, LIV. XX. 197
da mais tinha que ajuntar a fua intre- Era vulg,
pidez, depois de adorar com o -rofto
em terra no Eftandarte a Imagem de
Jefu Chrifto; de ordenar fe defmon-
-téflem os 300 Cavalleiros, que tinha,
para efperarem a pé firme nas pon-
tas das lanças o repelad de mais de
dous mil cavallos dos inimigos ; lee-
vantou o grito de guerra Portugal,
S.Jorge, que era o final de avançar.
Ao écco dos clamores fe feguíraô os
golpes das armas. Os Caftelhanos nos
“enveftíraô com vigor extremo; eften-
dendo as allas para nos colherem pe-
la retaguarda; mas a fua cavallaria ef-
petada nas lanças , deípedia os ho-
mens , que degolava o furor, e del-
compondo os que a feguiað , foi fa-
cil introduzir a confufad em todo 'o
exercito. Como o corpo da batalha
recuava , fizeraô o mefmo as allas; |
e obfervando D. Nuno -a boa occa-
fia de carregar o inimigo, mandou
montar os- 300 Cavalleiros, que com
as lanças enriftadas atropelavad quan-
to. fe lhes punha diante. Enfraqueceo
a corage Caftelhana , já fem acordo
| par
198 . Historia GERAL
Era vulg. para a defenfa , nem para a fugida,
O feu exercito em pouco mais de
meia hora de combate foi inteira-
mente derrotado fem perda de hum
fó Portuguez , e com morte de 117
cavalleiros contrarios , de muita da
fua infantaria, do Metftre, e Clavei-
ro de Alcantara, e feridos o Conde
de Niebla , o Prior do Crato, e ou-
tros Fidalgos de grande qualidade.
As confequencias defta victoria
principiáraô a fazer-fe confideraveis
E terror , que ella derramou nas
raças, que feguiad a voz de Caítel,
la. Já parecia aos feus Commandan-
tes, que elles tinhaô pouca apparene
cia de fe firmar na fua protecçad, e
nas fuas trópas. D. Nuno Alvares,
que aflim o penfava, no dia feguinte
á vitoria, para fe aproveitar .da conf»
ternaça6 dos inimigos, fahio de Fron-
teira na téfla de hum groffo deftaca-
mento, foi infultar as fuas reliquias,
que fe haviaô refugiado na Villa de
Monforte , donde fenað refolvêrad a
fahir , e fubmetteo á obediencia da
Regente os Lugares daquelles contor-
| nOSe
DE PORTUGAL , LIV. XX. rog
nos. As Villas mais diftantes com as Era vulg:
guarnições reforçadas pelo Rei de Cal-
tella, e entretidas por elle com a ef-
perança da conguifta de Lisboa , pa-
ya que fe difpunha , aínda fe confer-
'várað na fua obediencia ; mas antes
que entremos na narraçaô do itio da-
quella Capital : Sitio , para cuja: de-
fenfa concorreo o Ceo movido pela
juítiça da. nofla caufa ; entretenhamo-
nos hum pouco nos fucceflos meno-
res , e gloriolos , que lhe precedês
rað. | |
CAPITULO V.
Varios fucceljos militares depois da ba-
talha.dos Atoleiros , e os mais até ao
fítio da Corte de Lisboa.
Dou Nuno Alvares Pereira, Fron-
teiro Entre o Téjo , e Guadiana,
com as fuas façanhas principiou a alen-
tar os fequazes da liberdade. Como
os inimigos nað fe atrevêraS. a fahit
de Monforte , elle voltou para Fron-
teira ; e porque os dias erað- jr da
É Go
200 Historia GERAL .
Era vulg. Semana Santa, quiz moftrar ao mune
do em aĝos de Religiad , que fe o
feu valor vencia os homens , o con-
forto lhe vinha do alto. Na fexta fei-
ya Maior fahio elle de Fronteira a pé
defcalço vifitar a Igreja de Nofia Se-
nhora do Aflumar , huma legua dif-
tante , que achou cheia das indecen-
cias immundas , que nella deixáraô
os Caftelhanos, quando a fizeraô ca-
valharice. Comoveo-le o coragað pio
do noflo Heróe, e banhado em lagri-
mas de ternura o roto, que na came
panha fcintilava raios de ardor ; elle
por fuas mãos varreo o Templo, com
tanta acceitaçao do feu Habitador Di»
vino, que nelle mefmo lhe remune-
rou o obfeguio com o avifo dos de
Arronches , que pediad fofle tomar
entrega daquella Praça pelo Principe
Regente. Ê
No Sabado de Alleluia partio D..
Nuno a tomar poffe de Arronches ,
que o recebeo entre vivas como a
triunfante. O Alcaide Mór, que era
“hum bravo Caftelhino chamado D.
Aflonfa Sanches , quiz fazer-fe forte
— NO
“Leonor culpou ao Meftre da fua pris
DE PORTUGAL, LIV. XX. 201
no Caftello ; mas correndo a gente de Era vulg.
D. Nuno com a do Povo , e dando
fogo às portas , entráraô efpada em
mað , e fizeraô prifioneiro o Alcaide
com toda a guarniçao. Ainda com as
armas quentes, D. Nuno recebe ou-
tro menfageiro de Alegrete, que lhe
rendia obediencia ; e deixando Arron-
ches encarregada. à feu tio Mártim
Gonçalves do Carvalhal, fe recolhéo
a Evora para provêr nos mais nego-
cios da Provincia. Animados com os
bons fucceflos do Chéfe, o Commane `
dante de Villa Viçofa Alvaro Gon-
galves Coitado, e o do Landroal Pe-
dro Rodrigues , entrárad juntos em
Caftelia., e talando as campanhas de
Alconchel , e Villa Nova del Tref-
no , fe recolhêraô com huma preza
importante de todo o genero de ga-
dos. . |
Efes meímos Cabos, zelofos no
ferviço do feu Principe, fouberad por
avifos particulares , que Vafco Por-
galho, Commendador Mór de Aviz,
aquelle homem , que a Rainha D.
(ad
202 Historia GERAL r
Era vulg. (aô em Evora , era infiel ao melmo
Meftre Regente , que entað impedio
aos feus criados tirar-lhe a vida. Co-
mo elle agora reíidia em Villa Vigo-
fa, os dous Commandantes acima di--
tos o prendêrad depois de huma re-
fitencia dura. Remettido á Corte ,
tanto foube infinuar-fe no agrado do:
Principe, que fe tivérad os avifos por
falfos , e elle foi reftituido a Villa
Viçofa com as maiores demonftrações
de bonra. De tudo fe efqueceo efte:
Fidalgo para traçar o feu deípique
contra os dous cabos , que nað po-
dia effeituar fem huma traiçaô mani-
fefta , entregando a Praça aos Cafte-
lhanos. Elle o convencionou em San-
tarem com o feu Rei, em quan-
to com diflimulaçaó amigavel tra-
tava a Alvaro Gonçalves , que hum.
dia o tomou por compadre, e no ou-
tro foi por elle prezo com fua mu-
lher, e filhos. Na mefma noite deo:
entrada na Praça a muitos Caftelha=
nos , que marcháraôd de Olivença cont
os Commendadores Móres de Alcan-
tara, e Calatrava , defejofos de ex-
piar
DE PORTUGAL , Liv. XX, 203
piar com efta façanha a fua covardia Ers vulg
na batalha dos Atoleiros, e no dia fe-
guinte, com admiraçaô do Povo, foi
o Rei de Caftella acclamado por Vaf-
“co Porcalho.
O Alcaide Mór do Landroal fen-
tio em extremo a prifa6 do feu cama-
rada Alvaro Gonçalves , de que deo
parte ao Regente com a noticia da
traiçaô de Porcalho, e ao Chéfe da
Provincia. O Regente conheceo o feu
engano; D. Nuno diívelou-fe em im-
pedir a ruina do animofo Alvaro , e
mandou hum reforço a Pedro Rodri-
gues, para, como bom amigo, fahir
do Landroal, quando os Caftelhanos
conduzifem o prefo a Olivença , ʻe
lho arrancafle das mãos, Elle fe en-
faiou para efta empreza com outra nað
menos gloriofa , que foi a derrota
dos dous Commendadores Caftelha-
nos, com trezentas lanças, que vol-
tavaô ricos de defpojos feitos nos cam-
pos de Evora. Pedro Rodrigues os
efperou com oitenta Cavalleiros , quan-
do elles fe recolhiaô ; e dando na
vanguarda , que: conduzia a preza,
204 HISTORIA GERAL
Era wulg. matou go , e pôz o refto em fugida.
Como a viétoria ficava incompleta
fem o deftroço da cavallaria , que
cobriað os Commendadores ; nað re-
parando na defigualdade do número,
o Alcaide Mór os enveítio com gol-
pes taô pezados , que perdia6 vidas ,
€ terreno , até abertamente fe porem
em fugida para Villa Viçofa.
Lourenço Martins do Tojal, e
Gonçalo Lourenço de Sampayo , dous
bravos cavalleiros noflos , fe conjurá-
Tað para a toda a brida períeguirem
os Commendadores, e cada hum ma-
tar o (eu. Já em grande diftancia do
nofio campo, elles rompéraô pelo ef-
quadraõ inimigo, e cada qual do feu
bote de lança deitárad os Commen-
dadores em terra ; mas atacados. por
toda a fua trópa, os esforçados ca-
valleiros abertos em feridas perderiad
a vida, fenað fobreviera Pedro Rodri-
gues , que fó com fe moftrar caulou
tal terror nos Caftelhanos , que fem
acordo voltáraS caras. Efte fuccefio
animou os noflos cavalleiros para a
refoluça de foltar Alvaro. Gonçalves
a
DEPoRTUGAL, LIV. XX. 206
a todo o rifco. Elles efpiavad do Lan- Eta vulg.
“droal com diligencia, quando feria le-
vado o prefo de Villa Viçofa, e com |
que guarda. Informados do dia da par-
tida, e de que os mefmos Commen-
' dadores em pefloa o havia6 conduzir
com a efcolta de 200 cavallos, e hum
troço de infantaria; Pedro Rodri-
gues, e os feus cavalleiros fe embof-
cáraô no pinhal, que ficava na eftrada
de Villa Viçofa para Olivença , cha-
mada da Corte de Oliveira. Era alta
noite , quando as vigias deraô parte
de virem chegando os Caftelhanos com
pouca ordem ; os Commendadores na
vanguarda ; immediato a elles o preío
carregado de ferros ; bem deícuidados
do perigo, que os efperava.
Com grande prazer efperou o Al-
caide Mór a occafiaô de livrar o feu
amigo ; animou os camaradas para
hum feito honrado ; e apenas os ini-
migos abocárad na eftrada do pinhal,
os noflos gritando S. Jorge , fizerad
mað baixa Íobre elles. Entrárad a fal-
tar cabeças pelo campo á força de va-
lentes cutiladas ; outros tiravaô os
- cor-
206 Historia GERAL
Era vulgi corpos das fellas efpetados nas lanças;
a Infantaria fem corage foffria os gol-
pes retirando-fe á fombra das matas ;
os Commendadores perdéraô os ca-
vallos , e fe falváraô a pé com o refto
dos fugitivos pela fragofidade dos mon-
tes. O prezo Alvaro Goncalves, que
lhe chegava a hora de deixar de fer
Coitado, para que por erro o nað al-
cançafle- alguma lançada, no principio
da refrega fe deitou abaixo da mula,
que o levava, e fe efcondeo em hu-
ma moita para vér com a luz da ma-
nha o fim da tragedia. Rompeo o dia,
e os noflos, que ficárað no campo do
«combate , nað vendo nelle o prelo,
culpáraô o feu defacordo em fe em-
penharem tanto na peleija , efquecen-
do o principal objeito della. na
Gonçalves, que conheceo a voz d
Gonçalo Lourenço de Sampayo , fahio
das matas arraíftando as fuas cadeias
com grande alvoroço dos noflos , que
o conduziraô a Eftremoz , aonde efta-
va D. Nuno.
Payo Rodrigues Marinho , Pore
tuguez valerofo, fuftentava em Cam-
pe?
DE PORTUGAL , Liv. XX. 207
po-Maior a voz do Rei de Caftella.
Defejava o Regente attrahir efte Cabo
ao feu partido , e encarregou ao va-
lerofo Gil Fernandes , de quem já
tenho fallado, que o perfuadifle. Com
a palavra mutua de honra fe ajuftá-
rað os dous Cabos a fallar com fe-
gurança fóra dos muros daquella Pra-
ça. Marchou Gil Fernandes de Elvas
ao lugar deítinado, aonde o Marinho
perido , e perjuro , o prendeo para
tirar pela fua liberdade hum avultado
reígate. Nað era o Gil homem capaz
de foffrer efta injúria fem defpique,
Vêr-fe livre, e vingado foi o meímo,
Elle talou com a gente do feu parti-
do as campanhas de Caítella até Xe»
res , donde trouxe importancias do-
bradas ás do feu reígate , depois de
poftrar muitos cadaveres para tetemu-
nhos do feu refentimento. O Marinho
fahio com forças maiores a tomar-lhe
contas. Elle as deo tað ajuítadas , que
o Marinho lhe cahio no poder para
Era vulg.
pagar o crime da aleivofia. O Gil fez-
delle entrega a Martim Vaíques para
o guardar a bom recato, em quanto
da-
208 “Historia GERAL
Era vulg. dava alcance aos que fugiað. Entað
lhe diffe o fiel Portuguez : Ora Payo
Rodrigues, já que fois tað bravo, pa-
gareis o que fizeítes a Gil Fernandes,
que he tað manlo. Refpondeo-lhe
Payo Rodrigues hum pouco livre :
mas o Vaíques, que ufava poucas ce-
remonias, de hum golpe lhe levou a
cabeca , que trouxe a Elvas em final
do feu triunfo.
Quando no Alem-Téjo fuccediad
eflas aventuras, a nofla Armada de
' Lisboa, que fora incorporar-fe com a
do Porto para voltarem unidas em
Ífoccorro ao fitio , que aquella Capi-.
tal eiperava , marchou commandada
pelo Conde de Traftamara , que ainda
eftava no Porto, a invadir as Praças
maritimas de Galiza. Ella metteo em
contribuiçað , e tomou muitos navios
nas de Bayona , Angia , Corunha,
Neida , e Betancos , donde fe fez na
volta do Porto a efperar as ordens de
navegar para Lisboa. Efperava o Rei
“de Caftella a fua armada de Sevilha
para principiar o fitio da nofla Corte ;
e com a noticia de ektar preítes , par-
tio
DE PORTUGAL, LIV. XX. 209
tio de Santarem nateíta de 12% ca- Era vulg:
vallos, e grande número de infantes.
Pouco depois chegou a vä-guarda da
frota compofta de quatorze galés , que
fizeraô caminho pelo Téjo a 40 nãos
groflas, que as feguiad. O quartel do
Rei junto ao Convento de Santos bri-
lhava pela magnificencia das fuas ten-
das., das dos primeiros Chéfes , ẹ
Grandes da Corte. O avultado núme-
yo das. trópas em terra, a quantidade
de navios de alto bórdo no rio fazia6
huma perfpectiva , ao meímo tempo
que alegre , tað temivel, que jufta-
mente poderiaô defconfiar os fitiados
do bom fucceflo da defenfa. A todas
„as exterioridades correípondia a boa
ordem , e difciplina do campo , o
provimento dos viveres , a corage dos
“Íoldados. TO
Mas aos Portuguezes , que ven-
cer, ou morrer pela Patria o elima-
vað por acto indiftinêto , nada os af-
fombrava ; antes o maior apparato lhes
fervia' de eftimulo mais picante para
meditarem a gloria mais fublime.
Bem o moftrárad na chegada do Rei
. TOM. V. o. ós
210 Historia GERAL
Era vulg. os dous irmãos Ruy Mendes, e Mem
Rodrigues de Vafconcellos, que ven-
do fobre o monte de S. Gens ao def-
temido Capitað D. Joað Ramires de
Arelhano com hum grande corpo de
trópas infultando os da Cidade : Elles
fahiraô com 200 de cavallo ; fizeraõ
rodar os Caftelhanos pelo monte ;
prendéraS a D. Joaô Ramires, e var-
réraô o campo com os Eftandartes de
Caftella na face do feu Rei. Bem o
fizeraô vêr na mefma chegada defte
Principe , quando elle paffava com
hum groflo de gente pelas portas de
Santa Catharina , Fernando Alvares
de Almeida , e outros gentiz Fidal-
gos » que atacados pelo Rei em pef-
oa , o noflo Regente lhes fechou as
portas á retirada , para aquelle Mo-
narca vêr diante de fi tantas monta-
nhas de aço , que immoveis aos re-
pelões de huma multidaô de lanças ,
o forçárað a defiftir do empenho an-
tes de arrifcar a Mageftade, ou per-
der a reputaçaô. Bem o manifeítou
Gomes Rodrigues , quando veio de-
fronte da meíma porta hum dos mais
| alen-
DE PORTUGAL, LIV. XX. 271
alentados do exercito pedir combate Era wulg
particular , que elle perfuadia fe po-
deria eftimar como fentença definiti-
va da juítiça dos partidos do vence-
dor ; e fendo Expectadores do Cafte-
hano o feu exercito poífto em armas,
as noflas trópas, bordando os muros,
do Portuguez : Efte aos primeiros
golpes deo com o Caftelhano morto
em terra, ficando mudo o feu campo,
que teve em mão agouro o fucceflo ;
alegre nas acclamações o Povo de Liss
boa , que por elle fe prognoíticou a
victoria. |
O Principe Regente, vendo o
fitio formado, deípedio Ruy Pereira
para o Porto a fazer expedir a arma-
da , e efcreveo a D. Nuno Alvares,
que eftava em Evora, marchafle com
a gente, que podefie tirar da Provin-
cia a embarcar-fe nella. Os do Porto,
que naô tinhaô Commandanté, oftes
“vecêraS a armada em tal occafiad ao
Conde de Neiva , já declarado a fávor
da. liberdade. Naô duvidou elle accei-
tar a offerta , e partio de Coimbra a
encarregar-fe da cominiflad ; mas tans .
O ii “to
212 Historia GERAL
Eta vulg. to elle, como os mais.Cabos., faben«
do que D. Nuno vinha com: marchas
forçadas a embarcar-fe : nad querendo
na fua companhia homem tamanho,
que levaria toda a gloria da empreza,
foltáraô panno , e fe fizéraô na volta
de Lisboa. D. Nuno, que recebeo efta
noticia em Coimbra, retrocedeo pae
ra o Alem-Téjo, contente com a ge-
nerofidade de ceder as Villas da Rai-
nha D. Leonor , que o Regente lhe
tinha promettido , a favor de feu ir-
mað o Conde de Neiva, que fem ef-
ta condiçaô duvidava acceitar o gover-
no da armada , ambiciolo do premio
antes de fazer o ferviço. : ?
Com a noticia da vinda da arma-
da do Porto, o Rei de Caítella con-
vocou a confelho para fe refolver fe
a fua havia fahir a combater no mar
alto , ou efperalla dentro do rio. Quan-
do fe debatia a contrariedade das opi-
niões ,. appareceo a nofla pela ponta
de S. Giaô , tremolando flamulas , e
galhardetes , empavezada , e guerreira.
“Ella fe compunha: de dezafete Galés y
e outro igual número de navios de
“e P- dia j l al-
DE PORTUGAL, LIV. XX. 213
alto bordo , a que fazia a vá-guarda à Era vulg:
Não de Ruy Pereira ; que com: os
- brios do feu Apellido:tomou por mais
honrado o lugar do maior perigo. El-
la entrou no Téjo' com tanta-com
fiança , como fe navegára em triun>
fo, fem que os Caftelhanos , chegas
dos antes , entraffem.not deverés dé
lho impedir.: Ea incuria , ou efta
frouxidad caufou novos alentos: aos
Portuguezes, que já fe:impacientavað
pelo combate. é Re alfa A
Naô teve elle muita tardança ;
porque várias nãos noflas , deftacadas
para tentar: o animo, dos inimigos,
de modo fe empenháraô , que fizè-
rað em ambas as Frótas o choque ge-
ral. Todo elle foi de opiniaô por am-
bas as partes ; mas fenfivel aos Por-
tugúezes por hum acafo laftimofo ,
“em que perdeo a vida Ruy Pereira fa-
zendo as vezes de foldado intrepido ,
e por tresnãos groflas,' que nos apri-
fionira6. Já'os inimigos fe perfuadiaó,
- que efte golpe nos abatêra o valor;
: que todas as vantagens futuras feriað
: fuas ; que a deíte combate cais 56 à
E Ol-
414 Historia GERAL
Ere valg. fortuna ao feu foldo , efpecialmente.
quando foraô reforçados depois delle
or mais vinte e hum navios, e nos
nofios fàltavað. tres. Segunda batalha,
em que nenhuma das partes cantou
a vitoria , lhes deímentio as idéas;
mas elles ficárað em eftado „ que fe
foraô para Reílelo reparar as ruinas,
e nós bordáimos: a nofla praia junto
aos muros da Cidade: para fullentar
a defenfiva , que era o que entaô nos
importava.
“CAPITULO V
ContinuaçaS do fitio de Lisboa com o
“Mais que aconteceo até os Caftelha-
nos o levantarem.
Na Naçaô Portugueza o amor da
Patria , que à Eltrangeiros bem inf-
truidos ouvi já notar de (uperíticio-
fo , he tað vehemente , que: Diogo
Lopes Pacheco , já muito avançado
em annos , e feus filhos Joad , Fer-
nando , e Lopo, que eftavaô em Caf-
tella muito reífpeitados : fabendo Q
que
o a ia aa Pt mito a e e
DE PORTUGAL, LIV. XX. 218
que o Meftre de Aviz obrava em Por- Eta vulg.
tugal pela liberdade , marcháraô com
trinta criados para fer participantes
da honra da nofla refoluçaő , que em
Caftella nem era para penfada. - Elles
chegáraô ao T'éjo quando principia-
va o fitio de Lisboa , e nað queren-
do ayrifcar-fe na paflagem , foraô pa-
ya Almada, Os (eus: efcrupulofos
moradores ,. como. elles vinhad de
Caftelia , nað. houve remedio a con-
fentillos dentro dos muros, e apenas
os deixáraO aquartelar nos arrabaldes.
Entrou o Rei em viva cólera quando
foube efta retirada de Diogo Lopes,
que caracterilou pela ingratidaô mais
indigna , fuppoftos..os. grandes benefi-
cios, que Diogo Lopes recebêra del-
Je, e de feu Pai D. Henrique. Sem
mais penfar mandou hum grande def-
tacamento aos Arrabaldes de Almada
prender Diogo Lopes , que aviíado
da paflagem dos Caftelhanos , com
feus filhos, criados, e parte da guar-
niçaô fahio aelles para dar próvas da
fé no coraçaô, do valor em annos ve-
lhos.
Tað
Eta vulg. ;
416 - Historia GERAL ~
-= Tað rudo foi o ataque, que aos
. primeiros repelões' cahfraô. mortos 40
Caftelhanos ; mas como- o partido era
muito .defigual ., e Diogo Lopes teve
a infelicidade de ficar rprifioneiro ,
feus filhos ` e-atrópa cuidárad em
retirar-fe com honra; À villa do ve:
neravel Velho acabou deenfurecer o
Rei, que refolveéo calligar a :hel Al-
mada. Mandou elle fitiar o Caftello
por Pedro Sarmiento ,. e Joaô Ro-
drigues de Caftanheda 5 que por ef-
paço de mez e meio encontrárað hu-
ma réfiltencia inimitavel, e lograria
os feus efleitos, fe fecca a: Cifterna,
a fede extrema :,.e a impoflibilidade
de: lhe introduyzir:a agua neceflaria nað
obrigafle o Principe Regente ordenar
aos: moradores , que fe entregaflem.
Porém.os da Villa de Ourem repará-
að efta’ perda: de Almada , entregan-
“do-fé: ao Mefre: D. Lopo Dias de
Soufa , que prendeo nella a dous filhos
“do Conde: de Barcellos, antes amigo
do Regente, agora declarado contra
"à liberdade da Patria com a irmã Rai-
nha preza em Caftella, ?
DE PORTUGAL , LIV. XX. 217
O -fitio de Almada -naô impedia Era wilg.
o ardor do de Lisboa ., : nem o (eu
rendimento esfriou o reféntimento da
Rei , afim pelo deíprezo , que em
Thomar fez D. Nuno Alvares Perei-
za, quando voltava de Coimbra:, das
vantajofas promeflas, com que o man-
dou brindar para feguir o íeu parti-
do ; como porque o-feu reconheci-
mento a efta benevolencia Real foi
vir com a fua gente , perecendo. de
fome , atacar , vencer , e defpojar
“junto a Santarem huma: grofla partida
Caftelhana. para fupprir com o valor
deíta preza os gaftos da jornada até
- Evora. Crimes tað honrados eftimulá-
rað tanto ao Rei D. Joa5, que man-
dou a Joad Rodrigues de Caftanheda
pafiafe logo a Badajóz , e caftigafie
a D. Nuno, que com a:fua chegada
-ao Alem-Téjo aggravára os delidtos:,
tomando por huma furpreza cheia de
confiança a. Villa de Monçaráz. En-
tendeo o Caftanheda, que hum Mao-
co de vinte e tres annos, como era
„D. Nuno , refpeitafle hum Capitaô
antigo , qual elle fe deixava vêr ; e
ds o
218 HNiSTORIA GERAL
Era vulg. o perfuadio por hum trombeta + que:
mandou a Elvas, reconhecefle o feu
legitimo Rei, e nað quizeffe vello da
outra parte do Caya com cara de en-
fadado. |
Reífpondeo-lhe D. Nuno , que
para o feu Soberano fer Rei de Por-
tugal , primeiro havia efperar , que
a Rainha lhe defle hum filho para os
Portuguezes o reconhecerem como
tal, na fórma que elle jurou no ulti-
mo Tratado : que lhe agradecia os
feus confelhos , paixad dominante dos
Velhos dallos aos rapazes, que lhos
nað pedem : que elle o efperava no
dia feguinte , eo convidava para a
fua meza, aonde o acharia com cara
de rilo, e femblante de féíta, Apenas
D. Nuno defpedio o trombeta, orde-
nou fetocafle a pegar; e ainda o Caf- |
tanheda nað acabára de ouvir o reca-
do, já elle eftava á vifta de Badajóz
com 400 cavallos , e a infantaria de
Elvas. Naô convinha 4 honra do Cal-
telhano deixar de acceitar o convite,
que lhe vinhaõ fazer na cafa propria,
e fahio com todo o feu poder e
ens
a moto ae ás amema mm om
DE PORTUGAL, LIV. XX. 219
- fendo enveítido com huma refoluçaõ, Era vulg.
que fenað. concebe, a furia do repe-
Jaô o metteo a golpes pelas portas de
Badajóz , aonde todos fobiraô á mu-
Talha para verem o rofto. alegre , e o
animo defenfadado: com que D. Nuno
levou a reto do dia na frente della..
= Eftas. noticias no campo , e na
Praça de Lisboa produziað os encon-
trados efleitos , que fað faceis de
penfar: O Rei de Caftella chamou a
Pedro Sarmiento , e dando-lhe ordem,
que ;com a gente do exercito , que
quizefle levar; foffe ajuntar-fe com a
que tinha: no Crato o Prior D. Pe-
dro Alvares Pereira ; refolveo , que
havia trazer.lhe alli a D. Nuno mor
to, ou prezo. Vaidolo o Sarmiento
por fer efcolhido para reparar a fra-
queza do Caftanheda , efcreveo do
Crato a D. Nuno, que fe achava em
Evora , dizendo-lhe o efperaffe no
campo, aonde elle hia para o agoitar
á vita de todos , como a minino,
D. Nuno nað quiz refponder por ef-
crito : Seria reípeito, ou temor, mas
nada o alterou, Dizei a meu Sa
Ga
226 Historia GERAL ©
Era vulg. Pedro Sarmiento ( foi a refpofta dé
D. Nuno, ) e aos mais Capitães , qué
o acompanha6 , a promptida5 com
que -lhe obedego em buícallos : que
prepare os inftrumentos ‘para -Os áçoi-
tes , que eu levarei de boa vontade,
fe elle vir, que lhe vira as coftas o
minino , que faberá [er'cortez ás fuas
cas. E a
Ajuntou D.” Nuno a gente que
pode, e marchou “duas ‘leguas de Evo-
ra a efperar os inimigos , 'que appa-
recêraô em grande número “com os
muitos cabos reípeitaveis -na fua tefta.
Ambos os córpos fizetaõ alto, quan-
“do fe aviftáraS ; D. Nuno querendo
fer acomettido , os Caftelhanos du-
vidofos fe acometteriad. Antes de fe
expôr á fortuna, tentáraS como pru-
dentes a D. Nuno com huma menfa-
“gem nova , reiterando as períuasões
de mudar cafaca. Elle lhes fez refpon-
der : Que nað viera ao campo gaf-
- tar o tempo em cumprimentos , fe-
nað a levar os açoites : que fe mo-
“veffem a dailos , ou que pofeflem pé
“em terra, como elle eftava Ear
Us
DE PORTUGAL; LIV. XX. 221
duvidava fer o meímó que marchaffe Era vulg.
g recebellos, fe condefcendeflem em
pôr-fe na acçaô , que. lhes requeria.
Dous dias os eíperou o valerofo He-
róe fem elles fe moverem., nem mu-
darem de poítura. No terceiro fere-
folveo a atacallos , nað podendo de-
morar mais tempo o defaggravo da
injúria; mas quando amanheceo achou-
fe fó no campo , porque os inimigos
fe haviaô retirado para Lisboa com
todas as apparencias de quem foge.
Sentio o Rei em extremo efte:
defar das fuas armas: . muito mais De
Nuno , que fobejando-lhe o valor,
nað eflimou a victoria , por lhe fal-
tar o conflito. Naô foffreo aquellæ
animo intrépido deixar de moftrar ao.
mundo , que naô combatêra, porque
os Caftelhanos lhe fugirad ; e arbi-
trando comíigo a idéa façanhola , que
havia emprehender; com a meíma
trópa, que o acompanhava, foi feguin-
do a marcha dos inimigos , e de re- .
. pente fe lançou fobre a Villa de Al-
mada. O Caftanheda , que já eftava
nella, fugio fem acordo. Na pode
o a fur-
222 Historia GERAL.
' Eravulg. furprender o Caftello, que achou con
as pórtas fechadas ; mas faqueou a
Villa, e com cólera jufta as cafas do
Sarmiento , e Caftanheda ; paflou á
efpada quantos Caftelhanos apparecê-
raô; e formando a fua gente em hu-
ma grande fileira com os Eftandartes
foltos fobre -a rocha fronteira a Lis-
boa, deo aos moradores, que difcor-
rêrað quem era, huma viņa bem ale-
gre. No mefmo dia fe recolheo a Pal-
mela, aonde efteve até ao fim de Se-
tembro , quando os Caftelhanos le-
vantárað o fítio.
Todas as noites mandava elle ac-
cender muitos fogos nos altos da Vil-
“Ja para dar final ao Regente, de que
alli eftava o mais fiel dos feus fervi-
dores , prompto a feguillo em todos
os deflinos. Reparon o Rei de Caf-
tella na continuacað deftas luminarias,
e perguntou ao Sarmiento quem feria
o author daquelles finaes, a que fe
| vefpondia com outros femelhantes no
Palacio Real de Lisboa. Dizendo Pedro
Sarmiento, que entendia fer D. Nuno
Alvares Pereira : O Rei, po
o
e A fm
DE PORTUGAL, LIV. XX. 223
do o fundo da fua afflicçaô , lhe tor- Era vulg.
nou , que fe admirava , de que fen-
do elle o Adiantado de Caftella con-
fentile , que hum Commandante de
cinco potros lhes eftivefle fazendo taes
defprezos na fua face. O Sarmiento,
que fe vio neceffitado a defculpar a
covardia propria , encarecendo O va-
lor alheio , refpondeo ao Rei : Que
défle graças a Deos, ou ao Rio, que '
tinha na frente; que a nað fer elle,
o Chéfe de cinco potros o viria vi-
fitar dentro do feu pavilhaõ real.
Muitos cuidados entráraô daqui
em diante a opprimir o efpirito do
Regente pela difficuldade do remedio.
Hum delles foi a prifaô, de que de-
fejava refgatar a Diogo Lopes Pache-:
co, que viera de Caítella com os fi-
lhos offerecer-fe no feu ferviço. Defte
fe livrou elle pela troca, que fez com.
D. Joaô Ramires de Arelhano , que ti.
nha prifoneiro; e em recompenfa da
fua fidelidade reítituio a Diogo Lopes:
a honra, fama, e fazenda, de que o.
privára o Rei D. Fernando, Outro.
maior foi o da traiçaô intentada por
224 Historia GERAL
Era vale D. Pedro de Caftro , filho do Conde
de Arrayolos , que guardava a pórta
de Santo Agoftinho com huma trópa
de Caftelhanos do partido antigo do
meímo Rei D. Fernando , e ajuftou
dar por ella entrada ao de Caftella,
Joa Lourenço da Cunha , marido da
Rainha D. Leonor , que foube efta
conjuraçaô , quando eftava em artigo
de morte , a revelou ao Regente,
que ajuntou com a actividade de a
difipar, a clemencia indifivel do per-
dab , que deo a D. Pedro contra o
clamor geral de todo o Povo. Sobre
todos intoleravel era o cuidado de re-
mediar a fome , que hia chegando a
Cidade aos termos de fe perder. A
efte perigo acodio Deos , que fendo
fó quem da > € tira Imperios , neĝa
occafiad nað quiz Portugal fugeito a
dominio eftranho, e defendeo a nofla
liberdade com os esforços do feu bra-
ço, como fe hirá vendo no difcurfo
defta narraçaô, ainda que contraida,
Principiárad a picar no campo
queixas contagiolas acceleradamente
mortaes , que pozerad em confterna-
| çaõ
DE PORTUGAL, LIV. XX. 226
“426 oRei, e os feus Generaes. Ellas Eta vulg;
o obrigárad a tentar antes os meios
“da negociaçaO , que os das armas, já
prevendo que poderia reduzillo o mal
a termos de levantar o fitio. O Re-
gente nað querendo ter por indifferen-
tes quaeíguer propoftas, fe difpôz pa-
ra ouvir as que o Rei determinava
mandar-lhe fazer. D, Pedro Fernandes
de Velafco , Camareiro Mór, foi o
nomeado pelo Rei de Caftella para efta
commiflaô importante. Sahio o Re-
gente da porta de Santa Catharina a
“ouvillo ; e elle defenvolveo a perten-
çaô do Rei feu Amo á nofla Coroa
bem firmada no feu cafamento com a
Rainha D. Brites. Propôzdhe, que fe
quizefle abater as armas , ficaria com
o governo do Reino aflociado de hum
Fidalgo Caftelhano, que elle nomeaf-
fe para effe efleito, Bem longe deftas
idéas, o Principe refpondeo ao Depu-
tado em termos vagos, e tad geraes,
que nada fignificaflem. Derrotou a for-
fa do calamento pela rotura , que O
Rei fizera no feu Tratado ; de fórte 4
“que Velafco teye de voltar come
Ñ. P veio,
Erá vulg.
226 HISTORIA GERAL
veio, fem negociaçaô , nem efperani
a. |
i Como nada refultou da conferen-
cia, foi renovada a guerra ; e o Pin-
cipe , que fe envergonhava , de que
fe difefe no mundo , que elle nað
fahia ao campo, e foffieffe os inful-
tos dos Caftelhanos dentro dos mu-
yos de Lisboa ; efcreveo a D. Nuno
Alvares marchafle com a gente do feu
partido fobre a reta-guarda dos inimi-
gos, que elle ao meífmo tempo ata-
caria pela vā-guarda , para em hum
dia livrarem de tantas calamidades a
Capital do Reino. Afim difcorriað os
animos , quando o contagio tirando a
vida aos Chéfes mais importantes do
exercito , entre elles Velafco , Sar-
miento , Caftanheda , o Conde de
Mayorga, e o bravo Almirante Toar:
o Principe de Navarra , cunhado do
Rei de Caftella, lhe reprefentou nað
tentafle a Deos, levantafle o fitio, é
fe recolhefle a Caftella, antes que as
fuas forças ficaflem fepultadas.nos cam-
pos de Lisboa. A confutaô, ou a dor
do Rei foi tað viva, que a defaflo-
E -gou
DE PORTUGAL, LIV. XX. 227
gou em gemidos; o feu fentimento,
ou a fua indignação rað grande, que
a refpirou com o proteo de defejar
vêr o aflento de Lisboa lavrado a fer»
ros de arado. |
A fua trifteza, e ofeu pejo tu-
do o Rei quizera efconder em Santa»
rem ; mas a efperança de dominar Por-
tugal algum dia , o fez tirar a públie
co por meio de muitas Cartas infi-
nuantes , com que rogava aos Gover»
nadores das Praças do feu partido fe
mantiveflem nelle firmes, em quanto
voltava a Caítella a reforçar-fe. Oc-
cupado em fim do humor melancolico,
que lhe agitavaô tantos efpeétaculos
triftes , quantos encontrára em Portu»
gal nað eíperados ; elle fe refolveo a
fahir do Reino, aonde viera fer tefte-
munha do deftroço das fuas armas ;
fem confeguir nada digno de qualquer
Capita6, quanto mais de hum Rei taô
poderofo fobre hum Eftado tað fraco,
ainda mais debil por dividido. Elle fe
foi ; meditando , que já mais Princi-
pe marchára tað abatido como elle
Era vulg.
nefta fahida de Portugal, A fua trifte-
P ii za
Era vulg.
i
228 Hisrortà GERAL |
za defcoberta no rofto fe communis
cava aos Grandes , que nað podiað
efcufar-fe ao fentimento na perda dos
parentes , e amigos :. fentimento dos
brado pela companhia dos cadaveres,
que levavaô embalfamados com fal
para lhes darem fepultura nos jazigos
dos feus Maiores. Nada fe via nefta
retirada , fenað o ajuntamento nume-
rofo de hum Reino grande, mais em
tom de acompanhar hum enterro ce-
remoniofo , que de conquiftar huma
Coroa brilhante.
Nefta figura chegou o Rei D.
Joaô a Sevilha, aonde teve por con-
veniente nað defabular a credulidade
dos feus vafiallos com o ufo, que el-
le dava ao titulo de Rei de Portugal.
Para melhor os entreter foi provendo
em Fidalgos Portuguezes os empre-
gos , que do tempo do Rei D. Fer-
nando eftavad vagos. Neftes exerci-
cios , ainda que com mais de appa-
rencia, que de entidade, D. Joaô de-
faffogava o animo para o difpôr å
continuaçaô dos feus projectos, quan-
do fe lhe offereçefle occafiað mais opa
ci Ee por-
z$
DE PORTUGAL, LIv. Xx. 229
portuna, Ora deixando nós do Rei de Eta wig. |
Caftella luctando com as imaginações
tries dos feus infortunios , levemos
a memoria a lembrar-fẹ dos alvoro-
gos plauíiveis de Lisboa. |
Viaó os noflos dos muros, e nad
entendiad os movimentos dos Cafte-
lhanos no feu campo ao tempo , em
que elles fe difpunhaõ para levantar o
ftio. Na noite os ER sea o fo»
go , que pozérad ao arrayal , e af-
fuíftou a D.Nuno Alvares em Palme-
la, entendendo que a Cidade fe abra-
zava. Na manhã foi completo o gol-
ta, quando os vimos pelas coftas em
retirada vergonhofa, O Principe Re-
gente traníportado de hum prazer res
ligiofo , correo ao Templo feguido
do Povo , para moftrar na acçaô de
graças, que hia render ao Ceo , co-
mo o levantamento do fitio era hum
efleito menos da fya ambiçað. , e da
fua gloria, que da fua piedade, e da
fya efperança em Deos. Os Miniftros
do Evangelho para nos perfuadirem a
grande obrigaçaô , em que eftavamos
ao Dominante Supremo dos ia
| é-
230 Historia GERAL
Era vulg. déraó todo o tom de horribilidade ao
riíco , em que eftivemos de fuppor-
tar hum dominio eftranho : Delgra-
ca , que elles reduzirad a eftado de
muito mais odiofa , que nós naquelle
tempo imaginavamos. O Povo con-
fundia o gofto com os allaridos das
feftas, e dos vivas, que entoavaô em
igual ponto a clemencia do Regente,
a fua fortuna , a fua gloria , o feu
valor.
O fidelifimo D. Nuno Alvares
Pereira, impaciente por fe congratu-
lar com o feu Principe , nað efperou
que a Armada dos Caftelhanos fahiffe
do rio para pafar a Lisboa. Elle fe
embarcou em huma falva , e fe pôz
furto na bocca do Montijo até horas
de meia noite, donde partio a toda
a força dos remos. Quando fe vio
no meio da Efquadra inímiga man-
dou aos feus trombetas , que tocaf-
fem. Os Caftelhanos confufos fe pozé-
rað em armas; e defcobrindo a falua,
de todas as nãos fe perguntou quem
paflava. Foi-lhe refpondido , que o
Fronteiro do Alem-Téjo D, Nuno Al-
Va-
DE PORTUGAL , LIV. XX. 231
vares Pereira. Como fe o éeco defte Era vulg. -
nome fofle hum trovaô horrendo nos
ouvidos dos Caftelhanos , todos de
repente emudecêrad , e nað houve
quem lhe impedifle a paffagem. Quan-
do foi hora competente defembarcou ,
marchou em direitura. ao Paço , e
dado avifo ao Principe , correo a re-
cebello á falla , aonde lhe lançou os
braços, e fe uniraô os corações, que >
ligára o amor. |
A vinda de D. Nuno foi acom-
panhada das demonftrações da nota-
vel inclinaçaô, que ao Regente mof-
travad os Póvos na concurrencia de
lhe oferecer cada qual quanto pofluia
para os gaftos da guerra, fe ella con-
tinuafle. Ea feliz difpofiçaõ a favor
do Principe era hum caminho aberto
para elle ir dando paflos á Coroa. D.
Nuno aproveitou a occafiad para o
perfuadir : Que fe os Portuguezes fe
lhe uniaô por amor, que era jufto li-
gallos mais com os vinculos da Reli-
giaô no fagrado do juramento folem-
ne de fidelidade, que eftimula os ho»
mens a fazer-fe infeparaveis dos E
O-
232 Historia GERAL
Kra vulg. Soberanos : Que em Lisboa eftavaĝ
tantos honrados , que de neceflidade
fe haviaô dividir pelos empregos do
Reino ; outros ainda na muito fir-
mes na confervaçaô do partido da li-
berdade ; que a huns , e outros era
jufto tellos afluítados com o temor
de fer perjuros : que o meio de con-
feguir efte projecto fem reparo, elle
o entendia facil na propofta do mos
do por que fe havia continuar a guer-
ra; para o que convocafle a Nobre-
za , e Povo , o Principe lha fizefle ;
que elle entaS moveria o aflumpto do
juramento , que fe lhe reprefentava.
indifpenfavelmente neceflário.
Sabia o Principe, que quanto D,
Nuno fallava erað affeitos emanados
de hum coraçaô candido; e convindo
com elle, mandou convocar as gen-
tes na Igreja de S. Domingos , aon-
de lhes fez efta pathetica falla: Vós
“Tabeis, Patricios amados , e compa-
nheiros feis , que por morte do Rei
D. Fernando Eu quiz deixar o campo
livre aos pertendentes da Coroa , e
embarcar«me para Inglaterra, até vêr
i o
DE PORTUGAL , Liv. XX. 233
e eltado dos negocios do Reino : Vós Era wilg.
mo impediftes temerofos de vos fu-
geitar dominio eftranho: vós me vio-
lentaftes a dar palavra de nað abando-
nar a Patria : vós me rogaftes para
acceitar o Governo até fe encherem
as condições do contrato do cafamen-
to do Rei de Caítella, com a Rainha
D. Brites: Elle nað teve paciencia pas
ra o efperar: Rompeo a fua ambiçaó
no defacordo de faltar á fé de Sobe-
rano na prifaôd de meus irmãos os Ín- -
fantes D. Joaô , e D. Diniz , na de
feu mefmo irmað o Conde de Gijon
or fer cafado com huma filha do Rei
- Fernando : Entrou no Reino ar-
mado , e o tratou como inimigo:
Vós o acabais de vêr no cerco, que
pôz a efla Corte: Eu a defendi com
a força do voflo braço : moftraftes ,
que fois Portuguezes: Elle deixou ene-
tre nós partido grande , que nos deve .
ter acautelados : Elle voltará no an-
no futuro ao empenho , que forma na
fua idéa fer o ponto mais eflencial da
fua honra: Vós entendo eftares firmes
em fuftentar o da liberdade, para a |
N
234 HISTORIA GERAL
Era vulg. Eu offereço o fangue , e a vida: Chas
mei-vos para vos dizer, que ha de con-
tinuar a guerra, e que fó de vós de-
pende arbitrar os meios para a fazer-
mos vigorofa,
D. Nuno Alvares Pereira tanto.
que vio o paflo franco para avançar
a fua idéa, foi o primeiro em fallar ,
e depois de tecer elogios correfpon-
dentes ás boas intenções do Principe,
accreífcentou : Que a primeira acçaã
com precedencia a todas as outras ,
devia fer hum ado folemne feito no
Senado da Camara, pelo qual jurafem
fervir com fidelidade ao Principe tos
dos os que o reconhecéraô Regente,
e eftimavad Protetor : que para a
refoluçaô dos mais negocios civis, e
Militares , fe convocaffem Cortes pa-
ya a Cidade de Coimbra no princi-
pio da Primavera, aonde os Póvos do
Reino tomariaô pelos feus Procura-
dores as deliberações mais conformes
à manutençad da liberdade. Applaufo
univeríal mereceo a propofta de D.
Nuno ; e deftinado o dia feis de Ou-
tubro para o ado do juramento , é
por
DE PorTUGAL, LIV. XX. 235
pafa lugar delle o Palacio da Alcace- Era vulg;
va, com affiftencia de. muitos Prela- |
dos , de muitos Fidalgos da Corte,
e do Reino, e de hum concurfo nu-
merofo , fe celebrou a ceremonia au-
gufta, prefente o Principe debaixo de
hum docel magnifico, que acceitou
o juramento , e já com apparencias de
Rei, todos lhe beijáraôd a mað.
Coroou o Regente efle so com
as avultadas, e copiofas mercês, que
fez a todas as pefioas , que mais fe
diftinguiraS na defenfa da Corte, pa-
ra que os premios prefentes eftimu-
laffem os efpiritos a obrar no futuro
outras gentilezas , que os mereceflem.
femelhantes. D. Nuno Alvares, que
nað queria perder tempo , fe reco-
lheo logo para Evora a difpôr os meios
de fazer reípeitavel a fua Provincia.
Elle deixou aconfelhado ao Principe,
“que fahide de Lisboa em figura de
quem hia picar a retaguarda dos Caf-
telhanos, e perfeguillos na retirada,
quando já elles iriaô chegando a Caf-
tella ; porque de fe deixar ver afim
às Praças contrarias , ou indifferen-
tes»
<-
236 Historia GERAL
Era vulg. tes, poderia trazer algumas à fua de-
voçaô, como depois maftrárad os lucs
cefios. |
CAPITULO VII.
“Das expedições que fe feguirad depois do
“levantamento do fiia. de Lisboa, e -
como foraô convocadas as Cor-
tes de Coimbra,
O PRINCIPE Regente na Eltremadus |
ra, e D. Nuno Alvares Pereira no
Alem-Téjo. nað. quizerað , que a Pa-
tria os viffe ociofos.. Sahirað ambos |
ao mefmo tempo a fugeitar algumas
das Praças obedientes. a Caftella ; mas
os primeiros paffos do Regente, que
marchava huma noite a furprender
Sintra com o Arcebifpo de Braga, ©
Conde de Neiva , foraô detidos por
huma tormenta tað horrorofa , que O
forçou a retirar fem profeguir na em-
preza , que lhe era importante , por
eftar Sintra tað vifinha de Lisboa, e
a fultentar por Caftella o Conde de
Cea D. Henrique Manoel. Q pezar
que
DE PORTUGAL, LIV. XX. 237
que lhe caufou efte infortunio , bre- Era vulg.
vemente o fuavilou com a reftaura-
ção de Almada, que lhe abrio as por-
tas , e moftrou o zelo , que tinha pe-
= lo feu ferviço, agora preferido á con-
fervaçaô de vinte refens honrados ,
que o Rei de Caftella levou da Villa
por penhor da fua fidelidade. O Re-
gente fez aos moradores as mercês s
que merecia a delicadeza da que com
elle uláraô no tempo do fitia, e nef-
ta entrega; entað facrificando-fe a fi
nos feus córpos ; agora offerecendo
por vitima as almas nos refens dos
filhos.
- Elle fe fazia preítes para ir fobre
Torres-Vedras , quando os paizanos
de Alemquer o rogáraô quizefe em
pefloa marchar áquella Villa, que el-
les defejavad pôr na fua devoçaõ. Pa-
ra nað ficar inutil a primeira re(olu-
Gað , dividio a gente ; parte para O
feguir a Alemquer ; outra parte para
principiar o fitio de Torres ás ordens
de Joað Fernandes Pacheco. Naó po-
de Alemquer fer levada de furpreza
com o favor da paizanage , porge
| che-
238 Historia GERAL
Era vulg. chegáraó de dia os barcos, que cons
duziaô a trópa do Regente, a que fe
oppôz vigorofo o Alcaide Mór Vafco
Pires de Camões. Fortificou-fe o Prin-
cipe no campo , e mandou intimar
a entrega ao Chéfe , que reípondeo
com a defenfa gentil de leis femanas,
em que fe deraô muitos , e viítofos
combates. Em hum delles perdeo a
vida com alentos generofos D. Af-
fonfo Henriques , irmaô baflardo do
Conde de Traftamara , que feu Pai
o Infante D, Fradique tivéra da céle-
bre Paloma , e naô deixou geraçaô,
que pela honra de defcender de hum
Infante , multiplicafle a vileza de tal
Mai. i
A força dos combates, e o aper-
to da fede reduzírað o Camões a ca-
pitular a entrega com os Artigos fe-
guintes : Que lançaria do Caftello a
guarniçaô Caftelhana , e elle o defen-
deria pelo Regente em attençaõ a ter
fido criatura do Rei D. Fernando , e
eítar cafado com a filha de hum Fi-
dalgo Portuguez: Que fe voltafle aa
Reino a Rainha D. Leonor fem tras
zer
DE PORTUGAL, LIV. XX. 239
zer Caftelhanos , poderia entregar- Era vulg.
lhe a Villa, por fer pertencente aos
feus Eftados : Que o Regente poria
no Caftello guarniçao Portugueza ,
mas que o Alcaide Mór elegeria os
Cabos. Com eftas clauífulas entregou
entaô a Praça de Alemquer o Gallego
Vafco Pires Camões forçado pela ne-
ceflidade , com a intençaô perverti-
da; mais facil a fer ingrato ao bene-
ficio , que perder a conjuntura de fe
moftrar officiofo a Caftella.
De Alemquer marchou o Regens
te para o fitio de Torres-Vedras ,
* que fe fez penofo pelo rigor do In-
verno , que fobreveio. À Providencia
que parece guardava no feu feio efta
Reliquia do Santuario dos noflos Reis
fidelifimos , a prefervou de hum fim
defeftrado debaixo dos muros defta
Praça. Ponderava o Rei de Caftella a
pouca apparencia de lograr os feus
defignios ; e como via a difficuldade
de os confeguir por força das armas,
refolveo-fe a tentallos por meio da
perfidia , a todos os homens eftranha,
em hum Rei abominavel. Para g ef-
Eai ei-
240 Historia GERAL
Era vulg. feito, elle imagina o modo de arram-
car do mundo o noffo Regente, que
lhe formava o maior obítaculo ás fuas
pertenções. Parecendo-lhe expediente
feguro valer-fe do meímo traidor,
que em Coimbra lhe quiz tirar a vi-
da, e por fe falvar tomou o partido
do Regente, agora o períuade a amon-
toar as infamias, e que mate ao Pro-
tector o homem refugiado , que quiz
matar o feu mefmo Soberano. Efte
era o Conde de Traítamara , entað af-
“fiftente na Cidade do Porto, ao qual
o Rei de Caítella efcreveo a Carta
Seguinte: | |
« Que elle devia lembrar-fe, que
» além de vaflallo, era feu primo ir-
» mað; duas razões, que o obrigavad
» a fervillo contra os feus inimigos :
» Que elle naô ignorava , como o
» maior de todos era o Meftre de
“à Aviz, que tinha a confiança de dif-
» putar a fua mulher a pofle de Por-
» tugal: Que fe efqueceria de tudo ,
» fe elle Conde quizefle matar o dito
» Meftre, o que lhe feria facil por
» elar eftimado confidente dos Por-
» tu-
DE PORTUGÁL, Liv. XX. 24T
» tuguézes : Que. no múndo nað fe Era vulg. |
» lhe podia fazer maior ferviço, que
» executar efta morte, e por iffo os
» premios feriad talhados pela medio
» da da fua eftatura: Que fe aprefiafs
» fe em abrir élta pórta para reenė
$ trar na fua amizade , que lhe preb
» parava: a maior fortuna, ; porque o
s fublimaria ao primeiro homem de
4 Hefpanha o Rei ; que nunca feriá
%: ingrato para deixar 'de confefár ; 4
» que ao Conde de Tratamara deviá
» o Reino de Portugal, » Recebida ef-
ta Carta; eiquecido “o Conde de quem
era » arraftado das promeffas de hum
Rei injufto ; lifongeado de 'vãs fpe»
tanças, nað fe contenta fó comen?
trar nas intenções do Rei de Caftetla;
fenaS que aflegurando involver neltas
aos feus amigos , e criaturas , o poem
certo , em que nada mais falta que
bufcar a occafiad pará executar o dez
Henio..
+ - Sem perder tempo fahio ò` Cone
de do Porto , è chegou ao campo cori
femblante , de que vinha obfequiar o,
Regente: ;. aflifindo-lhe ' no fitio de
TOM. b. Q, Tor-
+
942 Hisroria GERAL
Era mig. . Torres. A alliança já contraida com Dr
Brites de Caftro lhe facilitou commu-
icar a feu irmaô D. Pedro de Catro,
já traidor no fitio de Lisboa, e benis
gnamente perdoado, como fica dito y
as intenções com que feguia o Regen-
te. Trouxe mais á fua facçaô a Joad
Affonfo de Baeza , Gallego favorecido
do Rei D. Fernando, e ao Afturiano
Garcia Gonçalves de Baldez, que era
alentado Cavalleiro , mui deftro no
manejo dos cavallos. Eftes foraô og
conjurados , que andavaó efperande
conjuntura para a fua atrocidade, que
fizeraô faber a Joað Duque , Alcaide
Mór de Torres, por meio de efcritos
mettidos nas fétas , que arrojavad à
Praça, para eftar prevenido a recebel-
los depois de a executarem. O Regen-
te eftimava muito ao Baeza , que o.
acompanhava , quando fahia ao campo
a cavallo , e para moítrar deftreza ,
vinha de longe vibrando a lança até a
apontar gos peitos do Principe, e en-
tað com velocidade a, abatia,
| Depois da conjuraçaõ praticava el.
Ie eftas deftrezas com mais frequeo-
E o CR
Å.
DE PORTUGAL, Liv. x$. 243
tia., como enfaio , para`, quando ti- Ers: vulg?
veffe occafia6 de eltar mais proximò
da Praça , a metter-fe de véras, e fal-
var-(e nella, O memoravel Fernando
Alvares de Almeida , que depois: foi
Ayo dos Infantes , fez-fe-lhe intolerás
vel a repetencia deíte brinco do Bae»
za, e-refoluto a impedilla na primeis
ta conjunêtura , lhe cortou a carreii
ra; com a fua lhe abateo a lança, dis
gendo : Reportai-vos ; queiefte modo
de infultar o meu Principe he inde-
cente, e eu nað vo-lo-hei de confeno
tir. Alvoroçou-fe a coníciencia culpa»
da ; mas o Regente, que nada fabia 4
os focegou.; e como aos traidores É
fruftrou efla idéa , cuidáraS em inveno
tar novos arbitrios. Elles: os tinha
bem dilfpoRos ao tempo , que pelo
cafo. fuccedido no Caftello de Gaya 3
o Conde de Neiva, e Ayres Gonçal
yes. de Figueiredo fe defgoflárað de
modo, que p Regente fe neceflitou a
mandallos prender por Vafco Martins
de Mello , e remettellos para Evora,
aonde eAiverad alguns annos. ` `
AD a o eae ad
Qi A
244 ' .Hisrokra GERAL TI
ravus! i A, prifaG repentina de'taes -pefi
oas: ,: ignorados os: motivos ; caufot
tal: mede nos conjurados , que © Cone
do de Traillamara fem acordo: fe: re>
fúgiou-na Praça; o Baeza; e D. Pe.
dno‘ de Caftro fugtraó para Santarem 3
a:Baldez, que eftava na guarda: com
Antad Vaíques :de Almada foi por. el-
le. prefo ;-pofto a tormento, 'confef-
fón , todas as:circunftancias da conju-
raçaão e à vita da Praça fe lhe deo
vivo: fogo: lenta:: O barbato: Alcaide
Mór deipicou efte caftigo juíto ; rhana
dando cortar as-mãos į, e os narizes à
rd iprifioneiros , que tinha: noflos na
ida. 5.. e: pendurados eftes ot
da- impiedade ão pefcoço de hum:,.
Mandou- ao campo com efte prefentes
Os noflos o gratificárad, mettendo:os
Caftelhanos: nos: inftrumentos de ara
Fojar pedras , que qs'arrameçavaõ à mus
ralha., aonde fe -e(magava6 : Brincosg
em que fe. exercitava a cólera, quani
do. fe devia dar lugar á. irai i-
e nic Seguirad-fe a. eftes infortunios w
grande invernada: _ que:fobreveio ,: &
impedia as operações do fitio ; o def-
A, A pras
|
DE PorTUGALs Lv. Six. eg
prazer- de Vafco Pires: de Camões tor-: En'valgid
nar a levantar-fe com:a Villa de Alem-
quer: ; o ideígofto -de Affonlo : Lapes
de Texeda x: Commandante. de Torresa
Novas , com Diogo; Gomes Sarmieni
to qug o era de Santarem., dorro»
tarem huma partida nofla:, e: prendes
yem o Meflre de Chrifto. D; Lopo
Dias: de Soula , e. q Priat.do Grato
Alvaro Gonçalves Camello : Motivos;
que. obrigávad o Regente;a: levantar d
fítio para ir ás Cortesde Goimbra.;' ©
preparar-(e para a ;jarnada , «em que a
deixaremos occupado-;:-porque deves
mos. referir os fucceflos de D. Nuno
Alvares Pereyra no Alemi-Tejo., que
principiando felices , pela inefma cons
ginctyra. do tempo y: e «dos negocios
foraó atalhados. ra O R
Logo que D. Nuno chegou a Evos
ra concebeo penfamentos de fé fazer
fenhor dos Caítellos de Villa-Viçofa:s
e. de Portel pelos terem por Caftella
dous Fidalgos ingratos áo .Principe
Regente .: na primeira Villa à Com- -
mendador Mór Vaíco Porcalho ;:na
fegunda Fernaó Gonçalves Pad =
; å-
toi.
> t '
ivea (Oi
246 Historia GERAL |
Ersvulg. Havia em Portel hum Clerigo chaina-
do Joaô Mattheus, que lofia impa-
ciente a infidelidade da fua -Pátria ; e
que a guarneceflem Caftelhanos. El-
le fe refolveo a libertalla ; e tirando
em cera o molde das chaves da porta
principal, veio a Evora, é o offere-
ceo à D.. Nuno para fe fazerem por
elle nhvas chaves ; que levou, deixan-
do -ajuítada 'a noite para a empreza.
Foi grande:-o gofto do noflo Chéfe na
offerta do meímo , que defejava ; e
fahindo de Evora, foi efperar na Tor-
ye dos Coelheiros a hora dê marchar
occulto. Chegados ' a Portel, o Cle-
rigo „que eftava á- lerta com Os feus
amigos , abrio à porta, por onde en-
trou D, Nuno com a fua gente; mas
fendo fentido dos Caftelhanos , fe tra-
vou hum difputado combate , que foi
vencido, e ganhada a Villa. O Soufa
entregou o Calello por ćapitulaçað
falvas as vidas., e permittida a pafla-
gem para Caftella.
' Divulgou-fe efta noticia da fur-
preza de Portel pela Provincia , e ella
ez lembras em Villa-Viçofa o enga-
no
DE PORTUGAL, LIV. XX. . 247
no de outra femelhante , traçada de Ers vulês
modo, que nella infallivelmente hávia
perecer D. Nuno, o objeto do odid
éntranhavel de Porcalho, fe naquela
noite o nað guardára a Providencia
para depois lhe dar formofos dias. Fin- : 1%
gio o perfido huma Cartá em nóme
dė varios vifinhos , que pediaó a D,
Nuno marchafle a tal horá á pórtá,
da torre, aonde elles o efperávad pará .
lhe dar entrada. Havia da torre à pórs
ta hum pafladião com muitas fetei-
rãs , por onde podiaô fer arrojadas
grandes pedras , e aqui efperou Por-
cálho os convidados bëm ptevenidu
para os elmagar na entrada. Em quan:
to a nofla gente fe apeava , adiantá:
raó-le Fernaô Pereira , irmaô de D, |
Nuno , com hum criado valetofo 4 &
o célebre Alvaro Gonçalves Coitado
para examinarem a entrada da'pórta,
O Porcalho, que entendeo fer D. Nu-
no, fez lançar tal tempeftade dé pés
dras , que Ferùað Pereita , e o few
criado ficárað logo mortos, e o Coi~¥
tado prifioneiro. Sentio D. Nuno à
morte de feu irmaô, e como oi
. n
248 Historia GERAL! ..
Ers valge nha forea para levar. a Praça. 4 efca-
1385
la vifa., contentou-fe com. mandar.
pedir o cadaver de Fernad Pereira,
ue veio enterrar no Convento de Sad
Francifco de Eltremoz. |
Em quanto no Alem-Téjo fucce-
diaô eftas coulas , o r deter-
minado a levantar o fitio de- Torres-
Vedras , måndou antes, que O Arce-
hþifpo , de Braga marchafie do. campo
comi boa parte da gente a Coimbra
para elle o feguir depois com o ref-
A fem tanta oppreflaô dos Póvos.
Tinha-fe feito. avifo, a D, Nuno Alva-
yes para vir a Torres , e com a fya
chegada fe determinou o dia quinze
de Fevereiro para o da partida ás me-
moraveis Cortes de Coimbra, aonde
fe decidio o negocio, da noffa liberda-.
de. Huma folemniffima procifaô com-.
poíla do Cabido , Clero, e Religiões
ahio a receber ao Principe em triun-
fo, que fe fez mais plaufvel pela nu--
merofa multidad de meninos , que a
precedia , fe indo os ares com eftas
vozes fonóras : Portugal, Portugal 5:
viva o noflo Rei D. Joaô + em boa
ANDA hos
DE PORTUGAL LIV. XX. 249
hora venha o ngflo Rei. Como acon- Era vulg,
tecimento. de: Evora: ao mefmo tem-
po quiz Deos moftrar-nos , que: elle
pozera eftas: palavras na boca das in-
nocencias de Coimbra. Quando :ellus.
afim davaô as:boas vindas ao futuro
Ionarca , huma: menina; de pito me-
zes » filha de Effevad Annes- Derrea-,
do , que gftava:no feu berço em Evo-;
ra + deitando .fára os bracinhos com,
movimento: de alvoroço, diffe, em voz
clara a todos perceptivel,: Portugal ,
Portugal por el: Rei D. Joa. E nað '
fallou mais. até ao- tempo habil da na-
tureza, a que entað elevou a ordem.
o feu Author Supremo. .
- : Vieraô concorrendo a Coimbra
os Tres Eítados . do Reino , que ha-
viaô formar as Cortes , e fe achárað
prefentes. pelo, Ecclefaftico dyze Pres
lados ; grande quantidade de Nobreza,
que todo, fe comprometieo em fetens
ta e dous votos da'fua clafic; e pes
la do Povo cincoenta., e hum Proca-
radores, Antes de fe entrar nas Secs
ções , todos -os Eltados conferi=::õ en-
tre à, e uniformemente afientáras
por
250 Historia GERAL
Era vulg. por baze a exclufiva total dos Reis dé
Caftella á nofla Coroa. Depois fe de-
terminou , que indifputavelmente fe
havia proceder á eleiçaô de hum Prins
cipe Portuguez , que reveítido da Di-
nidade Real fe plantafle na téfta dø.
feu Povo , lhe adminitraffe juflica,
e o defendefle das invasões de feus:
inimigos. Entráraô os partidarios a
- defcobrir as fuas inclinações até enta6:
rebuçadas no temor, ou na politica.
D, Nooo Alvares Pereira, que fabia’
ufar da fegunda , e nað conhecia o
primeiro, na frente dos Prelados , e
da maior parte da Nobreza , fahio:
por elles a campo, e abertamente fe:
declarou pelo Meftre de Aviz. Mar-.
tim Vaíques da Cunha, que pela fua’
qualidade fazia huma grande róda de’
parentes ; fuftentou com todos a voz
do Infante D. Joað, prefo em Caftel-
la, por fer filho legitimo do Rei D.
Pedro , e de D. Ignez de Caftro ; o
que fuppofto , nað fe devia entender
o Throno vago. . |
Outros entendiad , que a eleiçaã
de Rei devia differir-fe , em razaô de
+
e eae meo e dei apananta,
DE PORTUGAL, LIV. XX. 2g1
faltarem Procuradores das muitas Vil- Era wilg. -
las , que eftavad por Catella : que
entre tanto continuafle o Meftré na Re-
gencia , até que os fucceflos podeflem
melhor qualificar as refoluções. Po-
rém efte partido , e o de D. Nuno
Alvares nað toleravad, que fe propo-
gefle para Rei em contrapofiçaô do
de Caflella ao Infante D. Joa , que
elle tinha prelo em feu poder. Elles
diziaO , que por efte motivo valia
` tanto a eleiçað de D. Joaô , como
collocar no Throno huma fargada Ma-
geftade : Que efte era o meio de fa-
zer o Infante mais infeliz , ou pela
perpetuidade da prifaô , ou pela vio-
lencia de huma morte deshumana,
que em. qualquer dos cafos deixava O
Reino no mefmo , ou peior eftado.
Os Procuradores de Lisboa defcarre-
gavað hum golpe, que dava em que
cuidar o reparo no protefto,. que fa-
ziað , de que a fua Cidade , e Sena-
do nað reconheceria outro Rei , fe-
nað ao Meftre de Aviz.
Efte Principe , por todas as fuas
acções a titulo juto chamado de Boa
me-
252 Hisronia GERAL * -::
Era vulg. memoria , já mais quiz confentir ;
que na fua prefença fe trataflem eftas:
materias , para que o-reípeito della;
nað perturbafle a liberdade dos que.
tinhaô voto deliberativo. Elle fe fa.
tisfez de compromettet todas as ra-:
zões do feu direito á Eloquencia do.
Doutor Joaô das Regras, Orador cé-
lebre «. Jurifconfulto profundo., ho-
mem excellente , dotado de arte, e.
de força, bem vifto nas Leis,, de que.
fe faberia valer para firmar na autho-;
ridade dellas a precifaõ jufta de eleger.
hum Rei, que defcendefle das Prin-
cipes , que antes reináraô em Portu-,
gal, Nós vamos a ouvir a fuftenta-
çaô do Direito do Meftre de Aviz D.
Joaô à Coroa de Portugal nefta ?
.ORACAÖĞ
Do Doutor Foað. das Regras” recita-
da na primeira Secçaô das Cortes
E de Coimbra.
vp Fidalgos, honradas pef-
foas , que infpiradas por Deos aqui
vos
DE PORTUGAL, Liv. XxX. 253
vos ajuntaftes.; para com o feu foc- Em vulg.:
corro tratarmos huma: -das materias
mais importantes, que ‘tern fobre Nós
attentos os olhos de todo o imundo :
“Tratarínos: de huma guerra formida-
vel , que nos ataca : refolvermos fe
por morte do Rei D. Fernando , ul-
timo. Varað. dos noflos Monaicis. pri-
mitivos 4 ficou o Throno vago, fað
os dous. pontos altos , que vós vin-
des debater ; e fobre'que- eu efpero
fagais a jaftiça de me ouvir. Eu nað
rme contraivei fómente a elles para os
feparar e difcorrer com 'divifað. Eu
abraçarei em hum todo ; quanto vós
defejareis advertir, e da producçaõ
das minhas provas tirateis tað claras
as deducções , que defterradas as dú-
vidas » fique : facil conduzir-vos ao fim,
para que vos congregaftes , fem o ef:
crupulo de teres as decisões por mal
penfadas pela falta de fer advertidos.
:- A efes que entendem nað ferad
válidas eftas Cortes, por nað afiftirem
nellas. os: Procuradores: das Cidades,
e Villas , que tomáraô o partido de
Caflella : Eu devo fómente lembrar-
{í ` lhes,
2$4 . HISTORIA Gear
Era vulg. lhes, que o Conclave he legitimo, è
canonica a eleiçgað do Papa , ainda |
que a ella nað eftejaô prefentes, nem
votem todos os Cardeaes. |
Que a Coroa efeja vaga , Nós
© vemos , porque ninguem a poflue.
' Por iflo a pertendem o Rei de Caf- .
tella ; .fua mulher a Infante D. Bri-
tes; os Infantes D. Joaô , e:D. Di-
niz, pertendidos legitimos de el Rei,
D. Pedro, e de D. Ignez de Caftro.
Affecta o Rei de Caftella o fen direi-
to por fer filho de D. Joana , e D.
Fernando de D. Conftança, ambas fi-
Jhas de D. Joað Manoel, Principe de
Vilhena, e elles primos. com irmãos,
Mas , Senhores, quem deu direito a
D. Joað Manoel fobre a Coroa de
Portugal ? Ainda que elle o tivefle,
que juítiça confente , que a linha mu-
lheril , na fucceflaó de hum Reino 5
preceda á dos Varões;, que exitem
-defcendentes dos que antes o pofluiad?
Hum Reino tem a natureza de hum
Morgado , e as Íucçelsões de ambos
faô conformes. SE do à
r +
DE PORTUGAL, LIV. XX. 265
o A Rainha D. Brites nos podia fa- Era vulg.
ger efpecie , como filha do ultimo
Rei D. Fernando. Mas vós nað def-
* terrais todas. as imaginações , que ella
vos póde caufar, pela conftante cer-
teza de fer huma efpuria , nafcida de
matrimonio nulo ? Vós ignorais , que
a Rainha D. Leonor foi cafada com
Joaô Lourenço da Cunha, de quem
teve huma menina, que morreo logo,
e a Alvaro da Cunha, que alli eftá
prefente ? Vós nað fabeis , que ella
enganou a el Rei D. Fernando ; dizen-
do , que Alvaro da Cunha nað era feu
filho ; mas da fua criada Elvira, e de
Loupo Dias de Soufa: que Joa6 Lou-
renço nunca a conhecêra , e que o
Rei como enfeitiçado fe gabava , de
que a achára virgem? Vós tendes al.
guma dúvida ,. que Joad Lourenço da
Cunha, outro dia morto em Lisboa ,
declarou á hora da morte, que Alva-
ro da Cunha era feufilho, e que co«
mo tal o deixou por herdeiro de to-
dos os feus bens? Vós naó tendes hu-
ma fciencia certa , que fem embargo
de Joaô Lourenço fer parente 1 D.
E eo- ,
256 HistoRIA'GERAL
Era vulg.. Leonor em grão ri que elles
foraô 'difpentados pela Sé Apoftolica *
Difpenía y que teve em feu poder O
Coide. velho tio de:D. Leonor, e que
muitos dos que eftais prefentes a vik
tes com os vefios'olhos? |
* Nee cafo o, e confummado. k
matrimonio ; nað podia: D. Leonof
receber outro marido em vida do pris
meiro ;:é por confeguencia he efpuria
a Rainha D. Brites, filha de D. Fera
nando. “Além difto , ella naõ póde her-
dar: pela rotura: do “Tratado 'matrimos.
nial. -qüe tem força de Lei. - Ella , e
feu» márido: promettérad.., e jurárað
nað- entrat armados:em Portugal, nem
pertenderem a governo do: Reino, em
quanto nað tiveílem filhos? que fazen
do -o contrario perderiað:-o direito á
herança; e fe: fugeitátağ a- taes penas.
pecuniafias ., que. fe-houveffem de ap
pagar , nad0 faria6:,: vendendo toda:
Caitella duas vezes: Pois: qual he: de:
vós o que:ignora, ''que.eltes Reis,
antes de terem fuccefað , pertendérad»
o: Governo: da nofi Monarquia ; ena
tráraô nella cam. -maő armada ; e nos:
Saca fia
EE pi ci no OP y TS pas NI É
-
DE PORTUGAL, LIV. XX. 257
fizeraô guerra tað cruel, como eftaõ Era vulg.
mudamente publicando as mefmas pe-
dras das noflas Praças? Depois deftas
razões, ponderai fe priva, ou nað da
fucceflaô de Portugal ferem os Reis
de Caflella Scifmaticos, Fautores do
Anti-Papa , e fentenciados como taes
pela Santa Sé A poftolica.
— Os Infantes D.Joad, e D. Diniz
faô os voflous maiores obftaculos: vós
por elles vos moftrais feníiveis; eu o
creio , por que vejo em muitos de
vós huma commoçad terna; mas ella
nafce de huma preoccupaçao , que
fendo defterrada , mudareis de fenti-
mentos. Vós eflimais elles frutos pro-
duzidos de hum matrimonio legitimo,
He engano; que o Rei D. Pedro naô
recebeo por mulher a D. Ignez de
Caftro. Elle fim jurou o contrario;
mas com providencia de quem tudo
governa, que declarando o anno, dii-
fe lhe naô lembrava o dia. Que fal-
ta de memoria tað eftranha no nego-
cio mais importante do homem! Qual
de vós , os que vos ligalles com o
matrimonio, fe efquece da dia do feu
TOM. V. R IC-
258 Historia GERAL
Era vulg. recebimento ? Eltevad Lobato, que
foi huma “das teftemunhas , que jurá-
rað no Summario do Rei D, Pedro,
dife , que elle fe recebêra no primei-
to dia de Janeiro: O dia em que o
anno principia : Dia de Felta taô fo-
lemne , unida á do dia de voda , po-
deria haver quem o rilcafle da me-
moria? Em vida del Rei D. Affonfo,
póde atteftar Diogo Lopes Pacheco,
que me ouve , como mandando per-
guntar por elle a feu filho fe eftava
cafado com D. Ignez para a eftimar
por fua nora ; e elle o negou conf-
tantemente.
Nem fe diga , que efta negaçaõS
foi em D. Pedro temor reverencial;
porque depois de lhe faltar o motivo
para elle na morte de feu Pai ; de-
pois de eflar reconhecido Rei, quan-
do ninguem lhe podia obllar as fuas
refoluções: Elle deixou pafiar mais de
quatro annos fem fazer público o per-
tendido recebimento de D. Ignez de
Cafiro. Se o Reino ignora os moti-
vos de el Rei D.Pedro dilatar tanto
efta declaraçaô; eu vos faço faber a
da ia
— mm
DE PORTUGAL, Liv. Xx. 259
todos, que proveio delle applicar en- Era vulg.
tað os officios mais fortes com o Pa-
pa , para que lhe legitimafle os fi- >
lhos; e porque o naô pode confeguir,
rompeo a fua paixad em dar o annun-
ciado juramento.
Mas cafo negado, que D. Pedro
recebefle a D. Ignez , o matrimonio
era nullo por caufa do parenteíco dos
contrahentes em grão prohibido. To-
dos vós fabeis, que el Rei D. Pedro
era neto de D. Sancho IV. de Caftel-
“Ja, eD. Ignez. bifheta do mefmo Rei,
filha de D. Pedro Fernandes de Caf-
tro, primo em fegundo grão do Rei
D. Pedro. Depois do parenteíco de
confanguinidade , elles contrairaô o
de affinidade , quando D. Ignez ele-
vvu da pia bautifmal hum dos filhos
do Infante. Efe acto pertende annular-
fe com a razað frivola , de que D.
Ignez nað fez tençað de fer Madri-
nha. Efta efcufa ferá boa para o foro
interno ; mas para o da Igreja, que
he aquelle por onde fe deve julgar a
validade do adto ; ella foi verdadeira
Madrinha , e como tal deve fer jul.
R ii ga-
260 Hisroria GERAL
Era vulg. gada. Neftes termos o noflo Throno
eá vago , e os Principes, que tem
direito a elle, todos faô baftardos.
Os dous Infantes D. Joaô, e D.
Diniz , ainda que foflem legitimados,
“para nós feria duro confeflur-lhes a
preferencia. Elles nað eftaô decahidos
do direito à Coroa por fe terem re-
fugiado em Caítella, e abandonado o
Reino ? Elles nað tomárað as armas
contra o feu Soberano , e nað fizerad
hoflilidades fobre Nós , que confer-
vamos a memoria bem freíca , vivo
o refentimento, e a dor dos males ,
que elles caufárað à Patria? A que
Portuguez naô he odiofo o Infante
D. Joaô depois da morte barbara,
que elle deo a fua primeira mulher
D. Maria Telles de Menezes? Acçad
indigna de hum Principe , que por
dever manifeftar o caradter da Reli-
giaô, e da honra, e conduzir-fe por
modo contrario: ella fó baítava para
dar a D. Joaô a exclufiva da Coroa.
Acabou foaô das Regras de fallar a
primeira vez, fem dizer palavra ref-
peéiiva ao Principe Regente, ec o =
| e
DE PORTUGAL, LIV. XX. 261
fé feguio à fua Oraçad, dará materia Era vulg, `
ao Capitulo feguinte.
CAPITULO VIII.
Continuaçaô das Cortes de Coimbra até
. Jer acclamado Rei o Principe Rc-
gente D. Joaô.
Ev nað me metterei a decidir as
vazões, por que hum efpirito tað illu-
minado como o de Joaô das Regras,
a quem nada do mais forte, e mais
fubtil efcapou na fua Oraçaô vafa,
que eu contrahi, deixou pallar huma
prova de tanta importancia , como
he a das Leis fundamentaes do Rei-
no , promulgadas nas Cortes de La-
mego , que o Rei Filippe II. tirou da
Torre do Tombo, e levou para Caf-
tella, nas quaes diz o Rei D. Affonio
Henriques. « Se a Filha do Rei defpo-
» far Principe , ou Senhor de huma
» Naçaô eltrangeira, ella nað ferá re-
» conhecida Rainha, porque Nós nað
» querens, qu: os noflos Póvos fe-
» jaô obrigados a obedecer a Rei,
» que
25% HISTORIA GERAL
Era vulg: y que nað nafcer Portuguez. » Como
quer que feja, a peroraçaô de Joad
das Regras moveo a todos para darem
huma exclufiva unanime às pertenções
dos Reis de Caftella; julgarem a Joaõô
Lourenço da Cunha por legitimo ma-
rido de D. Leonor Telles, e ella por
Amiga do Rei D. Fernando. |
Mas os applaufos com que fe ce-
lebrava a pureza , e força de razões ,
de que efle Orador eloquente fe fervi-
ya, nað impediraô a Martim Vaíques
da Cunha moftrar a fua impaciencia
a reípeito da exclufad dos Infantes D.
Joaô, e D. Diniz. A fua firmeza igua-
lava a robuftez do feu genio , e a re-
Gtidaô das fuas intenções. Elle fe le-
vantou no meio da Aflembléa, e fa-
zendo acçaô para fer ouvido , difle
de hum tom forte: Nós devemos fa-
zer a guerra a Caítella em nome do
Infante prelo: o Regente, ainda que
- illutre no fangue , diftinto pelo mere-
cimento , relpeitavel pelo valor, nað
hade fer preferido a feu irmaô , a
quem a Coroa pertence: Nós nað po-
demos paflar avante fem o ouvir, nem.
to-
DE PORTUGAL, LEIV. XX. 263
tomar a fua fahida do Reino por hu- Era wilg.
ma exclufiva do Throno. Que moti-
vos, Senhores, o obrigáraõ a deixar
å Patria? Aquelles que o direito con-
cede a todos os homens; que foi el-
capar-fe à cólera da Rainha D. Leo-
nor. Bem inítruidos eftais , em que
ella traçava a fua ruina , e que elle
fem a retirada , nað podia efcufar a
morte : Em fim , Senhores, vós po-
dereis fazer o que quizeres; ele-
ger Rei a quem vos parecer : Eu O
fervirei : Eu o ajudarei a defender o
Reino : Eu darei por elle a vida:
Mas, que eu confinto, que o Regen-
te feja Rei áface de feu irmað , ainda
que prefo, eem Caftella , iflo nað di-
rei eu nunca. |
D. Nuno Alvares Pereira , que
nað pode conter-fe fem atacar a Mar-
tim Vafques com argumentos de fol-
dado: Porque a Secçaô fe concluia fem
ficar o Regente acclamado , veio ao
Paço , e o achou fatisfeito pela boa
intençaô de Martim Vafques para com
o Infante D. Joað. D. Nuno , que
nað podia tambem diflimular a fua
pà-
264 HISTORIA GERAL
Era vulg. para com elle, lhe dife, que louva-
va a dilataçaô do feu animo Real;
mas que foubeffe, que nas Cortes nað
havia outro contra elle para lhe emba-
racar o fer Rei, fenað Martim Vaf-
ques da Cunha: Que elle vinha pedir-
lhe licença para o defpachar deprefla,
antes que lhe fizefle mais ferviços. O
Regente , que nas vozes, e no fem-
blante eftava vendo o coraçaô de D.
Nuno , com ternura amorofa , e ri-
gorofo aperto lhe impedio fe embara-
çafe com Martim Vaíques. Farei o
que me mandais, refpondeo D. Nuno,
fe elle nað fe moltrar foberbo ; que
fe o fizer, como hei de eu acabar com
o meu coraçao que o foffra ?
Alguns diziaô, que Joaő das Re-
gras nas fuas razões articulára coufas
novas, que elles até entaô nað tinhaô
ouvido, e dellas fe deviað dar próvas
de convencer para elles fe deliberarem
a votar. Por eila razaô tiverad com-
miflaô do Corpo das Cortes os Bifpos
de Evora, e do Porto para tirarem
bum Summario de teftemunhas fobre
aquelles factos , em que juráraô Dio-
| go
DE PORTUGAL, LIV. XX. 265
go Lopes Pacheco, Vafco Martins Era volg.
de Soufa , Vafco Pires Bocarro , e
Gil Martins Cochofel, que ateftárað
os cafos vulgarmente nað fabidos, que
o Doutor Joaô das Regras articulára.
Feita efta diligencia , fe procedeo a
fegunda Aflembléa , aonde foi lido,
e approvado o Summario, que tirárad
os Bifpos , e depois tornou a orar
Joað das Regras com ete fentido :
| Senhores, naô ha homem algum
no mundo, que deixe de fer obrigado
a moftrar-fe parcialifta dos ditames in-
“genuos da razaô. Efte movel univerfal
foi o unico, que me compelio a pro-
pôr-vos, quanto ella Aflembléa refpei-
tavel já teve a bondade, e me fez a
honra de ouvir. Naô baftou a minha
verdade, a minha folidez, as próvas
de convicçaõ para alguns de vós defter-
rares as imaginações da legitimidade
dos Infantes D. Joaô, e D. Diniz, que
lhes confere o direito indifputavel á
fucceffaô do Reino. Ora , Senhores, fa-
bei, que em vida de feu Pai, o Infan-
te D. Pedro ( Eu vos declaro o que
nað quizera, mas eu devo fazello )
pero
í
266 Hisroria GERAL
Era vulg. pertendeo difpenfa para calar com D.
Ignez. Seu Pai o prevenio, efcrevendo
com cautela ao Arcebiípo de Braga D.
Gonçalo Pereira , que entaô ellava na
Curia, para que divertifle o Papa de
conceder ao Infante a graça , que pe-
dia, que com efleito lhe foi negada.
Depois de mortos o Rei D. Affon-
fo, e D. Ignez de Caftro; D. Pedro,
que fe entendia nað cafado, e baftardos
feus filhos, defeiando habilitallos para
herdarem a Coroa , mandou Giraldo
Elteves á Curia follicitar do Papa Inno-
cencio VI. a legitimaçaô dos Infantes,
em que o Papa nað conveio. Pois fe
o mefmo D. Pedro teve por invalido o
feu cafamento com D. Ignez, e feus fi-
lhos por illegitimos, a qual de Nós he
licito negar tal verdade? Como os po-
demos confiderar habeis para levarem
a Coroa por herança? Como nað ha-
vemos declarar o Throno vago, e ele-
ger para elle hum Principe digno?
Tambem devo defabufar aos que
entendem, que ao cafamento de D. Pe-
dro com D. Ignez precedeo difpenfa
dos parenteícos, Nað houve mais dif-
| pen-
!
>: Te =a = ~ E e ur
oe da Ee
o “a
<=
mad
—
—
=—.
DE PORTUGAL , LIV. XX. 267
penfa, que aquella que impetrou D, Era vulg.
Affonfo ao Papa Joaô XXII. para o In-
fante D. Pedro cafar com alguma Se-
nhora {fua parenta. Euvos corro o vea
a ee myíterio. A tal difpenfa fervie
para o cafamento do Infante com D.
Branca. Quando depois em virtude da
mefma recebeo a D. Conftança, foi taô
picante o efcrupulo do Arcebiípo de
Braga, que nað quiz afhiftir ás bençãos
matrimoniaes. Do remorfo do Arcebif-
po nafceo o da confciencia de D. Pe-
dro para nað ter por válido o terceiro
cafamento , para o qual nað tinha mais
difpenfa que a primeira. Por iflo elle
a pedio depois, enaô alogrou; inf-
tou pela legitimaçao dos filhos, e
nað a confeguio. Aqui tendes nefte
pergaminho a inftrucçaô Real, que D.
Pedro deo ao Embaixador, aflignada
por Gomes Paes de Azevedo , e por
Metftre Affonfo, ambos do feu Con-
lho: Vede-a , examinai-a, conferi-a,
e vos defenganareis, que D. Joaô, e
D. Diniz faô dous baftardos.
Com efte difcurfo intrépido , fa-
canhofo , arrojado , Joaô das Regras
der-
268 Hisroria GERAL
Era vulg. derrotou entaô a verdade conftante da
legitimidade dos dous Infantes. Como
fentio toda a Aflembléa aballada, es-
forçou o punho , apertou a efpada ,
e com golpes de Eloquencia para to-
dos os lados, fez valer fobre todos o
merecimento do Meftre de Aviz Re-
gente `; entendendo talvez lhe bafta-
vað dous intrumentos ; a fua lingua
lo lhe dar a Coroa; a efpada de D.
uno Alvares Pereira para a fuftene
tar. Esforçou-fe mais a fua dexteri-
dade depois que toda a Aflembléa,
entrando Martim Vaíques da Cunha
com o feu partido, aflignou hum acto
folemne de Cortes, em que fe declara-
vas que o Throno eftava vago , e que
"os Eftados do Reino podiaô livremente
eleger hum Rei, que os governafle. Fir-
mado , e lido ete Decreto de decifad
fobre o ponto mais eflencial, o Dou-
tor Joaô das Regras com efpirito conf-
tante, e voz mais firme , afim con-
tinuou o feu Difcurío.
Pois, Senhores, Nós temos a elei-
çað livre; mas o Reino he heredita-
rio, e a Coroa deve paflar a hum
Prin-
DE PORTUGAL, Liv. XX. 269
Principe do fangue Real. Já Nós dé- Era vulg.
mos a Regencia ao Meftre de Aviz.
Agora quem nos impede a cingir-lhe a
Coroa ? Além das vantagens do feu
nafcimento auguíto , elle poflue as de
grande Capitaô , de fábio Governador,
de que elle tem dado tantas próvas
inconteftaveis na defenfa, e na admi-
niftraçaô do Reino depois da morte
de D. Fernando até agora, Em vað fe
nota a efte Principe nað fer legitimo :
Defeito, que comprehende a todos
os que fad pertendentes á nofia Co.
yoa, Elle defeito elle nað o tem fe.
Jizmente reparado na fua Pefloa por
huma virtude verdadeiramente real ?
Elle nað o faz brilhar por huma co.
rage geralmente reconhecida por ine
vencivel ? Elle nað o caragteriza lumi-
nofo por hum grande número de qua.
Jidades eminentes., de que Nós todos
fomos teftemunhas irreprehenhveis ?
Os ferviços que elle tem feito ao El-
tado faô tað grandes , e tað conhde.
raveis, que eu nað fei poflaô ter ou-
tra recompenfa , fenað a Coroa. Elle
he hum Principe taô digno de a levar,
; ÇOs
270 Historia GERAL
Era vulg. como tem fido capaz de a defender.
Efta fó razaô he baftante para nos de-
terminar a todos a acclamallo.
Senhores, Nós neceflitamos hum
Rei para a guerra , que nos he ine-
vitavel , e devemos fuftentar fe que-
remos liberdade : Fium Rei do cara-
Ger do Regente , que fabe governar
em Principe prudente, féro ,, genero-
fo, e magnanimo : Hum Rei como
elle, forte na guerra , fabio na paz ;
nað hum fraco , hum indeterminado 5
como D. Sancho II., que o Povo de-
tronou por caufa da fua infufciencia ,
e pôz a feu irmaô em feu lugar:
Hum Rei incanfavel na applicaçaô
como elle; nað outro , que imite os
princípios do governo de D. Aflonfo
IV., que fe nað fe moderára na pre-
ferencia, que dava aos divertimentos
da pefloa fobre os cuidados do Efta-
do , elle teria o meímo deftino de
D. Sancho. O Meftre Regente tem
huma qualidade para reinar , que naô
fe encontrará em outro Principe. Elle
conhece a fundo o genio dos Portu-
guezes, e fabe a lingua popular : Qpa
DE PORTUGAL , Liv. XX. 271
lidade neceflaria em hum Soberano,
que ha de dar audiencia aos feus Pó-
vos, e mandar os feus foldados. Que
gloria para Nós a de elegermos hum
Rei naícido entre nós ; da nofla Na-
çaô; do noflo Paiz; que falla a nofla
lingua; que more em Lisboa, donde a
cada inftante faiað as ordens para o
reto dos Eftados !
E quanto merece o noflo Prin-
cipe pela fua modeflia incomparavel !
Aqui elað prefentes muitos, que di-
gendo-lhe depois da abertura deftas
Cortes , que elle poderia fer Rei,
reífpondeo cheio daquella equidade
natural, que já mais delmentio: Que
tinha irmãos, aos quaes a Coroa per-
tencia mais juftamente , que a elle,
que era baftardo, e os Infantes legiti-
mos : Que naô intentava aproveitar-(e
da fua aufencia , e fazer-le juítiça da
iniquidade com que o Rei de Caítel-
la os detinha , para lhes tirar o Thro-
no, que lhes tocava : Que bem lon-
ge de fe fazer merecedor defta repre-
henf:O, a troco da mefma vida, el-
Je defejava contribuir para o benefie
cio
Era vulg:
272 Historia GERAL
Era vulg. cio da fua liberdade , e reconhecellos
por feus Soberanos, e feus Senhores ;
Que em quanto elles nað voltav:ô ao
Reino, fe fazia hum merecimento fu-
blime de o defender em feu nome,
fem mais titulo, que o de Regente :
Que a elle lhe faltavaô todas as qua-
lidades neceflarias para reinar ; para
refponder ao fino amor , que devia
aos Portuguezes ; para fer grato ao
reconhecimento da grande opiniaõ ,
que a Patria tinha concebido delle.
Com tanto ardor, e modos tað
infinuantes, com tal forca de termos,
e nobreza de imagens proferia Joað
das Regras efte Dilcurlo pathetico,
que a commoçaô da Aflembléa já pa-
recia , que nað tolerava a retardaçaôO
de fer proclamado Rei de Portugal D.
Joaô , Meftre de Aviz, como defcen-
dente dos feus antigos Monarcas. Af-
fim ficou determinado nefta Aflem-
bléa feliz , fem dúvida, ou difcrepan-
cia de hum fó voto. O Povo de Coim-
bra , que o percebeo , antes que os
Heraldos fizefem a ceremonia da pu-
blicaçaô , elle fahia em viftofo tu-
mul-
paid On
"Te a
= NRO 2. w o a
DEPoRTUGAL, Liv. XX. 273
multo a 'moftrar o feu prazer inex-
licavel no clamor repetido : Viva D.
Tous I. Rei de Portugal: ` Tudo effeitos
da bondade com que o Principe ti-
nha cativado o efpiritos, ainda osdo
partido contrario , para que a naõ
houvefle hum fó, que deixafle de fa-
zer communs o goíto, e o applauío,
TOMV. $ LI-`
Era vulg.
L
HHHHHHHHH
LIVRO XXI
Da Hifloria Moderna de Portugal,
CAPITULO I.
Acclamaças do Rei D. Joad I. chama-
do de Boa Memoria , X. Rei de
Portugal,
Era vulg. Fa geral a complacencła da Naçað
Portugueza “pelo fim do, Interregno ,
que fe lhe fazia fenfivel : pelo defcof-
tume, e uniterfal o solto por vêr na
fua téfta hum Rei Portuguez. Tomá-
rað as Cortes de Coimbra a refoluçaõd,
que acabo de referir, de elegerem
or Soberano de Portugal a D. Joað
ere de Aviz. Era o dia de quinta
feira feis de Abril do anno de 1385
nos noflos Faftos fempre memoravel
pela liberdade , e pela gloria, quan-
do aquelle corpo veneravel veio ao Pa-
ço de Coimbra , e deo parte ao Prin-
E 3 — gi-
y
i
DE PORTUGAL, LIV. XXI. 278
cipe Regente , que Elle o havia no» Pra wig.
meado , e eleito Rei. Sem alteraçaS de
animo , e de rofto ouvio a nova da
felicidade , que tanto defejað , e arral-
ta os mortaes a tantos exceflos, pa-
ra que o feu focego fofle a próva mais
catholica da finceridade , com que rel-
pondeo á congatulaçaô das Cortes ;
` Que elle lhe agradecia as fuas
boas intenções , de que em todo o
tempo daria aos Eftados as eviden-
cias mais fignificantes do feu reconhe-
cimento ; mas que nað podia accei-
tar o cargo, que lhe conferiad : Que
elle nað ignorava o defeito com que
naícéra, e que a todos era pública a
prohflao , que feguia , e o inhabilitas
va para deixar depois delle Succeflor
á Coroa : Que na mefma guerra com
Caftella , impoflivel de nað continuar
vígorofa, encontrava elle humas taes
delicadezas , que deviað obftar-lhe a
condefcender com a vontade dos Ef-
tados ; porque a fortuna das armas era
jornaleira , e que fe elle yencefle, ou
ficale vencido do Rei de Caftella ;
Lendo vencido no eítado de Rei, o ti-
Sii nha
276 Historia GERAL
Era vulg. nha por injuriofo ; fendo vencedor na
condiçaô de Regente, o eftimaria pe-
la maior gloria : Razaô , que o eki-
-mulava a efperar a gloria, e evitar a
injuria : Que fe refolvefem a cuidar
nos meios para a guerra, e fufpendef-
fem por entaô quaeíquer outras quali-
dades de negocios.
Suftentáraô-fe fortes: os Eftados
em manter a eleiçaô, aque elle nad
fe devia elcular , quando era credito
da Patria oppor hum Rei a outro Rei,
que vencedor, ou vencido fempre fi-
cava gloriofo no motivo, que era O
da liberdade : Que em quanto ao im-
pedimento dos votos para cafar , fe
pediriaô delles difpenfa, em que nað
podia haver duvida, por fer a caufa
tað juftificada. Em fim as inftancias
dos Eftados, efpecialmente do popu-
lar., foraô taô vivas, que o Principe
teve de aceitar a Dignidade, e aMftir
em publico com todas as Devifas de
Rei ao Pontifical, que celebrou o Bif-
po de Lamego na Sé de Coimbra. Na
tarde do mefmo dia o Corpo das Cor-
tes mandou lavrar em nome de todas.
E as
DE PORTUGAL, LIV. XXI. 277
as pefloas congregadas, que as forma- Eta vulg;
vað , huma Efcritura publica para me-
moria delfta grande acçaôd, que livra-
va a Patria do cativeiro, que temia,
e que para a confervarem livre , de-
terminavad expor-fe ao furor do Rei
mais poderofo das Hefpanhas , coma
zelofos Portuguezes , em todos os fe-
culos fieis aos interefles publicos da
Monarquia. po É &
Quanto. até aqui fica referido nef-
ta Hiftoria , moftra com evidencia,
que os negocios de Portugal nað efta-
vað em huma tal fituaçaô de tranquil-
lidade , que fe houvefle de gafar o
tempo nos feítejos públicos , que fe
coftumaõd feguir a huma dominaçaS
nova. Primeiro que eftas demonttra-
ções externas do alvoroço dos ani-
mos , eftava o cuidar na fegurança
do Rei eleito no Throno pouco fir-
me , e cobrillo ás pertenções injuftas
dos feus inimigos , dos feus concur-
rentes , de nað poucos invejoíos, Eli
tes feriaô os. motivos porque o efpiri-
to illuminado do novo Monarca impe-
dio em Coimbra os excefios, em que
roms .
278 Hisroria GERAL
Era wulg. rompe o gofto, eque com a fua pef-:
foa fe ufaflem as ceremonias da inau-
guraçaôd , que antes fe pradicavad š
efperando ver o Reino vencedor para
elle entaô fe eftimar Rei. À todos deo
elle exemplo , nað perdendo inftan-
tes, de que a fi mefmo fe podeffe ar-
guir , fe dilatafle a nomeaçaô de Of-
ficiaes para a fua cafa ; de comman-
dantes para as trópas, e para as Pra-
ças, que haviaô variado de fidelidade
no tempo da fua Regencia. |
Nað deixou o Rei paflar o dia da
fua acclamaçaó, fem que os feus vaf-
fallos ouviffem, que elle nomeára pa-
ra Mordomo Mór da fua cafa, e Con-
deftavel do Reino ao Grande D. Nu-
no Alvares Pereira , que nos movi-
mentos do Interregno já mais defmen-
tira hum ponto da inclinaçaô aos feus
intereíles , que acabára de qualificar
nas prefentes Cortes. Nomeou para
Camareiro Mór a [oaô Rodrigues de
Sá ; para Repofteiro Mór a Pedro
Lourenço de Tavora ; para Copeiro
Mór a Joaô Gomes da Silva ; para
Guarda Mór a Joaô Fernandes Pache-
7 co;
DE PORTUGAL , LIV. XXI. 2979
có; para Veador a Fernando Alvares Era vulgi
de Almeida, com o officio de Clavei-
ro Mór de Aviz; para Monteiro Mór
a Lopo Vaíques de Caftello-Branco ;
para Falcoeiro Mór a Joaô Gongal-
ves; para Porteiro Mór a Lourenço
Annes; para Eftribeiro Mór a Garcia
Aflonfo ; para Apofentador Mór a
Payo Lourenço; para Efcrivað da Pu-
ridade a Affonfo Martins ; para Ef-
crivaô da fua Camara aGomes Lou-
yenço de Gomide; para Meftre-Sala a
Egas Coelho; para Paceiro a Affon-
fo Gonçalves; para Saquiteiro a Joað
Rodrigues; para Efcrivaô da Chancel-
laria do Reino a Gonçalo Pires Mas
lafaya ; para Meirinho Mór a Joaô
Freire de Andrade; para Védores da:
Fazenda a Joaó Aflonfo de Alemquery
ea Alvaro Gonçalves de Freitas, com
todos os mais empregos menores da
Cafa Real.
Q célebre Joaô das Regras foi
criado Chanceller Mór do Reino : Car-
g0, que mais era recompenfa devida
á habilidade profunda defte Magiftra-
do , que teftemunho grato do ve
y nhe-
280 HISTORIA GERAL
Era vulg. nhecimento do Rei. De todas as Di~
gnidades , que elle tinha á fua difpo-
fiçaô, para fi nað refervou mais, que
a de Meltre da Ordem de Aviz. Para
o Commandamento do exercito, de-
pois do Condeftavel D. Nuno , no-
meou para Marichal a Alvaro Perei-
ra; para Alferes Mór a Gil Vafques
da Cunha; para Capitað Mór do mar
a Affonfo Furtado de Mendoça ; pa-
ra -Almirante a Manoel Peçanha; pa-
ra Anadel Mór dos béfteiros de caval-
lo a Alvaro Annes de Cernache , e
dos de pé a Eftevað Vafques Filippe.
Depois deftas promoções feitas com
confentimento dos Eftados, elles per-
fuadiraô ao Rei criafle hum Confelho
ambulante , que o acompanhafle nas
fuas jornadas , do qual o Doutor Joað
das Regras foi eleito Chéfe. Naô fe
eífqueceo o Rei do fervor com que
Martim Vafques da Cunha promovê-
ra os interefles do Infante D. Joað ,
e o remunerou com a nomeaçaô de
hum dos feus Confelheiros, para-mof-
trar, que elle eftimava nos homens,
nað as paixões fem difcernimento ;
a. mas
DE PORTUGAL, Liv. XXI. 281
mas a equidade, e juítiça das fuas in- Era vulg.
tenções.
Grandes foraô as vantagens, que
tirárad os Portuguezes de reconhece-
rem efte Rei na fituaçaô mais critica
dos feus negocios. Quando nað fe déf-
fe outra , ballava ficarem os faccio-
narios de Caítella , e as criaturas da
Rainha D. Leonor fora de eftado de
inquietar o Governo ; fem relações
com a Corte, nem cabeças no Rei-
no; que houveflem de fuftentar os el-
piritos da revolta. Bem o moftrou,
como eu o difcorro , a agitaçað dos
Póvos, que depois de receberem com
o maior alvoroço a noticia da accla-
maçaô do novo Rei, todos pelos feus
Emiflarios recorrêraôd a Coimbra, já
como fonte da eftabilidade da fua for-
tuna, para fó da peflvua do Soberano
receberem as ordens, e as mercês.
Foraô muitas as que o Rei fez
aos Lugares , que fempre feguirad a
fua voz. Lisboa, que fobre todos fe
diftinguíra , e agora dava novas pró-
vas do feu fervor nas bem ponderadas
lembranças , que lhe propunha para a
con-
282 Historia GERAL
Era vulg. confervaçaS futura : Elle a iltuftrou:
com o titulo de Corte, e de Refiden-:
cia ordinaria dos Soberanos ; que nel-
la aMftifem os Tribunaes Supremos
para prompta expediçaô dos negocios
refpectivos às economias do Eítada.
Entre outras graças concedidas aos
mais Póvos, fez geral a que elles lhe
pedíraô , na aboliçaô das Cartas de ca-
famento , que antes coltumavaõ pal-
far os Reis, efpecialmente D. Fernan-
do , em virtude das quaes as filhas
erað tiradas de cafa de feus Pais , e
cafadas contra fua vontade , ordina-
riamente com pefloas defiguaes : Idéa
perniciofa , que abatia as familias,
que já erað , para exaltar as que ha-
viað fer.
Confiderava-fe o Rei D. Joað na
idade robufta de vinte e fete annos ,
apto para fopportar o trabalho de hum:
Governo tað pefado, como era o do
Reino , que os Póvos acabavaô de
lhe conferir. Como as fuas primeiras
acções já lhe tinhaó dado entrada até
ao veítibulo do Templo da Honra ;
elle queria fobir mais alto com paf-
fos
DE PORTUGAL, Liv. XXI. 283
fos mais firmes. Para fe prevenir fem Era vulg.
perder tempo, deípedio os Procura-
dores, que vierad ás Cortes; e por-
que antes de voltar de Coimbra a Lis-
boa queria emprehender algumas ac-
ções, que moftraflem naô eftava nel-
le ociofa a Coroa: Difcorreo , que
todas as Praças do Reino nað tinhad
feguido o exemplo da Capital, e ha-
via algumas, aonde os feus habitado-
res fomentavad o efpirito de rebelliad
entre fi. Elle eftimou por chéfe acçað
digna da Mageftade nað differir a ef-
tes revoltofos o fazer-lhes conhecer
pela força, e pelas armas quaes erað
os feus deveres, ou para lhes dar lu-
gar de fe arrependerem, ou para el-
le juítificar os motivos de os caftigar,
já benigno, e já fevéro.
Para efte effeito refolveo ir em
peffoa á Cidade do Porto, e para dar
calor 4 empreza de fubmetter as Vil-
las de Entre-Douro e Minho, que ef-
tavad por Caítella , e fazer conduzir
mantimentos deftas Provincias para
Lisboa, que em fi, e nos feus redo-
yes padecia grande falta pelos eftra-
6053
cat
284 Hisroria GERAL
Era vulg. gos » que caufárad os inimigos nos
eus campos na campanha paflada. El-
le fe preparou para efta jornada com
a mercê da aboliçaô das fizas por to-
do o Reino : Declarando, que para
os gaftos da guerra queria receber dos
feus vaffallos os donativos gratuitos ,
com que fabia lhe nað haviaõ faltar ,
como elle acabava de experimentar
no avultado , que lhe fornecêrad as
Cortes de Coimbra. O noflo Fernað
Lopes trata com extenfaô os applau-
fos , as feítlas em mar, e terra, a
magnificencia da pompa , o alvoroça
dos corações , com que o Rei D,
Joaõ foi recebido na fua fiel Cidade
do Porto, que tinha dado tantas pró-
vas de zelo no feu ferviço ; agora do-
brado , porque já o via Rei.
Nefta Cidade lhe beijou a mað
D. Leonor de Alvim, mulher do
Condeftavel D. Nuno Alvares Perei-
ra, e o Rei para lhe moftrar a diflin-
ça , que fazia de feu marido , lhe
remunerou o obfequio com a mercê
do fenhorio das terras de Barrofo ,
do Caftello de Monte-Alegre e
[em
co o "o tão Gm
DE PORTUGAL, Liv. XXI. 285
Reguengo de Bafto , dos Campos de Era vulg,
Boilhe, e de Pena, com todas as fuas
juriídicções , e direitos. Da fua parte
o Condeftavel , tanto nað quiz de-
morar o reconhecimento ao feu Prin-
cipe , que como determinava ir pedir
os foccorros do Ceo ao fepulchro de
Sant-Iago em Galliza para entrar nos
perigos da guerra, que efperava: Re-
folveo fazer a jornada de modo, que
della recolhefle fructos o real ferviço.
Impediraó-lhe as correntes do Minho,
e a falta de barcos a paflagem para a.
fua gente ; e a entrada em Galliza;
mas na Provincia fe lançou fobre o
Caftello de Neiva, que eflava por
Caftella, e levou de aflalto com mor-
te do feu Alcaide Mór. Com a mefma
felicidade tomou a Villa de Viana,
que elle teve por comprada a preço
caro, porque huma pedra arrojada do
“muro lhe matou hum bravo aventu-
reiro, a que a Hiftoria nað dá nome,
nem tece outro elogio , que o de di-
zer era o homem mais valente das
Hefpanhas. O eftrondo deftas conquif-
tas feitas fobre a marcha, lhe abrio
as
286 Hisroria GERAL
Era vulg. as portas de Villa-Nova de Cerveira,
MonçaS , Caminha, e outros Luga-
res daquelles contornos.
Ainda que eftes golpes devia6 in-
timidar as outras Praças , que eftavaôd |
na fugeiçaô de Caftella; Braga, Pon-
te de Lima , e Guimarães os tiverad
por paflageiros , e fe preveniaô para
nos refiftir. 'A melma razaô das con-
~ quiftas do Condeftavel na Provincia,
` eda affiftencia do Rei na Cidade do
Porto, foi a materia, de quê fe fer-
vio Ayres Gomes da Silva , Alcaide
Mór de Guimarães , para fazer huma
defenfa vigorofa em obfequio ao Rei
de Caftella. Viviað entao na Praça
Affonfo Lourenço de Carvalho, Fidal-
go rico, e feu cunhado Payo Rodri-
gues, que nað podiaô occultar a fua
inclinaçað ao novo Rei , e por ella
defcahiraô tanto do Alcaide Mór, que
naő lhes confentia o ufo das armas ,
nem fahirem de cafa acompanhados
dos feus criados. Soube o Arcebifpo
de Braga o defgofto deftes dous Fi-
dalgos com o Commandante , e infi-
puou a el Rei, que elcreveíle a ap
o
DE PORTUGAL , LIV. XXI. 287
fo para lhe vir fallar fóta de Guima- Era vulg.
sães em alguma das fuas quintas ; que
lhe feria facil, hum homem de tan-
to valor com feus parentes , dar-lhe
“entrada em Guimarães. Aflim o fez
el Rei , que fahio do Porto , como
RR hia á caça, e ajutou com Af-
onfo Lourenço o modo, a noite, e
a hora de o fazer Senhor daquella im-
portante Praça. |
Como Aftonfo Lourenço tinha a
liberdade de ir , e vir às fuas fazen-
das , com tanto que andafle fó; na
tarde do dia premeditado para a em-
preza, difle ao guarda de huma das
portas , que villa a indecencia com
que o Alcaide Mór o tratava de lhe
naô permittir o fervifle hum criado ;
que o acompanhafle elle até fóra , e fi-
cafle advertido para que na madruga-
da feguinte , quando feu cunhado o
avifafle , lhe abrifle a porta , porque
lhe era necefiario recolher-fe cedo da
quinta aonde hia. Nada defta propof-
ta fe fez reparavel ao porteiro , que
eftava bem cokumado a outras feme-
Jhantes de Aflonfo Lourenço. Elle cg
Mo el-
288 Historia GERAL
Era vulg. efperar aquella noite a el Rei, que
marchava do Porto com a fua gente ,
e no maior filencio della o veio guian-
do ás vilinhanças da Villa. Eltava á
lerta Payo Rodrigues efperando a ho-
ya ajuíftada, em que avifou o guarda
abrifle a porta para entrar feu cunha-
do, e hum carro, que elle mandava
diante. Os do campo , que vigiavad
com o feu Rei na frente; apenas foi |
aberta a porta, Payo Rodrigues ma-
tou o guarda; elles mettêraôd de galo-
pe , eentráraô a Praça com grandes
vozes de prazer, que fe fez commum
a todo o Povo.
Ayres Gomes, com os que pode
do feu partido , fe recolheo ao Callel-
lo , refoluto a deffendello até a ulti-
ma extremidade. Ataques fortes , e
promeflas de mercês nad movêraõ a
conftancia delte Fidalgo para abando-
nar o partido eftranho, que abraçára,
Elle affegurou , que fem ordem de
Caftella nað fe entregava, por fer ho-
mem incapaz de romper o juramen-
to de fidelidade , que lhe dera. Trin-
ta dias fe lhe concedéraôd para avifar
aquel-
DE PORTUGAL , Liv. XXI. 4289
aquelle Monarca, a quem Ayres Go- Era'vulg.
mes mandou ‘feu genro Goncalo Ma-
rinho , que o achou occupado em
ajuntar ó formidável exercito , que
deftinava para a nofla conguifta. De-
pois de louvar a firmeza ide Ayres
Gomes , lhe ordenou: entregafle o
Caftello , que nað podia foccorrer fem
deftacar gente do exercito, que havia
marchar a maiores emptezas : que fu-
ito Portugal 4: Guimarães feguiria ò
méfmo defino : e que' ellecom a fua
familia fe récolhefle a Caftella , aon-
de acharia promptos os premios, què
merecia hum Portuguez tað honrado,
Recebidas eftas ordens, Ayres Gomes
entregou o Caítello; retirou-fe da Pa-
tria para morrer na jornada, e feu geni
ro Gonçalo Marinho ; qué conduzio
a familia a Toledo, perdeo a mulher,
que era fobrinha do Arcébiípo D. Pes
dro Tenorio , e a tirou ao marido
com o pretexto, de que o matrimos
nio- eftava nullo : Golpe , que Deos
defcarregou no Marinho: pára o fazer
fenfivel á infpiraçao de abandonar o
mundo , tomar o habito na Religiad
ZOM.V. r de
290 Historia GERAL
Era vulg. de S Francifco , aonde depois de vida
proba, acabou com morte de Juíta. -
CAPITULO IL
Das mais acções, que obrou o Rei D.
Foaô 1. nas Provincias do Mi- - |
| -uho, e Beira.
E REM de Guimarães <á
meíma pefloa do Rei;:os Portugue-
zes com elle na fua téfta., tanto ella |
vita animava os fequazes da liberda- |
de , quanto aquella tomada fez deçahir
os efpiritos dos que. promoviaô con- |
tra ella.. Todas as Praças do Minho |
treméraô aos golpes , que de huma
parte daya a eípada do Rei, e da on-
tra delcarregava a do Condeftavel. Os
de Braga, que dos principios da an-
tiga Luhtania fempre fe tinhaô diftin- )
guido nas gentilezas do valor ,. e nas,
elegancias , da fidelidade : fe até agora;
foffriad violentos o jugo Caftelhano.,
baftou a vifinhanca do. feu, Rei natu-,
ral em Guimarães para. deflerrarem |
todas as hefitações , que impedem á
a e . - DA-
4
Fá
DE PORTUGAL, LIV. XXI. 2ọf
magnaniinidade os feus Ofhicios. Elles Ers vulg
tomárað as armas fem mais confelho,
que aquelle que lhe inípirava o zelo,
ou oardor; e atacando os Caftelhas
nos da guarniçaô , lhes fizeraô vêr,
que o termo da fua vida era o inf
tante, em que fahifem da Cidadella.
No eftado de prefos os dominantes,
o Povo avifou ao Rei da fua refolu-
çaô ; pedindo os foccorrefle a tempó
də abater. o orgulho dos inimigos,
antes que elles o tiveflem de fortifi-
car-fe. O Condeftavel recebeo ás mare
gens do Minho ' as ordens de vir in-
corporar-fe. com Mem Rodrigues de
Vafconcelos para ajudarem os moras
dores de'Braga.a lançar do Caftello os
inimigos. Depois de rudos combates;
o Chéfe Caftelhano capitulou a en-
trega , falvas as vidas, e liberdades. >
Quizeraó feguir o exemplo dé
Braga os'moradores de Ponte de Li-
ma , que foffriad com impaciencia
- & tenacidade com que fe fuftentava por
Caftella o Alcaide Lopo Gomes de
Lyra , Fidalgo Gallego, que o Rei
D. Fernando tanto deftinguia:, e elle
a Tii en-
292 HISTORIA GERAL >
Era vulg. entre nós fe naturalizára. Vivia na
Villa hum Cavalheiro chamado Efte»
vað. Rodrigues , que fez eítimulo pa-
ta emprehender huma acçaô grande
da indecencia com que o feu Rei -
era tratado pelo partido oppoito da
{fua Villa, Elle confultou fó com o
feu coraçaô as idéas , que concebia :
fez fabellas ao Rei , que as appro-
vou, e quiz authorifar coma fua pef-
foa, e a do Condeftavel a façanha do |
feu vaflallo. Difpôz efte as coufas ar- |
dilofo, e valente para facilitar ao Rei |
huma porta , por onde entrou felizes
mente com a gente elcolhida , que |
criada na fua efcóla , já atroftava os |
perigos denodada. A nofla vá-guarda
dentro das ruas fe empenhou em hum |
"combate de opiniaô ; mas fobrevin-
do o Rei com a cavallaria , fó efcas |
páraô de fer atropellados os que fe
falvárad com o Commandante em hu- |
ma Torre forte. o no
Defejava o Rei poupar o fangue;
e propôz o rendimento, em que nað
quiz convir a teima para fe fugeitar
depois a mais duro remedio. Foi a
É | | Tor-
a
DE PORTUGAL , LIV. XXI. 293
Torre atacada pelo Condeftavel , e Era vulg:
morto Joaô Rodrigues Guarda , que
a ferrava valerofo ; mas Martim Af-
fonfo de Mello , pondo fogo á por-
ta, que fe ateou em hum armazem
de lenha , foi o intrumento princi-
pal do bom fucceflo. Era voraz oin-
cendio , que nað perdoaria a alguma
de tantas vidas, que principiaya a con-
fumir , fe a piedade do Rei nað as
fizefle defcer por cordas em ceftões
do alto das ameias , aonde fe abrigá-
rað das chammas. Ficáraô prifioneiros
todos os Caftelhanos , que forað re-
mettidos ao Porto , e Eltevaô Rodri-
gues recebeo por premio, da fua fide-
lidade encarregar-lhe o Reia feguran-
ga, e Governo da Praça. © ->
O gofto deftes bons fuccefios ,
-ou a'grandeza do coraçaô do Rei nað
o deixava perturbar com a noticia Va-
ga do formidavel poder, que fe ajun>
tava em CaRella para .vir.arrancar: dá
fua cabeça a Coroa , que: queria. dar-
lhe o Senhor ::dos Imperios.’ Outro
coraçaô menos magnanimo fó 'temêra
os enfaios ,. quanto mais os golpe? dos
E cus
a94 Historia GERAL
Era vulg: feus inimigos, que no esforço , e no:
poder dobravad os motivos , que fa-
zem reípeitar, Entaô fe occupava el-
le nas conquiftas , que acabamos de
yêr , e em celebrar por prefagio fe-
liz a entrada em Lisboa de duas nãos
Inglezas com quatrocentos homens de
foccorro, e muitos provimentos, que
na Corte de Londres confeguiraôd os
noflos Embaixadores D. Fernando Af-
fo de Albuquerque , e Lourenço An-
nes. Fogaça : as quaes fendo atacadas
na entrada do Téjo por dez galés ini- |
migas, que tinhaô vindo a Lisbua ; os
Inglezes fe conduzíraô com tanto va-
lor , que depois de matarem 250 Caf-
telhanos , fem mais perda, que a de
quatro homens, derað fundo junto aus
muros da Cidade.
Humas a outras fe feguiað as van-
tagens , que hiaô preparando o thea-
tro para huma das gentilezas mais fu-
blimes da nofla corage. O choque de
Trancofo por todas as fuas circunftan-
cias , nað fó foi hum raígo bem fe-
melhante ao golpe da gloriofa bata- |
lha de Aljubarrota; mas huma: dasace
ções |
DE PORTUGAL , Liv. XXI. 295
ções mais cheias de reputaçaõ nås nof- Era vulg.
fas idades. Já a vá-guarda do exercito
inimigo , que com muitos Fidalgos
mandava Joaô Rodrigues de Caftanhe-
da, eítava em Ciudad Rodrigo efpe-
rando a chegada do feu Rei. Naô qui-
zerað eftes Chéfes valéntes ter ocio-
fas as armas, e para moftrarem, que
nos defprezavaô , ou nað hos temiaó,
com feis centos cavallos , é dous mil
Infantes, entráraô pelas terras de Ri-
ba-Coa; taláraô a Provincia da Beira,
e fizeraô huma preza prodigiófa, co
mo em Paiz fem defenfa. Martim Vaf-
ques da Cunha, Alcaide Mór de Li-
nhares , e Gonçalo Vafques Couti<
nho , que mandava em Trantofo ,
erað os unicos Cabos, que fe podiad
oppor ás correrias dos inimigos; mas
a defconfiança 4 que havia entre elles,
nað confentia em genios teimofos ,
que algum dos dous cedefle para fer
o primeiro, que rogafle.
Joaô Fernandes Pacheco , filho
de Diogo Lopes Pacheco ; que do-
tado de grande valor , defempenhava
os brios do feu appellido ; nad podé
vêr
296 - Historia GERAL
Era vulg. vêr callado efte eftrago da Patria. El-
le bufca a Martim Vaíques, e o per-
fuade a que fe ajunte com elle, e
com Gonçalo Vaíques para caftigarem
as atrocidades, que comettiaô os Caf-
telhanos. Achando nefte Fidalgo todas.
as difpofições á medida do feu dele-.
jo; elle vai em pefloa reduzir o Cou-
tinho a conformar-fe com os fentimen-
tos do Cunha; mas elle refite a mili-
tar debaixo da fua bandeira. Propoem
Joa6 Fernandes a Martim Vaíques a
duvida de Gonçalo Vaíques , que O
bifarro Portuguez desfaz com efta
reípofta cheia de generofidade : To-
do Portugal fabe as vantagens, que a
minha cafa leva á de Gonçalo Vaf-
ques; mas eu cedo de tudo pelos in-
terefles da Patria, e de tudo lhe fa-
£ facrificio : Ide , dizei a Gonçalo
alques , que eu quero fervir ás fuas
ordens ; que lhe cedo a gloria deta
empreza : que juro fervillo nella fiel-
mente ; que eu, e meus irmãos va-
mos jantar com elle a T'rançofo no
dia, em que ajullarmos fahir a ver a
cara dos inimigos.
Jul
DE PORTUGAL, Liv. Xx. 297
- | Juftamente alvoroçado partio [oaõ tra vulg.
Fernandes Pacheco prevenir a Gonça-
lo Vafques Coutinho , que nað‘ me-
nos fatisfeito , preparou as fuas gentes,
e hum magnifico jantar para os hofpe-
des honrados, que efperava. Na me- .
za fe ajuftãáraS as medidas, que havia.
tomar na campanha, e ficou refoluto
efperallos a pé firme no plano de Tran-
cofo; mas que para fazerem a (ua re-
foluçaô mais plauíivel, mandafem hum
Cavalleiro defafiar os Caftelhanos. Sa-
hio de Trancofo ao campo a refpeita-
vel tropa de 330 cavallos com hum
magote de Lavradores no centro das
allas , que fugírad ao primeiro repe-
lað , para efperar em campanha raza
o número oito vezes dobrado de Caf-
telhanos. Elles nos vírað, e quizerad
torcer a marcha a hum lado da plani-
cie para os montes, que os defviafle
do combate. Os noflos lhe bufcáraã
a frente , e nað houve mais remedio ,
que enriliar as lanças, e tivar das ef-
padas. A fubltancia do Paiz levada na
preza, que era conduzida a falvar-fe
noz altos , animou os noflos efpiritos
298 HISTORIA GERAL
Era vulg a empenhar os braços para os Patri-
cios lhe deverem a reftituiçaô do feu
cabedal.
Obrárað-fe nefte encontro faça-
nhas, que fe fazem incriveis. Defcar-
regavað os Portuguezes golpes taô def-
còompaffados , qué fe ouviaó em Tran-
cofo a meia legoa de diftancia. Der-
ramado o furor na tropa , nað foube-
rað advertir os noflos, que coufa era
dar quartel , nem fazer prifioneiros,
Todos os Cabos , e foldados Cafte-
lhanos ficaraô mortos no campo, ex-
cepto hum, que os noflos Chéfes qui-
zerað deixar vivo para levar a Caf-
tella as noticias do cataítrofe da vã-
guarda do grande exercito, que mar-
chava á conquifta de Portugal. Dos
Portuguezes nað houve hum Íó morto,
où ferido, como conteítad as memo-
rias daquelle tempo , que na fingele-
za dad duas almas á verdade. Queria
Deos defenganar o Rei de Caftella na
injuílica da fua pretençaô; mas entaô
foi o defengano taô difficultofo , como
depois a credulidade para muitos fuc-
ceflos da natureza do choque memo-
ra-
DE PORTUGAL, LIV. XXI. 299
ravel, de Trancofo, As bandeiras; as Era wilg
armas, os deípojos, a preza feita na.
Provincia, tudo ficou nas mãos dos
vencedores , que depois de fazerem
geral a complacencia no Reino, com
confciencia delicada re(lituirad o feu
a feu dono. | |
A gloria dos tres Fidalgos autho-
res defta expediçaôd fe lhes fez mais
plaufivel pela remuneraçaô prompta
do feu Principe, que deo maior vul-
to às mercês com a confiffað fincéra
da enveja , que lhe caufava nað fer
participante de hum feito tað cheio de
honra até para a pefloa de hum Rei.
As impreísões que elle caufou no de
Caflella, moftráraô depois os efleitos,
quando paflou pelo campo da batalha,
Eftava nelle huma Hermida de Sad
Marcos , que para nað parecer Padraô
da victoria, o Rei colerico a mandou
arrazar até aos fundamentos, vingando
nas pedras infenfiveis a refiflencia ,
que encontrava nos peitos dos homens,
Mas os grandes apreítos defte Monar-
ca contra nós ; já na6 davaô lugar a
| ou-
300. HISTORIA GERAL
Era vulg. outros -expedientes , que os de cuidar
na defenfiva.
= O Rei, que ainda eflava em Gui-
marães, antes de.fe mover para os
lugares , que fe entenderiad fer do
maior perigo para lhes difpôr o re-
medio: Elle quiz fondar o animo do
Condeftavel D. Nuno , e o inítruio
no poder formidavel com que o Rei
de Caftella vinha reftaurar a québra,
que tivéra fobre Lisboa : que elle efta-
va irrefoluto na que devia fazer; fe
bufcária os inimigos em campo aber-
to para decidir a fua caufa em hum
lance da fortuna , ou fe os efperaria
em huma Praça forte, aonde os def-
truifle por meio de huma defenfa pro-
longada , fem fe expôr ás contingen-
cias da batalha. O bravo Heróe, que
do principio da guerra trazia conful-
tadas com o feu coraçaô intrepido as
occafiões de honra , que ao Rei, å
Patria , ea fi mefmo podiaô fer glos
riofas, com o efpirito cheio de con-
fiança , refpondeo prompto :
Nós, Senhoses, etamos rodea-
dos de humas fituações taes , que qual-
quer
|
DE PORTUGAL, Liv. XXI. “301
quer-exceflo a que-nosarrojemos, nað Era vulg.
merece. :o- nome de temeridade. Nós
defendemos a liberdade, o Rei, a Pá-
tria ,.e tambem a' ReligiaS contra a
gente , que fegue. hum fcifma ;. que
quer! conguiftar-nos.; que prefume aba-
ter-vos:;. que vem 'a cativar-nos. Pois
eftes objectos Íublimes fó nos' had de
merecer acções vulgares ? Que occa-
fiões mais importantes para até dos
covardes fazer valentes ? E nellas. cor
mo quereráô moftrar-fe os Portugue-
zes que lhgs conbecem a gravidade?
Se nós vencermos, de hum: golpe
confeguimas:' todas: aquellas vantagens s
fe: ficarmos: vencidos , tudo facrifica-
mos. de hyma vez aos fimulacros da
honra :a:quem devemos todos. effes fa-
crificios: Antes mortos que fugeitos
a hum dominio eftranho.: Entrarem
os Caltelhanos em Portugal , e nós
fahirmos ao feu encontro , deve fer
huma .mefma acçaô. Se nos deixarmos
fitiar;, que exercito:temos: , que nos
foccorra .? «Para acabarmos em huma
coya , como féras:; . vamos :marrer nå
campanha - com. .a.. elpada: .na: mãôó ,
co-
302 HISTORIA GERAL.
Era wig. como homens. Eu bem fei}, que o
partido he defigual; mas tambem naõ
ignoro , que .os Portuguezes + quan-
do fe empenha -a honra., nað. contaó
número de inimigos. Quantos foraõ
.os que vencêrad o choque de Tran-
cofo è Pois o meímo Deos de entað,
he o de fempre; o Reino, e a caufa
tudo. be feu ; nelle devemos confiar
para nað confentir eftes hoípedes na
nofla cafa. . > :
- - ‚Prohettendo-fe' fegredo inviola:
vel, ajutáraðő entre fio Rei, eo Con-
deftavel poftar-fe em campo , e eípe-
rar occafiad para: a batalha. Como os
inimigos principiavad a mover-[e : em
Caftella .; elles dérað as providencias
neceflarias no Minho :,. e na Beira:
marcháraô, o Rei para Abrantes a ef»
perar a. gente das Provincias; o Con-
deftavel para o Alem-Téjo a cotdu»
zir a daquelle partido.. Efperava-fe' a
entrada dos Caftelhanos por Badajóz;
movimento , que obrigou o Rei'a
paffar o 'Féjo.; mas serrocedendo el-
jes ʻa marcha para Cidade Rodrigo, o
Rei tosmou-a. occupar Abrantes, ao
aê de
ed o. a RÈR ETC
-ud a ER
em td GRE. A Sã TA a-—
io Sed
a -~a Da as.
DE PORTUGAL, LIV. XXL 303
de efteve até Agofto. A caufa defte Era vulg.
retrocélo da marcha do Rei de Caf-
tella, e os movimentos, que prece-
déraô á batalha de Aljubarrota , fa6
dignos da attençab da Hiftoria., como
fucceflos precedentes á acçaô glorio-
fa , que decidio o negocio da nofia
liberdade. º Er
Antes que aquelle Principe fe mo-
veffe de Cordova, mandou occupar o
rio de Lisboa pela fua armada, com-
pota de 40 nãos grofias , dez galés ,
e doze fragatas, que fahira6 dos por:
tos de Andaluzia , e Bifcaya. : Indica-
va efta manobra, que elle viria. outra
vez tentar fortuna fobre Lisboa; ajun-
tando a efta grande frota as forças da
terra , que os:feus meímos Hiftoria-
dores , e dos modernos Fr. Jolé Als
vares de la Puente; fobem a trinta mil
Infantes., e oito mil cavallos. Porém
informado no caminho, que a Cida-
de de Elvas padecia: grande falta de
mantimentos ,. que lhe impoflibilitas
vað a defenfa por mais de quinze dias :
elle determina. fazer-fe Senhor: deita
chave da nofla fronteira, e com vifta
nc te-
304 Historia GERAL
Era vulg. temerofa aprefenta tantas trópas á fas
ce da Praca. Era entaô fèu Governa-
dor o bravo Gil Fernandes , que re-
veílido de confiança heroica, determi- |
nou moftrar nas obras ao Rei de Caf- |
tella , que nað temia as fuas armas:
Elle mandou, que as'portas fenað fe-
chafem em quanto os inimigos efti:
vefem no campo , para evitar O tra-
balho de as abrir, e fechar ás entra-
das , e fahidas das efcaramuças cone
tinuas, que elle nað ceflaria de empre-
hender, ' . TE |
Humas a outras amontoava as fahi-
das eíte efpirito impavido para ter o
campo fempre em rebate. Defejofo .
de huma facçaô , que fe fizefle mais
fentivel ao Rei; a fortuna lhe metteo
em cafa a conjuntura com a noticia,
que lhe déraô do grande comboi de
viveres , que- naquella. noite .(ahia de
Badajóz para o exercito. Nas horas
do maior filencio marchou a obfervar.
a efcolta, que o'conduzia, e a achou
em pequeno número pela vifinhança
da Praça ao. campo „ e pela confian-=
ça ; de. que o.reípeito do nao o |
sd =
DE PORTUGAL, LIV. XXI. 308'
fegurava. Naô podéraô os Caftelha- Era vulg.
nos foportar o primeiro pefo dos
feus golpes., e poítos em fugida, re-
colheo em Elvas o comboi , que for-
neceo a Praça para muitos dias. Já
erað paflados vinte e cinco fem os ini-
migos ganharem hum palmo de ter-
reno. Entaô recebêrað avifo do fuc-
ceflo infeliz do choque de Trancofo ,
que quando os forçava a naô perder
gente , e tempo no bloqueio de El-
vas , lhes defenfreou a tyrannia para
fe defpedirem da Praça com acções in-
dignas da humanidade.
Acafo viera a feu poder hum pai-
zano de Elvas. O Rei lhe mandou
cortar as mãos, e pendurallas ao pef-
coço do innocente com huma Carta
a Gil Fernandes ; em que o ameaça-
va , como aquelle era o tratamento
vulgar , que daria a todos os facciona-
rios do Meftre de Aviz. Palavra tað
mal dada foi exactamente cumprida em
mais dezafete homens de Arronches,
que lhe cahiraô nas mãos , e ficáraô
fem ellas. Gil Fernandes, incapaz de
fofirer efta atrocidade , que lhe pare-
TOM. V. U ceo
E mA RA ;
306 Historia GERAL
Era vulg ceo devia imitar fem efcrupulo , por
lhe dar o exemplo hum Rei : de oi-
tenta prifioneiros, que tinha na Pra-
ca, cahio fórte femelhante em dous
Fidalgos infelices, que foraô manda-
dos ao Rei com as mãos , e huma
Carta pendentes do peito, que dizia >
O Governador de Elvas dará efte mef-
mo trato a oitenta Caftelhanos, que:
tem em feu poder; e os vafiallos de
el Rei de Portugal D. Joaô I. teráő .
cuidado de fazer o meímo a todos,
fe efta impiedade continuar a ter ex-
ercicio. Efta reípofta foi a vantagem,
que os Caftelhanos tiráraô da empre-
za de Elvas , a que o Rei acodia de
Abrantes ; mas elle retrocedeo para -
a mefma Villa com a noticia, de que
os inimigos levantavad o campo , e |
fe faziad na volta de Cidade Rodrigo
a efperar o Principe D. Carlos de Na-
varra , que vinha. com hum corpo de.
trópas em foccorro do Rei de Caftel-
Ja feu cunhado, ?
DE PORTUGAL, Liv. XXI. 307
CAPITULO IIL
Do que fuccedeo depois da entrada do
Rei de Cajtella em Portugal,
to ES do mão fucceflo de Elvas;
e tida por mais difficultofa a entrada
em Portugal pelo Alem-Téjo; o Rei
de Caflella tomou o caminho de Ci-
dade Rodrigo para a fazer pela Beira,
e feguir por Coimbra a jornada de
Lisboa. Naquella Praça chamou a con-
felho os feus Generaes para fe deter-
minar, por que forma fe faria a expe-
diçað , fuppoftos os avifos conformes,
-de que o novo Rei fe aprefentava pa-
ra a impedir por meio de huma bata-
lha. Os pareceres fe dividírað á pro-
porçaô das imagens, que fe figuravað
os efpiritos , que os propunhaõ. Di-
ziað os menos affoutos, ou mais cir-
cunípeétos , que o Rei nað devia ir
em pefloa arrifcar a reputaçaô no com-
bate com homens delefperados , que
nað obítante ferem poucos , eflavaô
refolutos a bufcar a liberdade pélo
Vii meio
Era vulg.
308 Historia GERAL |
Era vulg, meio da morte , e dos perigos : que
com a vi&oria de Trancofo ficárad
taô foberbos , que rodeavad o feu
Rei, pedindo-lhe a batalha, como ul-
timo remedio da fegurança , ou da
ruina : que elles faziad guerra de Re-
ligiad a que era do Eltado, naõ dan-.
do aos Caftelhanos outro nome, que
o de Scifimaticos; e que com homens,
que peleijavad pela Fé, e pela Patria,
nað fe bufcavað encontros, de que el-
les entendiad , que vencedores, ou
vencidos , fempre ficavaô gloriofos:
que, fobre tudo , a faude do Rei ef-
tava muito debilitada ; erað grandes
os calores da Eftaçað ; nað devia ex-
pôr a fua vida ; mas dividir exercito
tað numerofo em varios, que invadil-
fem o Reino por differentes partes,
em quanto da fua obrava a Armada fo-
bre Lisboa , na fendo poflivel ao |
Meftre de Aviz feparar as fuas forças `
para acodir a tantos lugares.
— Os mais oufados, ou menos ad-
‘vertidos ponderavaõ os juifos, que fa-
ria o mundo do valor do Monarca de
Caftella, que com quarenta mil hoe |.
mens
DE PORTUGAL, LIV. XXI. 309
mens fe retirava de vêr a cara a hum Es vulg
punhado de Portuguezes, inimigos por
capricho : que todos o attribuiriad
a medo ; affronta maior , que a perda
de huma batalha, em que muitas ve-
zes fe cede ao deítino fem injúria do
valor: que fe os Portuguezes já efta-
vað foberbos; vendo que o Rei fica-
va em Caftella, lhes crefceria o or-
gulho, e paflariad a intoleraveis: que
o exercito dividido feria caufa de emu-
laçaô entre os Commandantes , que
botariad a perder os fucceflos com van-
tagem dos contrarios , e froxidad dos
Portuguezes fieis , que tomariad o
partido do novo Rei, ou feria omil-
fos nas occafiões de os fervir : que
o Mefre de Aviz nað era poflivel ti-
veffe corage para efperar em campo
femelhante exercito , que devia mar-
char a encontrar-fe com effe par de
homens defefperados , fazellos em pof-
tas, e ir delcançar do trabalho den-
tro dos muros de Lisboa. Efe pare-
cer, por mais briofo, teve-o el Rei
por mais honrado : e refoluto a en-
„trar por Portuga] em pefloa , mandou
pã-
310 Historia GERAL
Era vulg. para Ávila a Rainha D. Brites encar-
regada ao Arcebifpo de Toledo D.
Pedro Tenorio. | | |
' Entrou o Rei de Caftella em Por-
tugal pela Provincia da Beira, e to-
mou Cerolico, aonde fez o feu Tef-
tamento para começar a guerra com
demonftrações de Catholico , que de-
generáraô em officios de tyranno. Aqui
o vierad encontrar muitos dos feus
antigos partidarios , que defculpárad
a infidelidade com o temor da elei-
çaô do novo Rei. Confolado com as
boas efperanças , que lhe déraô eftes
traidores., continuou a marcha para
Csimbra:, levando na vã-guarda o ef-
trago, eo terror, que deixavad crueis
finaes em todos os Lugares da Provin-
cia por onde paflava. Os Póvos aber-
tos, as pefloas erað o entretenimen-
to do furôr brutal deflas trópas. Tranf-
portado até aos defatinos o Rei, por-
que Portuguez algum do partido do
chamado Meftre de Aviz nað vinha
bufcar o abrigo das fuas bandeiras ;
“elle nað perdoou a fexo , ou idade ;
€ querendo proporcionar as fuas cruel-
am | da-
<
DE PORTUGAL „Liv. XXI. 3IE
dades com as pefloas em quem as Fra vulg.
mandava executar ; ordenou , que a
“ humas fe cortaflem as linguas, a qu-
tras os pés , aos meninos os braços.
Para ajuntar o facrilegio á inhumani-
dade, o impio ao barbaro , fez def-
truir a Igreja de T'rancoífo, como fe
nella houvefle de devorar o incendio
a memoria do eftrago vergonhofo , que
alli padecêraS as fuas trópas , e. elle
o anno paflado lobre Lisboa. O hor-
ror deftas atrocidades animava mais os
“Portuguezes para deícjarem antes a
morte honrada na guerra , que aca-
bar como infames ás mãos dos ver-
dugos. Sempre eftes procederes eftras
nhos forab caufa das perdas de Helpa-
nha ; e quando nað houvérad outros
exemplos + baftavad em Flandres os
do Duque de Alva, que fazia vaidade
de ter Íubmettido ao cutelo dos Al
gozes milhões de cabeças,
Nefa marcha dos Caftelhanos fe
advertio ao Rei, que mandafle fazer
cortaduras nos caminhos para a imr
pedir. Mas aquelle animo fublime,
para fazer os vaflallos par
os
312 ` HISTORIA GERAL
Era vulg. dos feus fentimentos, lhes refpondia :
Fraca defenfa; eíperemos, e comba-
tamos, que brevemente nos veremos
vingados dos noflos inimigos. Elles
chegáraõ fem embaraço a Leiria, aon-
de fe lhes ajuntárad os Commandantes
das Praças da fua facçað para ajuda-
yem a devorar a Patria, como cancros.
O Rei avifou de Abrantes ao Condef-
tavel , que chegou com a gente do
Alem-Téjo , e intou com os Fidalgos
vencedores no dia de Trancolo para
virem ganhar nova honra em maior
feito: mas elles , que viraô paflar o
grande exercito de Caítella ,. mudárad
de refoluçaô á vifta do inimigo, ex-
cepto Joaô Fernandes Pacheco , e
Egas Coelho , que fe portáraô , co-
mo diremos a feu tempo, Naô deixa-
vaô de affligir os cuidados aos gran-
des corações; que he pençaô da hu-
manidade trazer á memoria as ima-
gens triftes das contingencias , quando
a alma fe recreia na gloria de fubir
triunfante ao Olympo. Por iflo o Rei,
que fabia fe notava de temeraria a
fua refoluçaðő de atacar o inimigo, fen-
do
= E e. 7]
DE PORTUGAL , LIV. XXI. 313
do.alguns dos que defejavad o com- Efa vulg.
bate os mefmos , que o perfuadiad
arrojado; elle fe determinou a convo-
car o feu Confelho. no |
` À prudencia humana nefte con-
greflo fe oppôz aos deftinos , que a
noflo favor tinha decretado a Provi-
dencia, Queriaô muitos, que fe efpe-
raffem os foccorros promettidos de In-
glaterra; e que em quanto nað che-
gavað , o Rei fofle para o Alem-Téjo,
e invadife a Andaluzia até Sevilha,
para obrigar o Rei de Caítella aaco-
dir á 'defenfa da fua cafa: Projeão,
que o divertia do fítio de Lisboa, e
a nós nos deixava livre a retirada de
Caftella , quando nos bulcafle , para
virmos unir-nos aos Inglezes , que já
entao (eriad chegados: que emprehen-
der outra reloluçaô , era tentar a
Deos , e querer forçallo a que défle
victoria a (eis mil homens, que teme-
Trariamente foflem inveftir fetenta mil,
que tantos fe dizia ferem os Caftelhanos.
Seguirad os mais efte parecer contrario
ás intenções de el Rei; mas o Condef-
tavel , que o via fufpenfo , fe levantou,
e diffe : i Que
A «
314 HISTORIA GERAL | E
Era vulg. S intentárað até ago-
ya os Portuguezes , em que peleijaf-
fem com forças iguais ? Fazei lem-
brança de todas as Épocas , feja no `
tempo dos Carthaginezes , feja no dos |
Romanos, feja no das Nações do Se-
ptentriaô, è ultimamente no dos Mou- |
ros , a nofia gente attendia á .juítiça Ê
da caufa , nað contava o número dos |
inimigos. À que nós temos entre mãos,
he huma das mais juftificadas deíde as |
idades remotas até agora; e nað ha-
vemos nella feguir o exemplo dos nol-
fos Maiores? Além dikto, quem fou-
ber da guerra , nað dirá, que ajorna-
da de Andaluzia he diverfad , mas
huma fugida , que fe deívia do gol-
pè, sefte temor quebrará os animos,
que eta6 ao prefente refolutos. Ella
facilitará o rendimento de Lisboa; e |
perdida efta Capital , que mais nos
yeta? Enta6 abateremos as armas, €
teconheceremos Rei o de Caítella. Os
Inglezes nað fabemos quando virãô ,
e o perigo já o vemos. Se lhe differi-
-mos a cura , nað nos aproveitará O Tẹ7
medio, quem vem fóra de tempo. No
meu
“a |
DE PORTUGAL, LIV. XXI. 315
meu conceito a batalha he indiípenfa-
vel , e afim o aflentáâmos em Gui-
marães el Rei, e eu, que naô mudo
de parecer á vifta do inimigo. Ficai-
vos, Senhores, em Abrantes ; tomai
os pareceres, que julgares convenien-
tes; perdei o tempo em conferencias ;
que D. Nuno Alvares Pereira com a
gente, que o fegue., fearroja á teme-
ridade de ir atacar os Caftelhanos, e
fenað poder falvar a Patria, morrerá
por ella, e |
Acabou de fallar o Condeflavel,
e fem efperar reípofla, fahio do con-
{felho ; veio ao quartel da gente: do
Alem-Téjo , que recebeo cam alvo-
roço afua refoluçað heroica; mandou
tocar as caixas, e trombetas, erom-
peo a matcha para Thomar, pór on-
de fe dizia que vinhað os Caftelha-
nos , com hama intrepidez fó digna
do efpirito de D. Nuno Alvares Perei-
xa. Fez a inveja os feus Officios nas
meímas peffoas , que defejariað fer
Era vulg.
authoras defta chamada loucura , co-
mo fe os animos fublimes houvefem
de apertar os feus impulfos. dentro dos
/ CUE-
316 . HISTORIA GERAL
Era vulg. curtos limites dos corações vulgares.
O Rei que tudo ouvia, e callava, co-
mo quem conhecia a fundo o ardor
da fidelidade do Condeftavel; torna a
ajuntar o confelho, é lhe propoem :
Que os paflos de D. Nuno fað tað
formofos como elle; merecedores de
fer feguidos , nunca de (er notados :
Que o feu efpirito magnanimo nað
pode ouvir fem commoçad a noticia
das ordens , que o Rei de Caftella
mandou ' dar ao feu exercito, e diziað 5
na marcha matem , cativem , quei-
mem , roubem até chegar a Lisboa : |
Que eftas barbaridades fe executavad |
fem piedade ; e á vifta dellas , que
fentimentos nos deve inípirar o amor
da Pátria , a caridade pelos irmãos ,
a juítiça da nofla caufa? O Ceo ferá
em noflo foccorro , e elle terá efco- o
lhido ao fragil intrumento defte, que |
© defprezo chama Rei de Aviz, para
refgatar o feu Povo das opprefsões da
tyrannia. Mandemos ehamar o Condef-
tavel ; unamonos com elle ; imitemos o
ardor do (eu zeld, e nað queiramos ap-
plicar remedios communs a males extre- |
mos. Co- |
DE PORTUGAL, LIV. XXI. 317
Como a voz do Principe cano- Era vulg.
nifou a acçad do Condeftavel , ella
foi unanimemente approvada, e deci-
dida a batalha, como meio unico de
impedir aos inimigos a expediçaô fo-
bre Lisboa. Mandou-fe a Joaô Affon-
fo de Santarem, hum dos do Confe-
lho , que chamafle ao Condeftavel já
poto em marcha ; mas elle ouvindo
o recado , lhe refpondeo : Que depois
do que ajuítára com el Rei em Gni-
marães de nað confentir , que os
Caftelhanos ftiafem Lisboa, nað ti-
nha fobre que tomar mais Confelho :
Que da fua parte lhe pedifle por mer-
cé o deixafle vêr a cara dos inimigos,
e que fe Sua Alteza tambem queria
ir lhe mandafle logo avifo para o ef-
perar em Thomar. O aperto em que
entaô eítava o Reino , nað fó fazia
defculpavel; mas louvavel a generofi-
dade de D. Nuno. El Rei a engran-
deceo com o elogio , de que tinha
hum vaflallo mais zelofo da fua Di-
gnidade Real, que elle meímo; eor-
denou ao feu Veador Fernando Al-
vares de Almeida fole ao ca in-
| Ola
318 Historia GERAL
Era vig. formar o Condeftavel da refoluçao do
Conielho ; ordenar-lhe retrocedefe a
Abrantes para marcharem juntos a buf-
“car os inimigos. |
O Condeftavel, que hia atroando |
a campanha com a marcha batida para
a fazer pública; entrou no efcrupulo, |
de que retrocedella., e faberem-no os `
inimigos, elles o tomariaô por mudan-
Ga de refoluçaô , ou covardia, e con-
tentou ao Veador com lhe pedir diflef-
fe a el. Rei, que no outro dia o efpe-
Tava em. Thomar; e continuou a jor- |
nada para efta Villa. Aflim'o executou
o Rei, que com orefto das tropas fe
foi ajuntar com o Condeftavel para fe
determinar o lugar, a fórma, e plan-
ta da-batalha. Daqui foi mandado Gon-
çalo Annes Peyxoto. examinar o cam-
po dos inimigos , disfarçado com o
caracter de Enviado para reprefentar
ao Rei de Caílella da parte do de Por-
tugal fe retirafle do Reino, que nad
era feu, e que fe repugnafle fazello,
o defafiafle para a batalha, Exadtamen-
te cumprio Gonçalo Annes a fua com-
miflaô em Leiria, aonde notou as for- |
ças |
DE PORTUGAL, Liv, XXI. 319
ças de Caftella; fondou o animo do Era vulg.
Rei, e fentido do defprezo manifefto
com que elle tratava ao feu Sobera-
no ; da fua parte lhe intimou a bata-
lha-no lugar , e dia, que elle quizefle
eleger.
Da fua fez o mefmo o Condef-
tavel, que mandou hum Trombeta ao
campo inimigo requerer ao Rei naõ
moleftafle a fua Patria ; que fahifle do
Reino, que reconhecia por (eu Sobe-
rano ao Meftre de Aviz; e que fe nað
o quizefle fazer , elle tomaria a licen-
ça para o obrigar com as armas. Ref-
pondeo-lhe o Rei de Caftella , que el-
le vinha cobrar a herança , que lhe
tocava por fua mulher : que olhafle
por fi ,. abandonando o partido do
Metftre ; que fobre elle derramaria a
profufaô da fua liberalidade. Á vifta
deíftas repoltas, o Rei, e o feu Con-
deftavel aflentáraô , que as armas de-
viað decidir a quetad., e movêraõ no
dia onze a fua gente, que no feguin-
te paflou a Porto de Móz, aonde ef-
tiverad até quatorze de Agofto , diá
fempre memoravel nos Faftos brilhan-
tes
320 Historia GERAL
Era vulg. tes de Portugal. Como nelle fe efpe-
rava a batalha, os noílos paflárao a
noite em exercicios catholicos ; os
mais recebêrad os Sacramentos de ex-
piaçaô , e da mað do Arcebifpo de
Braga a Cruz, e Indulgencia da Cru-
zada, que o Papa concedêra a noffo i
favor contra os fautores do fcifma.
Com eftes confortos fahírað os
Portuguezes do Porto de Móz na ma- |
drugada a cortar a eftrada , que haviad |
levar os Caftelhanos de Leiria para
Lisboa. O Condeflavel, que marcha- |
va na vá-guarda , marcou O terreno
para: o combate em huma campina ra-
za, fem montes, rios, ou roturas da
terra, que nos deflem fuperioridade 5
ou alguma vantagem dos inimigos,
que tinhaô fobre os Portuguezes a de
fete homens contra cada hum delles.
Nefte plano formárad o Rei, e o Con-
deflavel feis mil e quinhentos folda-
dos , em que entravaô mil e fetecen-
tos de cavallo e tres mil e quinhen-
tos entre criados , e gente de ferviço
das bagagens, que faziaO ao todo dez
mil homens. O exercito inimigo, con-
tal-
DE PORTUGAL, LIV. XXI. 321
tando tambem eftas praças deftinadas Bra vulg.
aos miniíterios do campo , chegava
ao número de fetenta mil. Na vã-
guarda fe poítou o Condeftavel com
feifcentos cavallos defmontados , co-
mo fizera na batalha dos Átoleiros,
para quebrar nas lanças a primeira fu-
ria dos inimigos : o lado direito era
a célebre ala dos Namorados , moços
folteiros, que efcolhêraô a devifa do
amor por marca da fua corage , e os
mandava Ruy Mendes de Vafconcel-
los com feu irmaô Mem Rodrigues ,
e o Alferes Alvaro Annes de Serna-
che: a maior parte do lado efquerdo
era compofta dos Inglezes auxiliares,
que cobriad Antaô Vaíques de Alma-
| da , Joa de Monferrara , e Martim
Paulo. -
El Rei eftava na reta-guarda com
a bandeira Real , que arvorava Gil |
Vaz da Cunha, e fe formava do ref-
“to do exercito, que tinha na referva
as bagagens com huma guarda em cir-
culo da gente menos apta para a pe-
leija. Faltáraô no campo muitos Fi-
dalgos de alta confideraçad , que ti-
TOM. V. X — vé-
322 HISTORIA GERAL
Era vulg. véraó ao Rei , e Reino por perdidos
nee encontro tað defproporcionado;
mas os que eftavad preítes para elle,
o eftimárad materia de entretenimens-
to, como iremos vendo nas circunf-
tancias , que lhe precedêrad. Como
formado o exercito , ainda nað pa-
reciaô os Caftelhanos , os Portugue-
zes pozerad armas em terra, e fe en-
tretiverad em tantas danças, e folias ,
que nað poderiaó fer mais jucundas fe
elles efperaffem por huma grande féfta,
Efa manobra jovial afombrou os ini-
migos, quando nos aviftárað , ea ti.
verað por prefagio da fua infelicida-
de. À ella fe ajuntavad os votos, que
chamavad denodados , que contrape-
fáraô os pios do Rei, e do Condefta-
vel. O Rei votou ir daquelle fitio a pé
á Igreja de Santa Maria de Guima-
rães, que fað 4o leguas , pefar.fe a
prata armado , como eftava, e fundar
nelle hum Convento. © Condeftavel
prometteo o meímo a Santa Maria de
Ceiça em Ourem, e edificar em hon-
ra fua outro Convento.
Eu-
benem ota meme
DE PORTUGAL, LIV. XXI. 323
Entre ' os denodados forað céle- Bra vulg.
bres os votos de Martim Affonfo de
Soula , que prometteo , fe efcapafle
da batalha, ir paflar huma quarente-
na com a Abbadeça de Rio Tinto; mas
feu irma6 Joaô Rodrigues de Sá lhe
reípondeo , que fe tal fizeffe , elle pro-
mettia de lhe dar com hum pão , e
diz certo Elcritor noflo, que ambos
cumprirad o voto: o de Vaíco Mar-
tins de Mello o moço, que jurou
prender , ou ao menos pôr as mãos
em el Rei de Caftella , e por que-
rer cumprir o voto , perdeo a vida: '
o de Gonçalo Annes de Caftello de
Vide, que prometteo , e guardou O
de fer o primeiro, que enfopafle a
lança nos Caftelhanos ; com outros
femelhantes , que indicava o desaf-
fogo militar dos noflos aventureiros ,
libertadores gloriofos da Pátria na fi-
tuaçaô mais trife a qué a reduzira O
poder ,. e tyrannia.
~ Quando aflim fe entretinhaó ós
noflos foldados , quafi a horas de meio
dia appareceo o exercito Caftelhano
em multidaô horrivel, que cobria o8
Xii pla-
324 Historia GERAL
Era valg: planos, e coroava os montes, Como
nos viraô na eftrada plantados em ba-
talha , entendéraô o defignio de lhe
difputarmos a paflagem, e fizeraô alto
os noflos inimigos , que fó com a fa-
ma do número pretendia atemorifar= `
nos. El Rei perguntou aos Chéfes,
que faria á vifta da refoluçaô dos Por-
tuguezes. Muitos feguiraô o parecer
de Joaôd de Ria, Embaixador do Rei
de França , que ponderou razões for-
tes para impedirem a batalha , que
fe fofle ganhada por tað poucos, mas
deflemidos , a injúria das armas de
Caftella em todas as idades ficaria ir-
reparavel. Os pareceres contrarios tive-
rað por maior a de voltar as caras ao
Metftre de Aviz , que vinha (acrificar
á fua defefperaçaô hum punhado de
homens loucos , que feriað degolla-
dos fobre a marcha; e com efte voto
fe acommodou o Rei.
Nefta fufpenfaô eftavaS os dous
exercitos , quando Joaô Fernandes Pa-
checo, e Egas Coelho , que vinhad
da Beira com hum pequeno corpo de
gente ə deraô na frente do lado ef-
quer-
|
|
DE PORTUGAL , Črv. XXI. 426
querdo dos inimigos. Sem os affuftar Era vulg
o repente defte encontro, fizerad to-
car as fuas trombetas , e rompendo
por entre os dous campos , bulcárad
a vi-guarda do noflo. Sahio o Rei a
efte lugar para os receber, e com el-
le Diogo Lopes Pacheco , que leva-
va a fua velhice veneravel carregada
do ferro dasarmas, e nað podia con-
ter o gofto à vita do zelo de feu fi-
lho. Joad Fernandes depois de beijar
as mãos ao Rei, e ao Pai, difle ao
* primeiro em voz alta, que todos ou-
viflem : Esforçai-vos, Senhor , contra
elles inimigos; nað os temais por mui-
tos, que os voflos fað melhores: Eu
já os conheço; ha pouco que lavei as
minhas mãos no feu fangue, hoje me
fartareí - delle : f6 vos finto o traba-
lho, que haveis ter em matar a tan-
tos : eftes lað os que reftáraô dos que
vós degolaftes no fitio de Lisboa : `
Deos torna a vo-los pôr diante, pae-
ra que lhes façais o mefmo. Por to»
do o exercito fe paflou elta palavra
de [oaô Fernandes, e infundio tal co-
rage nos noflos, que já o furor fazia
ran-
Ra vulg. ranger Os dentes pela tardança dos
È ld
yE
326 |. Historia GERAL
Caftelhanos .em envetltir.
Eflando. os campos na fituaçaôd ,
que fica dita, ainda elles faziaô con-
fultas , e novamente mandárad tentar
o noflo Condeftavel por feu irmað Dio-
go Alvares Pereira , pelo famofo Pe-
dro Lopes de Ayala, e pelo Marichal
Diogo Fernandes. Chegáraôd -os tres
á frente do exercito , aonde Diogo Al-
vares defatou 'os diques á ternura,
ás promeflas, á quanto havia de tocan-
te para perfuadir ao Condeftavel ofe-
guie , e a feu irmaô o Prior , que
afim lho rogava. O que vós, e o
Prior pretendem de mim ( refpondeo
, D. Nuno ) defejo eu, que elle, e vós
fagais para obrares com juítiça : Ao
Rei de Caftella dizei, que ao Condef=
tavel de Portugal fe enveíte com ar-
mas, e nað fe ataca com baixezas :
Que fe prefume vencer-nos, fe defens
ne , que em quanto a minha efpa-
da cortar , nað ha de ter aflento no
Reino, que tyranniza cruel: À meu
* irmaô direis , que cuide menos da mi-
nha pefloa , que da fua mettida no
pss
pnu
DE PORTUGAL, LIV. XXI. 327
perigo , que elle mal penfa , e hoje Eta vulg
lhe moftrará o fucceflo : fe efte era
o negocio a que vieítes, retirai-vos,
e fe mais me fallares nelle , efta ef-
pada vos dará a refpofta.. Ouvido tal
defembaraço , o Marichal Caftelhano
fe defpedio com efta elegancia enca-
minhada ao Condeftavel : Vós fe ven-
ceis , o mundo vos eftimará pelos ven-
cedores de maior honra: fe vos fuce
ceder o contrario, fereis os mais hon-
rados vencidos : em qualquer das fór-
tes fempre ficais felices.
Pedro Lopes de Ayala foi ao feu
Rei, e lhe Aife fe deixafle de bata-
lha, e como os Portuguezes nað ti-
nhað mantimentos , naquella noite dei-
xariað o campo, e lhe ficaria o paf-
fo livre para Santarem , fem fe exe
pôr ao perigo de vir ás mãos com
huns homens, querem fe lhes fällan-
do em liberdade, rugiaô como féras,
Muitos foraô delte parecer, entre el.
les o Conde de Barcellos; mas elle.o,
mudou quando ouvio O deíprezo com. ~
: que fe fallava no valor dos Portugue- -
Zes , e com todo o esforço da Tua: ~
| . — Melos"
º
+ e
a a
. œ g ;
+
%
328 Historia GERAL
Era vulg. eloquencia perfuadio ao Rei de Caf-
tella o combate , aonde elle com os
mais Portuguezes, que fe declaráraõ
contra a Patria, tinha de perder fem
honra as vidas, que podiaôd confervar
reputadas, ou arrifcallas com memos
ria mais illuíftre em melhor caufa.
CAPITULO IV.
Efcreve-fe a famofa Batalha de Alju-
barrota , que decidio o negocio da
liberdade de Portugal.
Á declinava o Sol do feu ponto
vertical no dia 14 de Agofto , o
mais formofo , e brilhante para Por-
tugal , que depois de dous feculos por
caufa femelhante o vio renovado nas
jornadas das Linhas de Elvas, do
Ameixial, e de Montes-Claros: Quan-
do o exercito Caftelhano principiou a
mover-fe contra nós a fom de caixas,
trombetas, e grito de guerra Caftella,
Sant Igo. Entaô andava o Arcebiípo
de Braga pela frente das fileiras ani-
maudo os foldados, e advyertindo-os,
| que
DE PORTUGAL, LIV. XXI. 329
que entrados na acçaô , repetiflem Era vulg.
muitas vezes: Verbum caro factum efl :
Perguntavaô os maviofos, que era o
que dizia o Arcebifpo ? Refpondiaô
os denodados conftruindo : Que a fun-
ça6 aos Caftelhanos tinha de cuftar
caro. Aflim ha de fer querendo Deos,
repetia outros, que nós havemos
dar-lhe hum bom mercado. Com eftes
“apophtegmas de galhofa efperavaôd os
noffos hum dos repelões mais horren-
dos , para depois fazerem verdadeiro
o erudito Colmografo de Carlos V. que
diffe nas fuas Relações Univeríaes do
mundo : Que Naçaô alguma do Uni-
verfo era comparavel no valor com a
Portugueza , que fazia dos combates
materia de entretenimento.
Quando o grande Condeftavel
vio, que os inimigos fe moviað, vol-
tou-fe para os. feus, e lhes fallou af-
fim: Eia, Amigos, he hora de levan-
tarmos as cabeças , que nos chega a
redempçaô : movamo-nos , mas tað
vagarofos , que a cada paflo firme-
o O pé, eapertemos o punho: pa-
çaô as voflãs lanças, que faô pega-
- | das
.
Di
330 Historia GERAL |
Era vulg. das aos braços; vós, e as armas hum
corpo indivifo : naô vos efpantem
aquelles gritos, que fað ar, que leva ,
o vento : Eu eftou lendo a vitoria |
nos vofos femblantes: o dia he nof- |
fo, Veípera do Triunfo de Maria |,
nofla Protectora: A elles; e em quan-
to houver mãos para matar, Ninguem '
as occupe em prender. No feu poto |
o Rei clamava em tom de feguran- |
ça » que fuperiormente fe lhe infpi. `
rava : Já vem a multidaô encontrar o
feu deítroço nas noflas eípadas : Ani-
mo , Portuguezes , que hoje triunfa a
Igreja Santa; hoje fe rime o noflo
Reino; hoje he o dia da nofla liberda-
de : o triunfo he certo., que Deos
eftá comnofco ; o Deos, que aqui
hos trouxe fem temor , nos ha de dar
a viétoria com prazer: Íegui o voflo |
Rei, que vos ha de acompanhar no |
perigo para fazer a gloria commua,
À efte tempo os Portuguezes fac-
cionarios de Caítella na vi-guarda nos
enveítiaô. Em defempenho do feu vo-
to fahio a enfopar nelles a lança o
bravo Gonçalo Annes de Caítello de
~
Vi- |
DE PORTUGAL, Liv. XXI. 331
Vide , que opprimido da multidað , Era vulg.
foi a tetra; mas foccorrido com tem-
po, foi defempenhando a promefia
com tal defembaraço, que caufava ef-
panto. A vá-guarda do Condeftavel
enveítida por muitos dos mais valero-
fos Caftelhanos, depois de huma re-
filtencia incrivel, era obrigada a re-
cuar até ao corpo da batalha, que fe
abrio para ateceber. O Rei fahio en-
tað do feu pofto para acodir ao peri-
go da gente do Condeftavel, e ti-:
rando da eípada , foi ferindo os ini-
migos, e clamando : Adiante, Senho-.
res, que ao voflo lado vai peleijando
o voflo Rei. O valerofo Alvaro Gon-
calves de Sandoval, que o ouvio, lhe
efperou .o golpe , e lançando-fe a el.
le , O fez ajoelhar , e arrancou das
mãos as armas. O Rei com impul(o
vehemente foi fobre elle, recobrou a
efpada, e foccorrido por Martim Gon-
çalves de Macedo, matáraô o bravo
Sandoval. Rar
Nefte lance , vendo el Rei a pé
peleijando como o foldado mais ordi>
nario , o nofio valor obrou heroicida-
. des,
332 HISTORIA GERAL
Era vulg. des , que excedem todo o encareci-
mento , dignas de mudar a Hiftoria
em Panegyrico. Os golpes erað tað
efpantofos , que faziaô eltremecer os
valles. O Condeftavel enfurecido pa-
recia fera indomita , que para ambos
os lados defpedaçava a preza. Os bra-
vos vencedores da de Trancofo com
Joað Fernandes Pacheco na fua téfta,
ainda agora fe moftravad maiores ho-
mens, que entað. No ardor defa re-
frega vio o Condeftavel ir pelo ar hue
ma lança, que até hoje nað fe fabe quem
a deípedio , e entrando pelo campo
dos Caftelhanos , derribou a feu ir-
maô o Prior do Crato , de cujo cada-
ver já mais houve noticia a pezar de
todas as diligencias.. Morto o Alferes
Mór de Caftella , abatemos o Eftan-
dante Real , e a efta vita os noflos
clamáraő : vidtoria, que os Caftelha-
nos fogem. Como fe eta voz fora
hum trovad horrorofo, paflado pou-
co mais de meia hora de combate,
os inimigos começaô a perder o campo,
os noflos a matar fem piedade, acaban-
do vingança a que principiou =
EE RE
|
DE PORTUGAL, LIV. XXI. 333
, O Rei de Caítella fem paciencia Era vulg:
para fer mais tempo teftemunha das
noflas gentilezas, da fua ruina, e do
deíprezo da fua Infignia Real, a to-
do o correr levou as nove leguas , que
eraô do campo da batalha a Santa-
rem, Vafco Martins de Mello o mo-
“co, que ovio fugir, fem mais com-
panhia , que a fua temeridade , foi
em feu alcance para cumprir o voto
de o prender, ou pôr as mãos; mas
os Caftelhanos da guarda, que o co-
nhecêrad, e viraô fó, carregárad Ío-
bre elle, e o abriraô a golpes, Afim
acabou efte gentil Fidalgo , que fe
confultafle o valor com a prudencia ,
afim como o fez com a indifcriçaô,
poderia o cumprimento da fua pro-
mefla ter hum exito mais feliz. O Rei,
que combatia, fe aproveitou da con-
fufaô , e-defordem do campo pela re-
tirada do feu Monarca : os foldados
redobrárad o ardor, e a furia : a car-
nagem era efpantofa , e os inimigos
{ó fe tinhã6 por felices fe lhes davaõ
tempo de fugir ; já fem alentos para
a defen(a deíde o ponto, em que ne
i Ca-
334 Historia GERAL
Era vulg. dêra6 a jactancia de vencedores , e
entráraô a fentir a realidade de ven-
cidos. - |
Fatal foi o deítino da fua infan-
taria em huma terra defconhecida ,
donde , além do exercito , deíceo a
chufma dos homens do campo , que
apanhando-a errante , e difperfa , fez
nella hum eftrago horrivel. Até da cé-
lebre Forneira de Aljubarrota , que
era mulher de efpiritos formidaveis
deíde a fua mininice, chamada a Pif-
queira, fe conta fahíra a campo com
a fua pá, que mé parece fe guarda
até hoje, e que com ella matára fete
inimigos. O número total deítes infe-
lices paflou de doze mil, que muitos
annos com os feus oflos defcarnados
branqueárad o campo da batalha. Os
cativos forad tantos , e fe davað taő
baratos , que o preço de muitos ho-
mens nada deípertava a cubiça de qual-
quer foldado. Em Aljubarrota ficou
banhada no feu fangue a flor da No-
breza de Caítella : Aljubarrota foi a
Sepultura do Povo de Hefpanha , af-
fim como o campo de Canas a do Po-
vo
DE PORTUGAL, LIV. XXI. 335
vo de Roma. Todo o trem importan- Era vulg.
tifimo, com que qo Rei, tantos Fi-
dalgos , e exercito taô numerofo fa-
hio das {uas terras , ficou em nofio
poder ; os foldados , e paizanos bem
remunerados das perdas precedentes,
que tinhaô padecido,
Dos Portuguezes rebeldes , que
voltárad o rofto á Patria para fegui-
rem o partido de Caftella, morrêrad
o Prior do Crato D. Pedro Alvares
Pereira , e Diogo Alvares, irmãos do
Condeftavel ; Gonçalo Vaíques de
Azevedo, e feu filho Alvaro Gonçal-
ves ; o Conde de Barcellos D. Joaô
Aflonfo de Menezes , irma6 da def-
graçada D. Leonor, caufa de tantos,
e tað diuturnos eftragos em Portugal,
que Deos ainda confervava com vida
para teffemunha da derrota das fuas
idéas. O meímo deftino tivera6 os Al.
caides Móres de Leiria , Obidos, e
Alemquer , que por devoçaô fe achá-
rað na batalha, Dos noflos faltára6
cento e vinte homens ; mas de pef-
foas de confideraçaô fó Vafco Martins
de Mello, Mendo Aflonfo de Béja,
e
336 Historia GERAL
Era vulg. e os Eftrangeiros Joað de Monferras
ra , e Bernardim Sola. Da nobreza de
Caftella foi paflada á efpada huma gran-
de quantidade , que cobrio de luto
todas as cafas illuítres daquelle Rei-
no, que na vida da Rainha D. Brites
quiz defaftogar o feu fentimento , co-
mo caufa de tantas ruinas , fe a au-
thoridade do Arcebiípo de Toledo nað
a amparára. -
Em quanto o Rei triunfante cele-
brava no campo a vidoria, o de Caf-
tella chegou a Santarem pela.meia noi-
te, reprefentando no interior as mef-
mas imagens do anno paflado, quan-
do levantou o fitio de Lisboa. Duvi-
davaô os da Villa abrir-lhe a porta,
- nað crendo chegafle a ella em tal ef-
tado o Chéfe do exercito eftimado iu-
vencivel , mas defenganados que era
o feu Rei, o recebérad em filencio,
“e elle entrou fem dizer palavra; o
Rei de aflito , os vafiallos de lafi-
mados. Afim efteve largo elpago re-
coftado , e levantando-fe depois como
frenetico , fe dizia a fi meímo : Ah
Deos ; que Rei fou taô'defgraçado!
a | Åra
DE PORTUGAL, LIV. XXI. 337
Arrancai-me efta vida , já que naó Era vulg.
foube perdella entre os meus, Quize- l
rað confolallo os afliftentes com a lem-
brança , de que elle nað era o pri-
meiro Rei vencido , e entre outros
lhe nomeárað a feu Pai D. Henrique ,
que perdéra a batalha de Naxera , fem
que por hum lance da fortuna contra-
ria a fua reputaçaô ficafle ofendida,
Afim he , replicou elle , mas effes
Reis, e meu Pai foraô vencidos por
quem era capaz de vencer : porém
Eu , derrotado pelo Meftre de Aviz,
que jå mais obrou acçaô de honra,
e por huns poucos de Portuguezes
deípreziveis, toíquiados, e fem bar-
ba, que gloria alguma Eu teria fe ma-
tafle a todos; vio o mundo até ago-
ra exemplar femelhante dedeshonra,
e de deígraça? |
Preoccupado. defte temor , fem
alentos para refazer a fraqueza com
o alimento , mandou lhe efquipaffem
huma barca , nað fuccedefle feguillo
o Meftre de Aviz, e na meíma noite
paflou para Lisboa á furdina , aonde
efteve dous dias occulto na não que
TOM. V,. Y q
en
|
338 Historia GERAL
Era vulg. o traníportou a Sevilha. A 17 de Agof.
to fahio da barra, ordenando á arma-
da que o feguifle , e chegou áquel.
la Capital de Aridaluzia, fem encon-
trar na fua entrada mais que corações
abatidos , e femblantes confternados :
Imagens da fortuna contraria , que
vellem os trages dos que ella defcom-
poem. Os applaufos , as congratula-
ções , que.elle havia receber te vieffe
vencedor, conveitérad-fe em queixas,
em laflimas de quem vinha vencido :
Murmurações , que elle mefino autho-
rifava com o luto , que nað deípio o
yeo da vida, com a conhfiaô de fer
o Rei mais delgraçado , nað pela ba-
“talha que perdéra ; mas pela ganhar
quem elle naô penfava. Enta5 fucce-
deo em Sevilha , que hum Portuguez
ordinario foffe maltratado por hum dos
Officiaes de Palacio. ORei, que vio a
acçaô, etevea vingança por muito de-
{igual á injúria de Aljubarrota , diffe ao
Ofhcial : Nað o trateis afim 5 porque os
da fua Naçaô, que me feguirad, per-
dêraô a vida na minha prefença obran-
do façanhas portentofas , € os que 3
ra
DE PORTUGAL , LIV. XXI. 339
ta6 contra mim me vencêraó : Ref- Eta vulg.
. pofta , que prova bem os fentimentos
Íublimes defte Principe no abatimen-
to da fua fórte. ?
No mefmo ponto que no campo
fe declarou a vitoria a fez pública
em Lisboa huma voz , que ninguem
foube donde fahíra. Os moradores le-
vados nas azas do alvoroço , corria6
de tropel aos Templos para pedir o
auxilio do Deos dos Exercitos. Quan-
do fe verificou a noticia do lugar,
“hora, e circunftaneias do triunfo con-
forme com a primeira, que fe temia
“vaga, e incerta; nað cabiaô no peito
os corações, que fahiað pela bocca a
offerecer-le vitimas de agradecimen-
“to ao Ceo. As Pragas qué fe tinhaô
fubmettido á protecgað de Caftelia,
pela retirada do feu Rei o abandoná-
-raô , e obrigadas a fubmetter-fe ao
Vencedor , ellas quizeraô prevenir o
feu refentimento , implorando a cle-
mencia , que encontráraô benigna ás
-promefias conftantes da fua fidelidade,
| Rei, que fe a refiftencia o irrita-
va, à Íubmiflas o abatia , a todos 96
Y ii que
F
a
340 Historia GERAL
Era vulg. que vinha6 humilhar-fe affegurava o
efquecimento do paflado, tað modef-
to no triunfo, como fe elle eftivefte
na fituaçaô de vencido.
- Os noflos prifioneiros, que efta-
vað em Santarem, entre elles o Mef-
tre de Chrifto D. Lopo Dias de Sou- |,
fa, o Prior do Crato Alvaro Gonçal- |
ves Camelo , e D. Rodrigo Alvares |
Pereira , irmaô do Condeftavel , pe- |
los movimentos , que obferváraS na .
Praça a noite da chegada do Rei , af-
fentáraô , que elle perdêra a batalha. |
No dia feguinte já certos da victoria,
e que todos os Caítelhanos principaes
tinhaô partido da Villa a embarcar-fe
na armada ; elles arrombárad os care ,
ceres, convocárad o Povo, e levan-
do a bandeira do Senado acclamárad
pelas ruas o feu Rei. À eftas vozes os
Caftelhanos acabárad de perder o
animo , muitos fe refugiárað nas Igre-
jas, os mais foraô prefos. Ainda o
Rei fe detinha em dar graças a Deos
no Mofteiro de Alcobaça , e em man-
dar fazer fuffragios pelas almas dos
que morréraó na batalha, quando foi
avi-
- „ere e e it oae
DE PORTUGAL, Liv. XXI. 341
avifado da reducçaS de Santarem. De- Era vulg,
pois teve o da fugida dos Comman-
dantes de varias Praças para Caftella,
a faber : Gonçalo Tenreiro de Alem-
quer ; Affonfo Lopes de Texeda de
Torres-Novas ; de D. Henrique Ma-
noel de Sintra; de Joað Rodrigues
Portocarreiro de Villa-Real; de Vaf-
co Porcalho de Villa-Vicofa ; de Mar-
tim Annes de Barbuda de Monforte ;
e de Garcia Pires de Mouraõ.
Veio el Rei de Alcobaça a Santa-
rem receber as congratulações do feu
Povo , e as homenagens das Villas
irmmediatas ; fubmiísões , que aflegu-
ravaô a fua firmeza no Throno ; e
cuidou em recompenfar aquelles, que
fielmente o ferviraô no tempo da re-
volta, e confulad. Os primeiros que
experimentáraô os efeitos da piedade
do Rei , foraô mais de mil prefos
Caftelhanos , que eftavað em Santa-
rem , e gratuitamente pôz em liber-
dade ; ordenando ao famofo Gonçalo
Annes de Caíftello de Vide, e a ou-
tros Cabos do Alem-Téjo , que fe re-
colhiaô para a Provincia, os aii
at
342 Hisroria GERAL
Era volg. até a fronteira com fegurança, A mef-
ma graça concedeo a outros muitos,
que diflimulava foflem embarcar-fe no
reto da fua armada , que ainda efta-
va em Lisboa. Nað participou della
o célebre Pedro Lopes de Ayala, que
no disfarce de pobre, hia todos os
dias receber a fua efmóla a cafa da
Condeça, viuva de Barcellos , aonde
o conheceo hum criado. Homem tað
importante, e tað rico, foi defcober-
to ao Rei, que o mandou fegurar em
Leiria, e pagou pelo feu refgate trin-
ta mil dobras, e trinta cavallos.
O Grande Condeftavel, como fe
diflinguira entre todos no ferviço,
tambem o devia fer nos premios. El.
le foi criado Conde de Ourem, com
promefla de nað nomear o Rei outro
em fua vida : Titulo, que vivendo
ainda Joaô Fernandes Andeiro , lhe
prognofticou hum Efpadeiro de Santa-
rem , que concertando-lhe huma ef-
pada, e querendo D. Nuno pagar-lhe,
dife que o faria, quanda foffe Con-
de de Ourem , como agora exacta-
- mente cumprio , pagando-lhe se a
le
DE PORTUGAL, LIV. XXI. 343
liberdade , que tinha perdido por (e Era vulg,
haver incorporado com os Caftelhanos.
Efa mercê feita ao Condeftavel foi o
primeiro golpe, que principiou a abrir
os fundamentos para a fua grande Ca-
fa, que enlaçada na de Bragança. le-
vou o feu-fangue a todas as Téllas
Coroadas da Europa : mas na fua pel-
foa ella foi huma confequencia das
muitas com que os Reis Predeceflores
haviaô honrado os feus Maiores. Os
grandes homens de quem elle defcen-
dia, a antiguidade do feu Appellido,
a nobreza da fua Cafa, tudo concor-
ria para fazer a D. Nuno Alvares Pe-
reira hum Heróe completo. Baltava-lhe
a memoria de feu Pai o Prior do Cra-
to D. Alvaro Gonçalves Pereira , que
tanto fe aflignalou na gloriofa batalha
do Salado, em tempo do Rei D. Affon-
fo IV. como eu deixo efcrito na vi-
da defte Principe, para D. Nuno mes
recer as attenções do feu Soberano y
que tinha de fer Avô dos feus mef-
mos netos.
Hum mez depois deo ao mefmo
Condeftavel. o Condado de Barcellos,
| e
344 Historia GERAL .
Era vulg. e fez outras muitas mercês , entre el-
las as rendas de Guimarães, Ponte de
Lima, Valença, Villa-Real, Chaves,
Atouguia, e Bragança. A Diogo [oe
pes Pacheco mandou el Rei reftituir
os Paços de Bellas com as fuas quin-
tas, e a feu filho o valerofo Joað Fer-
nandes Pacheco deo a Villa de Oli-
veira de Conde , e outras terras. À
Egas Coelho , que com elle viera da
Beira, e depois com elle fugio para
Cafítella , ambos infieis, e ingratos ,
fez mercê dos Lugares de Vella , e
Germelho. A Martim Gonçalves de
Macedo, que na batalha o ajudára a
livrar-fe. de Alvaro Gonçalves de San-
doval , deo as Aldeias de Algozelo,
e Pinelo , com os bens de Martim
Affonfo de Seixas, parcial de Caftella.
A Martim Gonçalves do Carvalhal,
tio do Condeftavel , fez mercê das
rendas , terras, e almargem da Cida-
de de Tavira, que forað de feu fo-
brinho Fernaô Pereira ; e naquella
Cidade veio viver feu filho Fernaô
Martins do Carvalhal; deixando nel-
la defcendencia , de que ainda hoje
Al-
— n ea ri ie om -
DE PORTUGAL, LIV. XXI. 345
Algarve fe confervad familias com os Eta vulg.
appellidos de Pereiras , Berredos, Val-
concellos , e outros em que fe enla-
çáraô por cafamentos , dos quaes eu
dei noticia na minha Aula da Nobre-
za , quando elcrevi as Memorias dos
Vereadores de Tavira. Todos os mais
Fidalgos foraô remunerados á propor-
ção ; e eftas acções tanto de .juítiça ,
ferviraô depois para dous lifongeiros
fazerem arrepender o Rei, e tirar q
melmo que tinha dado a vaflallos tað
diftinctos ; defgoftar o Condeftavel, e
perder os teia + que fe
lançáraô do lado dos inimigos , como
eu direi em feu lugar. Feita efta bre-
ve digreflaô , voltarei ao Campo de
Aljubarrota para continuar no Capitu-
lo feguinte com a narraçaô das noti-
cias curiolas , que fe feguiraô a efta
milagrofa victoria, que aflegurou a li-
“berdade da Patria , joia fobre todas
a mais eftimada da altiva Naçaô Por-.
tugueza.
CA-
Era vulg.
346 Historia GerAL
CAPITULO V.
Do mais que fuccedeo no campo da ba-
talha , e depois della , com o juizo
mais provavel a refpeito da Forncie
ra de Aljubarrota,
Amii el Rei pelo campo depois
da vitoria, e paflindo por Diogo Al-
vares Pereira, irmaô do Condeftavel,
pegando-lhe , e chamando pelo fea
nome , lhe dife com mais benigni-
dade do que pedia a occafiaô , e as
offenfas. Diogo Alvares , aqui eftais
vós? Eu vos moftrarei hoje, que fou
voflo melhor amiga, do que vós me
tendes fido fervidor. Ao mefmo tem-
po faou a voz vaga, e falfa, que ma-
tavað o Condeftavel. Correo el Rei a
foccorrello , e encarregou a Egas Coe-
lho a guarda de Diogo Alvares ; mas
os foldados , que ighoravad a pefloa,
e o conheciad Caftelhano , fem que
Egas Coelho os podeffe deter , o fi-
zeraô em pedaços. Quando el Rei vol-
tou, e o vio morto, fentio a fua def-
; gra-
DE PORTUGAL, LIV. XXI. 347
“graça, e por iflo recebeo com me- Era vulg.
nos alvoroço a alegria com que vinha
faltando o bravo Antaô Vaíques de.
Almada enrolado no Eftandarte Real
de Caftella, que pôz aos feus pés, e
lhe diffe: Tomai , Senhor, effa Ban-
deira do maior inimigo , que tinheis
no mundo.
Depois veio com os feus folda-
dos o capitaô Gonçalo Rodrigues na-
-tural da Certã, elhe prefentou a gran-
de caldeira, que fe guarda no Mof-
teiro de Alcobaça, e deo á fua fami-
lia o appellido de caldeiras em me-
moria do valor deímedido com que
efte feu afcendente a ganhára aos ini-
migos. A fua grandeza he tað def-
marcada , que dizem fe coziað nella
quatro bois ; outros , que as rações
para todos os criados do Rei de Caf-
tella , que erað trezentos. Quando
Filippe II.a vio no Clauftro daquelle
Mofteiro , houve hum Cafelhano ze-
lofo, que lhe dife mandaffe tirar da~
quelle lugar o defpertador de huma
memoria á fua Naçaô injuriofa , e
fundir della hum fino. Certo Fidalgo
; pru-
348 Historia GERAL
Era vulg. prudente , que hia mais chegado ao
Rei, reífpondeo : No Señor , Je quede
aqui; porque fiella fiendo caldera fue-
na tanto, que fera fi fuere campana ?
Os deípojos da Tenda Real , e
de tantos Fidalgos , que feguiað o feu
Rei , foraô tað preciofos , e tantos ,
como de huma Monarquia podero(a,
que mandava grande parte do feu Po-
vo a eftabelecer-fe em novo Reino,
que-indifputavelmente reputava pro-
prio. Tomarað-fe as defafeis peças de
artelharia com todo o feu trem, toda
a bagagem, os cavallos, e carruagens
do campo. Na Tenda del Rei, entre
tantas preciolidades , fe fez mais ef-
timavel a Reliquia do Santo Lenho ,
que elle tirára da Sé de Burgos , e
depois fe deo ao Condeftavel para a
collocar no Convento do Carmo de
Lisboa , aonde fe guarda com culto
religiofo.
No mefmo Convento eftá o Sce-
ptro de ouro, que fe achou entre os
mais deípojos , e fe diz fora fabrica-
do das arêas do Téjo, que cria grãos
defte metal preciofo. O Rei, com o
del.
a mo om em e a cp ami è
DE PORTUGAL, LIV. XXI. 349
defprezo de Cefar no dia de Farfalia , Era vulg-
abandonou tantas riquezas aos folda-
dos , que as haviaô ganhado, fem re-
fervar para fi mais, que os cavallos,
as armas , a artelharia, € o feu trem,
que foi o primeiro defte genero, que
fe vio em campo nas Hefpanhas.
Quiz moftrar o Ceo , que fe in-
tereflava no noflo triunfo ; porque no
maior ardor da batalha , quando el
Rei invocava o patrocinio de S. Ber-
nardo para lhe acodir no perigo, em
que o pôz Alvaro Gonçalves de Sando-
val, que lhe tirou das mãos a facha,
e o fez ajoelhar: Elle meímo confefe
fou depois em Alcobaça, que víra fo-
bre a Tenda do Rei inimigo hum Bac-
culo Abbacial, que empunhava huma
maô , e braço com manga como de
Monge, e que do Bacculo pendia hu-
ma Clamide militar, como tinta em
fangue ; vifta, que lhe fervio de con-
forto efpecial para recobrar alentos
com a certeza, de que tinha em feu
favor a protecçad do Santo Abbade. |
Tambem obfervárad muitas pefloas,
que em quanto durou o emp.
Qa
350 Historia GERAL
Era vulg. fobre o noflo Eftandarte Real volita-
vað varias pombas brancas , que os
-interpretes entendéraO annuncios da
futura victoria. Naô he menos fingular
o modo da morte do Prior do Crato
D. Pedro Alvares Pereira , abonado
ela grande authoridade de feu irmað
o Condeftavel, que depôz, como eu
deixo dito, vira fahir do noffo cam-
po huma lança defpedida fem impul-
fo humano , que entrando pelo dos
Caftelhanos , bufcára o Prior , e atra-
veflando-o pelos peitos dera com elle
morto em terra.
As noflas gentilezas , que entað,
eraô igualmente vulgares , e monf-
truofas, Manoel de Faria e Soufa as
quiz marcar na fua Hiftoria com os
Epitafios arrogantes, e graciofos , que
foraô defcobertos na Villa de Chaves
de dous bravos Capitães Portuguezes,
que quizeraô deixar á pofteridade ef-.
tas memorias do feu efpirito façanho-
fo. Diz o primeiro:
Aqui
DE PORTUGAL, LIV. XXI. 351
Aqui JAZ Simon AntOM, — Etavilg.
Que MATOU MUITO CasTELAD,
E DEBAIXO DESTE COVOM
DeEsaria A QUANTOS SAÔ.
Dizia o fegundo em Latim macarronico,
Hic jacer ANTONIUS Peris,
VassaLLUS Domini REGIS,
ContTRA CASTELLANOS MISSO,
OCCIDIT OMNESQUE QUISO};
QUANTOS VIVOS RAPUIT
OMNES ESBARRIGAVIT 5
PER ISTAS LADEIRAS
TULIT TRES BANDEIRAS;
E FEBRE CORREPTUS
Hic JACET SEPULTUS ;
FAacianT CASTELLANI FESTE,
QUIA MORTUA EST SUA PESTE.
Por tantas circunftancias fe fez efta
batalha a mais célebre daquellas ida-
des , ou ella fe contemple pela grande
defigualdade do poder de ambos os
exercitos , ou pela pouca experiencia
dos noflos Officiaes contra tantos Ca-
pitães aguerridos , fem que da nofia
parte houveflem as vantagens de ter-
Te-
262 Historia GERAL |
Ere vulg. reno, e outras de foccorros imagina-
rios , que inventáraô os Authores Caf-
telhanos para desfigurarem a Portugal
a gloria de dia taô formofo :..Dia bri-
lhante, em que fe decidio o negocio
mais grave de huma Naçaô , que he
a (ua liberdade; que firmou a Coroa
na cabeça do noflo Rei natural , e
que encheo de aflombro a expectaçaõ
de toda a Europa, até entaô fuípen-
fa fobre o arrojo da nofla chamada
temeridade.
Já diffemos , que depois de ven-
cida a batalha, el Rei veio ao Mof-
teiro de Alcobaça dar graças a Deos,
e fazer- fuffragios pelos feus mórtos.
Era entað Abbade D. Fr. Joað de Or-
“nellas, generofo, e magnanimo, que
fuftentou o noflo exercito depois que |
entrou nas fuas terras, até que fahio |
dellas, e foccorreo el Rei com gente, |
que enviou commandada por feu ir-
mað Martim Ornellas , e obrou no
conflito acções magnificas em ferviço
da Pátria. O meímo D. Abbade, de-
pois de defpedir feu irmaô para o
campo , fe poítou na ponte de Cha-
que-
DE PORTUGAL , Liv. XXI. 353
queda com tres companhias , e muita Efa vulg:
paifanage a eíperar os Caftelhanos fu-
gidos da batalha, aonde matou innu-
meraveis: Serviço, que o Rei lhe re-
munerou com lhe deixar duas dasdi-
tas companhias para guarda da fua
Pefloa, diftinçaô da fua Dignidade, e
com outras muitas mercês, que conf-
tað das Cartas de Doações feitas ao
Motfteiro.
Hum dos inimigos mortos ás mãos
da gente do Abbade,. foi Ruy Dias de
Roxas, marido de D. Maria de Gue-
vara, Cubicularia do Rei de Caítella,
que aos Fidalgos , que entravaõ na
fua Tenda, coftumava perfumar , di- |
zendo , que o fazia para lhes tirar o
mão cheiro , que traziad das cafas,
e trato com os Portuguezes Chamor-
ros ; nome com que nos affrontavad
os Caftelhanos , porque entaô princi-
piavamos a cortar as barbas. Diogo
Lopes Lobo fez prifioneira a efta Da-
ma afcarofa , e paflando acafo pelo
lugar, aonde eftava o cadaver de feu
marido , fe lançou (obre elle a incen-
fallo -com os aromas das fuas lagri-
TOM. V. Z mas.
354 Historia GERAL
Era wilg. mas. Hum foldado » que a acompas
nhava , e fabia o que ella em nofio
deíprezo practicava na Tenda do feu
Rei, lhe diffe com ar militar : Que
he ifo , bella Dona? Porque nað guare
daftes para agora os vofios perfumes ?
Por certo vos eraô elles agora bem
neceflarios para embalfamar efie ca-
daver , que deita peior fedor, que o
mão cheiro dos chamorros , que vos
nauzeava, |
Todos os mortos Portuguezes
mandou o Rei conduzir para o Mof-
teiro de Alcobaça , aonde forað fe-
pultados. A mefma piedade fe ufou
“com o corpo do Conde D. Joaô Af-
fonfo Tello, e com ella lhe quiz el
Rei pagar o confentimento , que de-
ra para a morte de Joað Fernandes An-
deiro , e depois della hofpedallo em
fua cafa , ou talvez porque agora o
feu voto fizera refolver o Rei de Caf-
tella a dar-lhe a batalha, que foi an-
tecedente de tað gloriofa vi&toria. Aos
mórtos inimigos, he opiniað vulgar,
fe negára a fepultura : falta de pie-
dade apparente , que permittiriao Ceo,
oO dm ted um a ee -A ei oa..
md mg
DE PORTUGAL, LIV. XXI. 356
“como fe entendeo pelo fucceflo nad Era vulg.
ordinario , que fez eftimar por indi-
gnos de gaflar a terra , e que até
perdoafle a voracidade dos brutos a
huns cadaveres , que foraôd depofita-
rios de almas feparadas da communhaS
- da Igreja, Sedarias do Scifma , eco-
mo taes incurfas nas cenfuras fulmina-
das pela fua verdadeira cabeça o Pa-
pa Urbano VI. Efta paffagem he de
ernað Lopes , que trata com mais
extenfaO os effeitos da que pareceo
inhumanidade na falta da fepultura dos
mórtos.
A memoria que fica tocada da
forneira de Aljubarrota , que fe diz
matára com a pá do feu forno fete
Caflelhanos , que fe retiravad da ba-
talha, he hum ponto de tradiçaô, de .
que eu devo dar noticia mais indívia
dual, ainda que naô a refiraô os nof-
fos melhores Efcritores. Efta mulher
fe chamava Brites de Almeida , de -
alcunha a Pifgueira , e ha quem di-
ga , que ella era natural do Algarve
nafcida na Villa de Albofeira, dota-
da de forças tað pouco vulgares no
| Gii feu
356 Historia GERAL
Era vulg. feu fexo , que nað fó difputava va-
Jentias com hum ; mas com alguns
dos homens mais robuftos daquellas
idades. He tradiçaô conftante, que ef-
ta Amazona Lufitana com huma pá
de ferro encabada em huma vara de
pão matára fete Caftelhanos , que vi-
nhaô fugindo da batalha de Aljubarro-
ta. Entendem huns , que ella achára
dentro no forno dormindo eftes fete
infelices fatigados do feu trabalho, e
que lhes fizera o fomno perpetuo :
Outros , que efgremindo no campo
aquella nova clava, á força de golpes
deitára em terra mórtos os fete Caf-
telhanos.
O certo he, que a pá com a fi-
ra, que eu digo, fe guardava nos
Paco: do Confelho , e o forno efta-
va na rua direita da Villa, Fregue-
fia de S. Vicente , junto ao celleiro
dos Monges de Alcobaça. Exifte ain-
da hoje a dita pá , e os moradores à
tinhaô em tanta eltimaçaô, que nað
fó a levavaô na Prociflaô, que fe faz
todos os annos a 14 de Agofto, dia
da batalha ; mas quando efte poa
: dir AA P -
o qe dm ame
DE PORTUGAL, LIV. XXI. 367
paffou ao dominio de Caftella , te- Era vulg,
mendo elles, que Filippe II. quizeffe
derrotar a fua tradiçad com a ruina
do inítrumento della, que era a pá:
Hum dos mais honrados , chamado
Manoel Pereira de Moura, a metteo
dentro de huma parede dos ditos Pa-
ços , aonde fe . guardou até ao tempo
da feliz Acclamaçaô de D. Joaó IV.
em que a clava da forneira tornou a
fahir a público. Os effeitos moftrárad
o acerto dos moradores de Aljubar-
rota, que por muitas vezes foraô no-
tificados de ordem dos Reis de Caf-
tella para remetterem á Corte . de
Madrid o inftrumento á fua Naçad
injuriofo ; mas elles fempre fe defcul-
páraô, com que a pá nað apparecia.
Eu naô decidirei fe o combate
foi no forno , ou no campo -, ainda
-que me inclino á fegunda parte. Pa-
rece que no forno dentro de huma
Villa inimiga , nað viriað os Cafte-
Jhanos refazer com o fomno as fuas
forças laflas, expoftos ao perigo evi-
dente de mais facilmente ferem mór-
tos , ou preíos , e que antes poe
| | sia
368 -© Historia GERAL
Era vulg. riaó recobrar-fe com o defcanço em
algum efcondrigio pelos matos vifi-
nhos , donde fe podeffem falvar em
Santarem com o favor da noite. Eu
tenho por mais provavel, que a for-
neira , levada da grandeza do feu co-
raçað , e fiada nas muitas forças, de
que diffe era dotada , fahio com a
paifanage , que de todas as partes def-
cia a perfeguir os fugitivos , e que
travando com os mais os combates
contra os miferaveis mal armados,
opprimidos da fadiga , medrofos , €
cortados do temor , 4 fua parte ma-
tou os fete, que aflegura a tradiçaô.
— Tambem he fem queftaô , que
muitos homens de Aljubarrota para
levantarem hum padra6 impio á me-
moria da façanha da fua forneira , fo-
7aô ao campo da batalha , e trouxe-
-Yaô huma quantidade de offos dos que
nella morrêrað , e com elles fizerað
huma calcada , que hia da cafa da
forneira até ao forno. Efte efpscos,
que era hum paffeio da deshumanida-
de, moftravað elles aos Caftelhanos,
“que por alii paflavaô , como Fi
Es
DE PORTUGAL, LIV. xxr. $59
defafrontava a injúria recebida dos vi- Era vulgi
vos com efte monumento injuriofo dos
mórtos. Durou tantos annos a calça-
da do forno, que nos noflos dias ha-
via homens, que della fe lembravaô,
e o Author da Chroúica dos Eremi-
tas de Santo Agoflinho diz, que ain-
da exiftia no feu tempo. |
A Camara de Lisboa por hum
aflento ; que nella fe tomou , refol.
veo , que todos os annos no dia da
batalha fe fizefe huma Prociflaõ fo-
lemne, em que fe repetifem acções
de graças a Deos , e a Marra Sans
tilima por tantos beneficios , que a
" {fua piedade derramára fobre a NaçaS
Portugueza , ameaçada de hum duro
cativeiro. O mefmo fe ordenou em
louvor dos Santos Vicente, e Jorge,
o primeiro Patrono da Corte, o fe-
gundo o grito da guerra de Portugal,
Advogado das fuas armas : Collume
pio , que teve obfervancia pontual
até ao tempo da intrufaô dos Filipe .
pes de Caftella, que o tiverad 60 an-
nos abolido; mas refufcitando o Reis
no na peflua de D.Joað IV. em pa
o Cio
360 Historia GERAL
Era vulg. elle tornou a reviver, e continua com
o fervor primitivo.
Eu concluo ete Tomo , nað fó
com moftrar fegura a fucceflaô de
Portugal eni Reis naturaes na Pefloa
de D. Joaô I. Meftre de Aviz , que
derrotou todas as pertenções de Caf-
tella , para continuar no feguinte com
as outras memorias importantes da
fua vida depois do Interregno : Mas
com a lembrança da exactidaS com
que elle , e o Condeftavel cumprirad
os feus votos edificantes. Determinou
el Rei a fua romaria a Nofla Senho-
ya da Oliveira de Guimarães, e fem
embargo de huma diftancia tað gran-
de como a de 40 leguas., fahio a cum-
prilla a pé , acompanhado dos Of-
ficiaes da Cafa, e da guarda de cem
Béfteiros , começando-a do campo da
batalha depois de ouvir Mifla , e fa-
zer a Deos huma oraçad larga , efer-
vorofa. Chegado a Guimarães , foi
levado em prociflãô por todo o Cle-
ro å Cafa da Senhora , aonde fe vef-
tio nas mefmas armas, que trouxera
na batalha , e mandando-fe pezar a
ig pra-
DE PORTUGAL, Liv. XXI. 361
ptata, deo toda para a fabrica do re- Eta vulg.
tabolo, que tem o Prefepe do Minino
Deos , ainda que ha quem diga que ef-
te retabolo o trazia na fua Capella o
Rei inimigo, e que achado nos del-
pojos, D. Joaô o dera à Senhora da
Oliveira. Depois fez fundar o Moftei-
ro da Senhora da Victoria, que nós
dizemos da Batalha, e o deo aos Pa-
dres Prégadores da Ordem de S. Do-
mingos. O Condeftavel cumprio a fua
promeffa na mefma fórma a Santa
Marra de Ceiça em Ourem, e edifi-
cou o Convento de Nofla Senhora do
Carmo de Lisboa : Dous Padrões ma-
gnificos , que confervad immortal a
memoria da gloriofa batdlha de Alju-
barrota, e dos dous Heróes, Autho-
yes da nofia liberdade, o Rei D.Joaõ
J., e o feu Condeftavel D. Nuno Al-
vares Pereira. .
IN-